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Certa vez, na noite de Natal, uma cena na televisão chocou os telespectadores. Uma garotinha de uns 9 anos não conseguia escrever, porque sua mão tremia. Levada a um posto de saúde, o médico, com lágrimas nos olhos, disse: "O mal dessa criança é simples: ela está com fome". Descobriu-se, depois, que havia algumas semanas o único alimento daquela criança era água fervida com pedaços de ferro catados no lixo e um pouco de sal.

A fome sempre foi uma das grandes tragédias humanas, com episódios de horror e morte. Na China, em 1876, a fome matou 13 milhões de pessoas e foi causada pela seca nas províncias do norte do país. Na Índia, em 1901, 8,3 milhões de pessoas morreram famintos pela seca no sul e no oeste. Na Ucrânia, 12 milhões de pessoas – 5 milhões em 1921 e 7 milhões em 1932 – morreram por falta de comida, em função do programa soviético de coletivização das propriedades rurais.

Em 2005, James Morris, responsável pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU, afirmava que "300 milhões de crianças passam fome em todo o mundo, e essa é a maior vergonha de nossa época". Em 2012, a ONU volta para dizer que um em cada sete habitantes do planeta passa fome. A história da fome é longa, e também pouco conhecida.

A humanidade levou até 1830 para atingir 1 bilhão de habitantes. Em outubro de 2011, foi comemorado o nascimento da criança de número 7 bilhões. Mesmo com tanta gente, a Revolução Industrial, o capitalismo e o progresso da ciência e da tecnologia criaram as condições para produzir alimentos a todos os habitantes da Terra. A fome é um problema político de distribuição, não de produção.

Pois esse ser humano, que conseguiu tantos feitos científicos, é o mesmo que, de maneira estúpida, gasta enorme parte de seu esforço para defender uns dos outros. Parte das matérias-primas, das energias, do trabalho e do dinheiro do mundo é aplicada de forma insana em sistemas de segurança, aviões, navios, equipamento militar, armas de matar, presídios e muros destinados a impedir que uns destruam os outros.

Fico pensando: e se uma parte disso fosse dedicada a impedir que a fome venha a dizimar multidões e a evitar que crianças definhem e morram por inanição? Nada é mais tétrico que ler ou ver o relato de episódios de horror vividos por pessoas famintas que vão ficando dementes até se esvaírem sem vida.

Enquanto isso, nós e nossa geração "iQuero", do alto de nossa estupidez, vamos estourando dinheiro e fazendo dívidas para comprar o último modelito de roupa da moda, a última versão do celular e uma série de coisas desnecessárias, apenas para satisfazer nosso insustentável modo de consumo e dos mimados filhos a quem nada negamos – mesmo que, debaixo de nosso nariz, vivam crianças que não conseguem escrever porque têm as mãos trêmulas porque não comem.

A fome de milhões é mera estatística. Mas quando um caso isolado, de uma criança com olhar assustado, nos choca diante da tela da tevê, somos sacudidos a perguntar: o que estamos fazendo com nossas vidas? Ninguém pode resolver tudo, mas cada um pode fazer sua parte, por mais modesta que seja.

O problema das crianças que estão definhando e morrendo de fome no mundo é uma bofetada na cara de todos nós – pelo menos daqueles que ainda não perderam a capacidade de se indignar com tal espetáculo de horror. E o Dia da Criança será comemorado com mais consumo, exatamente por aqueles que já têm mais do que precisam.

José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.

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