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A semelhança óbvia das biografias do presidente Lula e do defenestrado renunciante Severino Cavalcanti nas origens nordestinas, na infância pobre, a penosa ascensão na áspera luta com a mudança para São Paulo e, daí por diante, com o sucesso na carreira política e até na coincidência das provações com desfechos diferentes.

No longo discurso em que se despediu, com voz embargada e lágrimas nos olhos, da presidência da Câmara e do mandato de deputado, deixando o baixo clero no desespero pela queda na mesma cambulhada de escada abaixo, o orador parece inspirar-se no modelo lulista, adaptando as desculpas, reproduzindo as justificativas e seguindo à risca o tortuoso atalho tático de escapar da realidade e vagar pelos vazios infinitos da fantasia.

Se a verdade é desconfortável, a versão ajeita os enredos que expõem, nos retoques das variantes, o truque das interpretações e o golpe final da coragem de afirmar, com o rosto impassível, limpo, sem o rubor do constrangimento.

Tal como o molde que resiste às denúncias em cascata do escândalo da corrupção recordista, escapa das armadilhas do mensalão e aos mundéus do caixa 2, o marido de Dona Amélia lembra que a pobreza do menino nordestino, forçado a trabalhar desde cedo para ajudar a família, impediu que freqüentasse a escola. Queixa-se: "não consegui ir além do primeiro grau, pois devia arranjar logo um emprego".

Lula, graças à determinação de sua mãe, Dona Lindu, que enfrentou 13 dias de viagem de caminhão para fugir da miséria absoluta e correr o risco da aventura em São Paulo, concluiu o curso primário em três escolas públicas e, no Senai, ao mesmo tempo em que conseguiu o certificado de aprovação no curso de torneiro mecânico, concluiu o segundo grau, em curso paralelo.

Nos passos seguintes, a fortuna foi mais generosa com Severino. Conta: "Fui para São Paulo em busca de trabalho e de esperança. Deus me ajudou. O nordestino tornou-se um caixeiro-viajante e essa alquimia permitiu-lhe estabelecer-se como próspero comerciante".

Como é sabido e sempre recontado nos seus discursos, Lula subiu a escada do sucesso pulando degraus, quando se afirma como líder sindical dos metalúrgicos, comanda greves, funda o Partido dos Trabalhadores, candidata-se a presidente da República, amarga três derrotas e é eleito com 52 milhões de votos.

Por curvas e rodeios, a trajetória de Severino foi mais longa e lenta. Décadas como deputado estadual à Assembléia Legislativa de Pernambuco, prefeito da sua cidade natal, João Alfredo, e o impulso para os sucessivos mandatos de deputado federal, desde 1955. Enfim, há oito meses, a glória que o levou ao infortúnio da renúncia, com a eleição para presidente da Câmara, com os 300 votos do baixo clero e da obtusidade da oposição, engordada pelas dissidências do PT e demais legendas da base aliada.

Na turbulência das crises paralelas, que se entrelaçam no balaio dos mesmos escândalos, a dupla de nordestinos se encontra, aos esbarros, nas trilhas escapistas. O caiporismo joga Severino no poço sem fundo da prova irrefutável do cheque de R$ 7.500, uma ninharia na farra petista de milhões, emitido por Sebastião Buani, concessionário do restaurante da Câmara, em nome de Gabriela Kênia, secretária do presidente.

Absolutamente clara e indesmentível o flagrante que deságua na renúncia. O que não embaralhou a montagem da fantasia das desculpas. A lista dos culpados pela urdidura da trama fantástica não se enriquece com achados da criatividade. A lengalenga de sempre: "a elitezinha" parlamentar, que não quer largar o osso; a mídia que abusa da liberdade da imprensa, a conspiração dos interesses contrariados. Quer dizer, os outros. Ele não fez nada de errado, foi crucificado por mentiras, calúnias, difamações, trampas de invejosos e desafetos.

Nunca foram mais significativas as coincidências. Também o presidente Lula atribui aos outros as trapalhadas em que o governo e o PT se emporcalham, com reflexos na queda dos índices de aprovação das últimas pesquisas. Pela primeira vez, a curva de desaprovação sobe a 49%, ultrapassando os 45% que sobram dos 70% do percentual de aprovação do início do mandato. Lula perdeu a confiança da maioria da população: é o presidente da minoria.

A culpa é dos outros. O PT nas cólicas da crise, aponta para a conspiração da mídia, de parceria com a oposição.

Estamos, portanto, informados que o PT jamais montou o esquema de corrupção que encheu a arca do caixa 2 para o financiamento de campanhas; não contratou com cambistas a transferência de contas no exterior do monte de recursos para o mensalão pagos a deputados para votar com o governo ou aderir aos partidos aliados; o tesoureiro Delúbio Soares e o Marcos Valério são fantasmas, invencionices dos conspiradores.

Na sacola das coincidências, Severino e Lula nem sempre se repetem. Severino renunciou ao mandato de deputado. Lula flutua no espaço sideral, há anos luz do governo e da crise. É como estivesse blindado pela imunidade da angelical irresponsabilidade.

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