• Carregando...

A cidade medieval era murada: dentro a segurança, lá fora a barbárie, certo? Não totalmente, mas há uma grande chance de essa constatação ser quase integralmente verdadeira. O sentimento de proteção no grupo de pares, não necessariamente iguais, está presente na gênese da humanidade e persiste – com mais força, evidentemente – em algumas sociedades. A queda das muralhas medievais foi boa pela possibilidade concreta de aproximar diferentes e permitir a troca. Mais recentemente, a queda do Muro de Berlim, em 1989, demonstrou uma situação similar. É importante entender a queda real e concreta de muralhas também pelo simbolismo que podem trazer.

A cidade é, por excelência, o local da troca e da gentileza; nesse entendimento, não cabem muralhas. Todavia, persiste ainda a ideia da cidade como o local da barbárie, a despeito de expressarmos, em uníssono, um interesse em mudá-la. Sociedades modernas são abrigadas muitas vezes em uma estrutura física antiga. Mas a sociedade se adapta: passa a reconhecer o valor da tradição, dos legados de outras gerações, passa a perceber a importância de compartilhar e respeitar valores, passa a ter interesse em conhecer outras cidades com outras realidades. A tudo isso chamamos gentileza urbana.

Se por um lado o mundo de hoje é mais competitivo, por outro é também mais solidário. Esse é um movimento mundial e a cidade é o palco dessas manifestações. Se tomarmos Curitiba como exemplo, veremos que as ações de planejamento que mudaram o desenho da cidade e que contribuíram para um novo modo de pensar o urbanismo estão fortemente vinculadas a um processo de apropriação do espaço urbano e de cuidado para com a cidade: fechamento da Rua XV; programa de coleta seletiva de resíduos; criação de inúmeros parques para a solução de problemas sanitários, mas equipados para o lazer; estruturação de um transporte público diferenciado e de qualidade.

Da mesma forma, as manifestações populares são cada vez mais frequentes e seu palco é, de novo, o espaço urbano. São as passeatas pelo calçadão da Rua XV que pedem punição a quem matou no trânsito, são as reuniões na Praça Santos Andrade pelas Diretas Já, são os passeios ciclísticos para demonstrar que existem outras formas de circular e contribuir para a sobrevida do planeta. O mesmo ocorre com as paradas gays, movimentos religiosos ou grupos de defesa dos animais. Muitas vezes tratados como movimentos de protesto, o que estas manifestações nos mostram é que a sociedade está na busca de novos meios para alcançar um velho desejo: harmonia e gentileza. E as cidades têm sido cada vez mais receptivas a esse desejo.

Ser gentil com o vizinho ou com o visitante é um estágio avançado das sociedades; cuidar das cidades para que sejam mais justas, mais adequadas, mais sustentáveis, mais acessíveis, mais bonitas e mais seguras é uma maneira de ser gentil com a cidade e com o próximo.

A cidade contemporânea, mesmo com toda a sua violência, é mais solidaria e mais gentil que suas semelhantes do passado. Isso é reflexo de uma sociedade também mais solidária e mais gentil. Os bons exemplos são inúmeros, mas o importante é entender que a cidade de hoje também reflete, ou pode refletir ainda mais, esse cenário bastante positivo.

Maria Luiza Marques Dias é professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPR.

Esta coluna é organizada por Clovis Ultramari, Fabio Duarte, Irã Dudeque e Salvador Gnoato, com arquitetos urbanistas convidados para discutir o futuro das cidades

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]