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O meu pai, quando eu era criança, costumava dizer que no Brasil as coisas chegavam com 20 a 30 anos de atraso. O mundo mudou, ficou globalizado, e o nosso país se transformou em uma potência econômica, sem que meu pai pudesse presenciar tudo isto. Mas o testamento vital chegou tarde. Muito tarde.

Não se trata, é claro, de se colocar contra a autonomia do paciente. Este é um valor inquestionável, mesmo que não absoluto. Ocorre que o testamento vital (o documento que se propõe a dar uma relevância jurídica a um desejo manifestado pelo sujeito em relação aos tratamentos que receberá em um momento de necessidade e que o mesmo não seja capaz de exprimir seu próprio consentimento) não conseguiu atingir este objetivo fora do Brasil.

Apesar de rapidamente passar do debate acadêmico em bioética para a sua aceitação na prática – sobretudo em alguns países da Europa e também nos Estados Unidos – e intuitivamente parecer uma forma adequada de respeitar a vontade do paciente em um momento muito difícil, várias limitações surgiram desde o seu aparecimento, na década de 90.

Em primeiro lugar, a maioria das pessoas não assina este documento nos Estados Unidos: a adesão gira em torno de 20% da população. As barreiras estão relacionadas não apenas à falta de conhecimento da população em geral, mas também porque muitas pessoas acreditam que este documento é difícil de ser executado na prática. Outras acham que ele é contrário às suas tradições culturais. Dois grandes estudos demonstraram que a maioria dos pacientes prefere mesmo deixar as decisões sobre a reanimação cardiopulmonar aos seus familiares ou ao seu próprio médico.

Um segundo ponto preocupante é que, mesmo considerando os casos em que o testamento vital foi assinado, até onde aqueles que o assinaram realmente estão rigorosamente bem informados sobre as suas decisões? Nem sempre as informações chegam completas ou de maneira correta, sobretudo na era do "Dr. Google". Algumas vezes estes documentos são assinados sem sequer uma consulta médica prévia – o que pode, inclusive, invalidar o seu compromisso com a autonomia do paciente dentro dos parâmetros bioéticos. Em um famoso estudo, 18 mulheres tinham decidido não realizar analgesia durante o seu pré-natal e permaneceram firmes em sua decisão até chegar ao início do trabalho de parto (4 a 5 cm de dilatação). Nesse momento, a maioria solicitou analgesia. Para aquelas que conseguiram ficar sem analgesia e que chegaram até 8 a 10 cm de dilatação, a decisão não mudou. A instabilidade no ser humano importa, e muito. Um sujeito saudável pode preferir a morte a ter de viver com algumas debilidades, mas a doença, a hospitalização e as fases e contingências da vida podem mudar as preferências pessoais. Apenas 10% a 14% das pessoas que sobrevivem a uma tentativa de suicídio voltam a tentá-lo, e eventualmente conseguem, num período de dez anos, o que sugere que o desejo de morrer é mutável.

Se podemos, de fato, trazer algo de positivo nesta "novidade", é que o mesmo pode estimular a conversa entre médicos e pacientes sobre os tratamentos na fase final da vida. Mas, mais que documentos, devemos estimular, sim, uma mudança de atitude frente a uma morte inevitável.

Cicero Urban, médico oncologista e mastologista, é professor de Bioética e Metodologia Científica no curso de Medicina e na pós-graduação da Universidade Positivo e é vice-presidente do Instituto Ciência e Fé.

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