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Nunca em quase 200 anos de independência teve um processo judicial um impacto formador da consciência cívica como o do mensalão. Até agora, o que fazia falta entre nós não era a corrupção em larga escala, mas um processo desapaixonado para julgá-la.

Acusações de corrupção se encontram na raiz tanto do suicídio de Vargas como do impeachment de Collor, assim como de escândalos sem conta de ministros, parlamentares e governadores. Esses episódios deixavam o país frustrado e desesperançado, pois o desfecho político acabava por impedir a cabal avaliação judiciária dos fatos.

Pela primeira vez, estamos tendo um contraditório de acusação e defesa, de exame minucioso de provas, de discussão de pontos de vista distintos em matéria de fatos e da aplicação das leis. Fora os pecados veniais do anacronismo linguístico e do exibicionismo das citações, há de se reconhecer a qualidade exemplar dos procedimentos.

É alto o nível do debate e respeitoso o dos desacordos; a dignidade e a compostura têm prevalecido quase sempre, não se percebendo sombra de sectarismo político-partidário. A paixão, quando aparece, é a da indignação da consciência moral e jurídica diante da enormidade dos delitos. A serenidade e brandura do presidente Ayres Britto têm muito a ver com a geração desse efeito calmante e tranquilizador.

Creio que os cidadãos, maltratados pelos guardiões das instituições, esperavam pouco ou nada e se surpreenderam pela firmeza e pelo equilíbrio da maioria dos juízes. A condenação do ex-presidente da Câmara, segunda pessoa na hierarquia da república, não tem precedentes no Brasil e certamente merece a qualificação de histórica.

No início da operação Mãos Limpas, Norberto Bobbio explicou por que a corrupção era um câncer que destruía a democracia. Não se baseando no medo, o regime democrático pressupõe a confiança dos cidadãos entre si e, sobretudo, nos governantes e nas instituições.

O cidadão, que tem o direito de saber tudo, de repente descobre, chocado, que não sabe nada, que lhe escondem o que se passa entre as quatro paredes do poder. Perde, então, a confiança nas instituições e nos homens que as profanam, começa a descrer sistematicamente de tudo.

A fim de reconstruir a confiança, é preciso que a transparência de um processo revele o escondido aos olhos de todos e submeta as ações tenebrosas ao efeito purificador da luz do sol. O cidadão precisa tomar conhecimento dos fatos que lhe escamotearam; a responsabilidade por esses fatos deve passar por apuração cuidadosa. Tudo tem de culminar pela necessária imposição de pena justa que restabeleça os valores da sociedade violados e esteja em proporção com a gravidade das violações.

Nesse sentido, um grande processo público transmitido ao vivo se parece ao papel que desempenhava a tragédia na sociedade grega. A intensidade dos sentimentos de indignação e revolta despertados pela narrativa só pode ser sublimada pela justiça do julgamento, nunca pela violência da vingança. Talvez na sua melhor hora, o Supremo Tribunal Federal está proporcionando à população humilhada e ofendida essa catarse purificadora da consciência e restauradora dos valores morais.

Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco.

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