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 | Felipe Lima
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As relações humanas são o que existe de mais íntimo no âmbito da convivência. E por isso mesmo chega a ser impensável ver o Estado regulando, por exemplo, amizades ou namoros – seria ridículo imaginar uma série de regras determinando quem pode ser amigo de quem, ou quem pode namorar quem, e como deveria ser o relacionamento. Amigos ou namorados teriam de torcer para o mesmo time? Gostar do mesmo tipo de música? Morar dentro de um determinado raio de distância para facilitar a interação? Conversar pelo menos uma vez por dia? Viajar juntos pelo menos uma vez por ano? Assinar contratos de amizade ou namoro, com cláusulas estipulando as condições de rompimento? Absurdo, não? No entanto, existe um tipo específico de relação que conta com o reconhecimento do poder público já há muito tempo – e não só isso: há pressão crescente para ainda mais regulamentação e até sua redefinição. Trata-se do casamento. Mas faz sentido isso? Se não queremos ver o poder público se intrometendo em nossas amizades ou namoros, por que agir de forma contrária quando o tema é o casamento? O que o Estado tem com isso?

Antes de dar a resposta, no entanto, é preciso lembrar que os debates recentes sobre o casamento têm se pautado por questões que “colocam o carro na frente dos bois”: muito frequentemente, pergunta-se quem pode se casar (ou, mais recentemente, quantos podem se casar). No entanto, fica difícil encontrar a resposta adequada quando não se sabe, em primeiro lugar, o que é o casamento, essa instituição não inventada, nem “socialmente convencionada”, mas reconhecida ao longo de séculos pelas mais diversas sociedades ao redor do globo.

Tomamos emprestada a resposta dos filósofos Ryan Anderson, Robert George e Sherif Girgis: o casamento é “uma união abrangente” entre duas pessoas. “Abrangente” porque não se limita a um ou outro aspecto ou circunstância da vida humana, como o fato de trabalhar no mesmo local ou gostar de um mesmo hobby. A “união abrangente” dos esposos é completa, envolve suas mentes e seus corpos; é totalmente voluntária, e direcionada a objetivos comuns, que são a felicidade do casal, o desenvolvimento mútuo de marido e mulher e a construção de uma família pela vida compartilhada e, quando possível, pela geração e criação dos filhos. Por isso a ideia de “união abrangente” inclui as mentes, mas também os corpos dos esposos: é pelo sexo que eles se tornam “uma só carne”, pelo ato que tem como consequência – ainda que nem sempre conseguida ou mesmo desejada – o surgimento dos filhos, enriquecendo a união conjugal. Por isso também faz sentido que um compromisso desta importância seja exclusivo e permanente. A essa noção do casamento Anderson, George e Girgis chamam “concepção conjugal”.

Crianças nascidas e criadas em um ambiente estável, beneficiando-se da contribuição trazida pelo pai e pela mãe, crescem melhor

E aí mora a resposta à nossa pergunta: por que o casamento interessa (ou, pelo menos, deveria interessar) ao Estado?, ou, em outras palavras, por que se justifica a regulação estatal do casamento? Porque uma sociedade saudável precisa, para sua perpetuação, de indivíduos. Mas não basta a mera manutenção numérica da população; se queremos o desenvolvimento dessa sociedade, precisamos de indivíduos saudáveis, e as famílias têm um papel fundamental nisso. Não é exagero nenhum dizer que a civilização depende de matrimônios fortes. A generosidade dos casais na abertura à vida e, depois, o cuidado e a supervisão dos filhos pelos pais são essenciais para a maturidade física, moral e cultural desses novos indivíduos, para que eles se tornem pessoas seguras e firmes. São inúmeros os estudos segundo os quais crianças nascidas e criadas em um ambiente estável, beneficiando-se da contribuição trazida pelo pai e pela mãe, crescem melhor e tendem a reproduzir em sua própria vida adulta os bons valores aprendidos no lar – basta lembrar que todos reconhecemos os males causados pela desestruturação das famílias. É por isso que, enquanto se deve repelir qualquer tentativa de intervenção em outros tipos de relações íntimas humanas, justifica-se que o poder público regule o casamento: ele é a instituição que permite a própria perpetuação da sociedade, e é de seu interesse que seus membros se desenvolvam da melhor forma possível para que cumpram sua vocação de serem pessoas completas, íntegras, virtuosas.

Em contraposição à “concepção conjugal” do casamento, no entanto, tem surgido o que Anderson, Girgis e George chamam de “concepção revisionista”. Nela, a essência da união passa a ser o afeto entre os parceiros: a existência deste afeto legitima a elevação da relação – qualquer relação – ao status de casamento e, cessado o afeto, desfaz-se o vínculo sem maiores questionamentos. “Que seja infinito enquanto dure”, diz o poeta; quando não durar mais, que cada um siga seu caminho.

Se o fundamento do casamento passa a ser o afeto, caímos em um caos conceitual. Como definir o afeto, como medi-lo?

À primeira vista, parece fazer todo o sentido. Não nos cansamos de cantar o amor, o afeto, em prosa e verso. A própria união de mente e corpo que elogiamos na concepção conjugal do casamento requer um profundo amor entre os esposos. Qual é o problema, então, da concepção revisionista? Em primeiro lugar, ela isola o afeto de todo o resto – da vida familiar, do compromisso permanente e exclusivo, da geração e criação dos filhos – e o torna o único critério que faz uma relação merecer ser chamada de casamento. A concepção revisionista não é uma simples ampliação do conceito de casamento: é um redesenho total, pois substitui a base e a finalidade da união entre os esposos, na comparação com a concepção conjugal.

Esse redesenho, no entanto, não se sustenta em pé. Se o fundamento do casamento passa a ser o afeto, caímos em um caos conceitual. Como definir o afeto, como medi-lo? Que afetos podem ser transformados em casamento e quais não podem? Poderíamos chamar de “casamento” a união de dois solteiros convictos que são grandes amigos, ou mesmo irmãos de sangue? Ou dos membros de uma comunidade hippie que dividem o mesmo teto? Se não podemos, em que se baseia essa negação? Alguém dirá que seria preciso haver relação sexual entre eles para garantir o status de casamento. Mas, então, estaríamos fazendo do sexo o único critério para atestar que determinado afeto é intenso o suficiente para merecer ser chamado de casamento. Não só estaríamos pedindo ao poder público que regulasse os afetos – justamente o que desejaríamos evitar – como também, ainda por cima, pretenderíamos que o Estado, no fim das contas, regulasse o próprio sexo...

A defesa da concepção conjugal do casamento significa uma desvalorização de outros relacionamentos

Se quase tudo pode ser casamento, bastando para isso o afeto (e, talvez, também a atividade sexual), as próprias noções do casamento e do amor humano saem enfraquecidas. O amor verdadeiro é desinteressado, busca em primeiro lugar o bem do outro, seu crescimento nas virtudes. Envolve o sentimento, mas também é um ato da vontade. Exige dedicação constante e a convicção sobre o valor de uma união que é duradoura. Daí toda a sua beleza, que reconhecemos e prezamos. Isso é exatamente o oposto do afeto volúvel e egoísta, que desaparece tão facilmente quanto surge e só mantém a pessoa em um relacionamento enquanto ela extrair dele a própria realização afetiva. Ora, se isso passa a ser a base de um casamento, que solidez podemos esperar dos vínculos matrimoniais? Que estímulo teríamos para valorizar e buscar a vida familiar, com todas as suas alegrias, mas também vicissitudes, como um ideal?

A defesa da concepção conjugal do casamento significa uma desvalorização de outros relacionamentos, românticos ou não? Quem quer que já tenha lido o discurso que Shakespeare coloca na boca do rei Henrique V antes da Batalha de Agincourt sabe que outros laços também podem intensos e profundamente valorosos. O mesmo se pode dizer de outros relacionamentos de natureza romântico-afetiva. O casamento, no entanto, tem algo de único, que está na união de corpos e mentes com vistas à construção de uma família. Não é mais, nem menos – é diferente, uma diferença que merece ser preservada e, por seu papel na perpetuação da sociedade, justifica a regulação estatal.

Esta regulação, no entanto, não implica no abandono de quaisquer parceiros que entrem em relacionamentos que fogem da concepção conjugal do casamento. Interesses comuns na área patrimonial, o direito a escolher quem pode estar a seu lado em situações críticas, como uma internação hospitalar, tudo isso pode e deve ser reconhecido pelo Estado caso seja da vontade dos indivíduos, independentemente da natureza do relacionamento que mantêm, seja sexual, familiar, de coabitação ou de amizade.

A concepção conjugal do casamento e sua regulação legal são o saudável meio termo entre dois extremos: o libertário, segundo o qual o casamento civil nem deveria existir; e o revisionista, que busca redefinir o casamento para incluir nele diversos tipos de relacionamento. Este falha por enfraquecer a própria instituição do casamento; aquele ignora que o casamento tem uma dimensão que é de interesse máximo da sociedade – a sua perpetuação – e que justifica a regulação estatal. O casamento interessa, sim, ao bem comum; mas é preciso lidar com o tema da maneira correta.

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