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A braguilha semiaberta, com o zíper até a metade, atrai o olhar. A mulher está bem trajada, calça jeans de marca fina, salto 15, blusa chique, adereços, maquiagem, mas os olhos só veem o ponto desarrumado. Tento forçar a visão do conjunto, mas a natureza é mais forte que a vontade e o detalhe supera o todo. Fico na dúvida se digo a ela ou silencio. A interlocução é fugaz. Vendedora numa loja onde entrei magnetizado por livro na vitrine, dificilmente a verei de novo. O distanciamento pessoal me leva a mais uma dúvida: faço-a passar vergonha na minha frente ou deixo outra pessoa chamar a atenção para o detalhe? Não consigo decidir, compro o livro e saio correndo, com sensação de culpa que me faz fixar a atenção em todas as pessoas que miro no aeroporto. Ai, meu Deus, é o dia de ver os detalhes!

Olhos se movimentando entre as páginas do livro e as pessoas que caminham, as que estão sentadas esperando o voo, balconistas da cafeteria, aeronautas. Ali, cinto que pulou um passador; lá, meia calçada ao contrário, com o calcanhar sobre o dorso do pé – uau, como esse cara aguenta o incômodo! –; acolá, gravata torta, gola desaprumada, calça com o vinco desalinhado. A alvura do lençol no varal dói nos olhos que teimam em fitar a nódoa minúscula que está no cantinho, numa costura. O texto é divino, mas a mente se fixa na vírgula fora do lugar ou no espaçamento exagerado entre duas palavras na segunda linha do quatro parágrafo, ou na letra fora de posição que, embora mantenha o sentido, não o faz do modo esperado.

Os botões estão fora da casinha; a camisa fica assimétrica. Olho para meus próprios botões para verificar se estão corretos e rio por dentro pensando que estou "fora da casinha" de tanto prestar atenção a miudezas. É curiosa a obsessão pela partícula em detrimento do conjunto. O sujeito tem a oportunidade de ver estrelas e encafifa com a marquinha de dedo no canto da lente e perde a oportunidade rara de ver o trânsito de Vênus. Passa alguém com a ponta do colarinho esquerdo da camisa virado, posicionado sobre a lapela do paletó. Dá comichão de vontade de dizer ao sujeito que ele está todo arrumadinho, porém há um detalhe. É... o diabo mora nos detalhes.

Detalhes tão pequenos são coisas muito grandes pra esquecer, diz, com toda razão, o Rei Roberto Carlos. A música é bonita, mas apenas fragmentos saltam desafinados da boca. A pessoa sentada ao lado me olha. Opa! Melhor parar de balbuciar a melodia que toca no gramofone da minha cabeça e chega aos ouvidos alheios como grunhido desconexo. Continuo a leitura das análises políticas e culturais do franco-libanês Amin Maalouf, tentando me concentrar na questão dos efeitos da Guerra dos Seis Dias, ocorrida em junho de 1967; contudo, a voz da Elis Regina invade minha mente cantando bolero de dois pra lá, dois pra cá, descrevendo os brincos iguais ao colar e a ponta de um band-aid no calcanhar. Imagino a cena e acho que não conseguiria tirar o olhar dos pés da dançarina.

Hora de embarcar, o aeroporto de Curitiba abriu. Gente se levanta ansiosa para esperar na fila e, de repente, os olhos vão para a linha desfiada na perna da meia-calça da moça da frente. Melhor deixar pra lá!

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