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Fatos recentes envolvendo a Polícia Militar do Paraná, para além das questões jurídicas, acabam por nos remeter à pergunta que abre esta reflexão.

No momento em que esta pergunta-reflexão era cantada, olhava-se um passado recente e cheio de exemplos dramáticos e mesmo trágicos de um modelo policialesco e ditatorial, que parecia justificar o tal refrão. O passado que encerra tais questões dramático-trágicas, porém, é bem mais longínquo que os anos 60 e 70: a história do país é uma história de violências e de extermínios. Índios, negros e imigrantes padeceram em um modelo autoritário e desigual.

A polícia foi eleita como o segundo "aparelho tecnológico da nova arte de governar", na expressão de Foucault, com a Revolução das Luzes. A esta polícia, sempre pensada como força pelos povos nos quais nos inspiramos, delegava-se muito antes do século 18 a função de identificar quais eram os crimes e quem eram os criminosos. Entretanto, não havia ferramental teórico para tal atividade. Eram as classes senhoriais que diziam, porque a elas somente se conferia o poder de falar, que eram as classes baixas, compostas por trabalhadores, peões e escravos forros que representavam os sujeitos perigosos. E aí se encerra uma carga determinista: os sujeitos que apresentavam as características que os relacionavam ou ligavam às classes perigosas estavam submetidos às polícias. Ao fim do século 19 e pouco antes de ser proclamada a República, três ministros da Justiça expediram Avisos-Circulares para que fossem coibidos abusos cometidos por autoridades policiais.

No início do século 20, os perigosos eram, em particular, os comunistas. O fenômeno da Revolução Russa assombrava as forças do poder instituído mesmo no Brasil. O chefe de polícia da Capital Federal, Aurelino Leal, convocou uma conferência entre Polícia e Judiciário para acabar com os movimentos de greve e para conter as classes trabalhadoras. As primeiras Escolas de Polícia e Institutos de Identificação começaram a surgir para catalogar e fichar indivíduos. O Estado Novo e a ditadura militar, nas décadas seguintes, investiriam no modelo de documentação, controle e vigilância.

Com os trabalhos da Consti­­tuição de 1988, muitas questões sempre discutidas acirraram debates, como o ciclo completo de polícia e o fato de a segurança pública figurar como direito. Todavia, pouco avançaram na concepção téorico-fundante das polícias. Isso parece contribuir para que as polícias sempre pensadas como força pública e não como serviço público, orientadas pelos paradigmas seculares e carentes de uma concepção condigna (não apenas na carreira, mas propriamente na sua formação e necessária atualização a partir de Escolas de Polícia), não tenham conseguido obter ferramental teórico para romper com aquilo que se chama de "cultura de casos" e que conduz, por vezes, a um isolamento.

É preciso romper com uma prática que pode representar um reflexo histórico de uma cultura da e sobre a polícia. É preciso propor uma nova concepção téorico-fundante que passe não apenas pelas próprias polícias, mas por aquilo que a comunidade pode esperar e exigir deste que é, como tantos outros, um serviço público.

Priscilla Placha Sá, professora de Direito Penal da UFPR e da PUCPR, é membro do Núcleo de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.

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