• Carregando...

Há exatos quatro anos as torres do World Trade Center ruíram golpeadas pelo fanatismo político-religioso, e naquele dia fatídico os americanos despertaram para uma realidade chocante: a de que, com todo seu aparato bélico e poderio tecnológico, não eram nem invencíveis nem invulneráveis como ingenuamente acreditavam. Pela primeira vez em sua história, a área continental dos Estados Unidos foi atacada, e muito mais do que isso, os centros nervosos da economia e da vida política americana foram golpeados por vinte terroristas que, além da carnificina que provocaram entre inocentes, fizeram o que nenhum exército do mundo teria sido capaz de fazer: desequilibrar o país, instaurar um clima de paranóia e de insegurança permanente, que progressivamente transformou a população, antes tão auto-suficiente e despreocupada em refém de inimigos reais ou imaginários.

Para conviver com a ameaça do terrorismo, os governantes americanos agora estão celeremente destruindo algo muito mais importante ainda do que as torres gêmeas e o prédio do Pentágono: estão solapando os fundamentos de uma sociedade livre, que sempre e justamente se gabou de estar imune às tentações do totalitarismo, de ser a terra da liberdade, a morada dos bravos. Centenas de prisioneiros permanecem detidos em Guantánamo sem saber sequer porque de que são acusados, sem direito a ver um advogado ou contatar suas famílias. A tortura passou a ser tolerada, mascarada sob o eufemismo de "interrogatórios severos", nos quais são utilizados métodos e instrumentos que os franceses aperfeiçoaram na Argélia debaixo de condenação universal dos povos civilizados. O Patriot Act, a lei que reforçou a vigilância do Estado sobre os cidadãos dotou os governantes de instrumentos excepcionais, permitindo-lhes deter pessoas por longos períodos durante os quais suas liberdades civis estão virtualmente suspensas. Sistemas sofisticados de rastreamento de comunicações como o Carnivore procuram palavras-chave suspeitas nas mensagens da internet, enquanto que a indústria americana inunda o mercado com novos dispositivos de segurança: "narizes" eletrônicos que analisam os odores corporais dos transeuntes para verificar se o indivíduo manuseou ou esteve próximo de explosivos e de materiais perigosos; sistemas de reconhecimento que filmam pessoas em locais de grande aglomeração e instantaneamente comparam as imagens com bancos de dados para identificar terroristas; ou que apontam potenciais suspeitos pela forma pelas quais andam e assim por diante. O pior é que tudo indica que todo esse gasto trilionário é simplesmente inútil: há duas semanas em Bagdá, bastou alguém gritar que havia um homem-bomba no meio da multidão que participava de um ato religioso para que milhares de pessoas fossem pisoteadas no pânico que se seguiu e mais de mil morressem. Lógica simples: um grito alarmista do meio de uma multidão é uma arma que simplesmente escapa a qualquer reconhecimento ou detenção por parte da mais sofisticada tecnologia antiterrorista que se venha a inventar.

Agora o mundo está despertando para outra realidade chocante com a tragédia de New Orleans: a de que, enquanto os americanos se esmeram em apontar o dedo incriminador para as iniqüidades alheias, esquecem-se de corrigir as próprias. A nação que é capaz de colocar um regimento completo com seus milhares de soldados, carros de combate, munições e armamentos em qualquer parte do mundo em questão de horas, foi incapaz de se organizar minimamente para socorrer a cidade vergastada pelo furação Katrina; o aparato policial e militar mais poderoso do mundo, capaz de utilizar os métodos mais modernos para combater o crime e o terrorismo também não foi capaz de evitar que a cidade fosse saqueada ou que cidadãos ilhados em suas casas fossem assaltados ou ainda que mulheres fossem estupradas em locais onde deveriam estar supostamente protegidas.

A famosa inscrição do Centro de Imigração da Ilha de Ellis, que convidava o mundo a mandar para os Estados Unidos os pobres, doentes, oprimidos e aqueles que buscavam inutilmente oportunidades na vida já estava de há muito desbotada pela política americana em relação aos imigrantes. Agora, está mais desmoralizada ainda quando se vê que o país que se gaba de ser o mais rico do mundo não consegue tratar dignamente nem de seus próprios doentes, pobres, oprimidos e sem oportunidades.

P.S. – Enquanto isso, do outro lado do Atlântico outro mito também ruiu estrepitosamente, o da civilidade e da eficiência impecáveis da polícia britânica. A mesma Scotland Yard que ajudou a Inglaterra a manter suas liberdades civis intactas enquanto o país guerreava o totalitarismo nazista fuzilou a sangue frio um eletricista brasileiro que cometeu o horrendo e imperdoável crime de "parecer ser um terrorista". O pobre brasileiro acreditara que viver no "mundo civilizado" correspondia automaticamente a ter acesso à vida civilizada. Trágico engano. Como Shakespeare diria para seus compatriotas: a estupidez é como o sol, gira em órbitas e brilha em todos os lugares.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]