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A proposta de reforma do Código Penal entregue pela comissão de juristas ao Senado tem inúmeros pontos positivos em sua redação. A unicidade legislativa penal foi um ganho – desde a edição do código vigente, não só ele se tornou uma colcha de retalhos com atualizações constantes que lhe desfiguraram o caráter orgânico, como muitas leis especiais foram adotadas. Um novo diploma que abarque tudo em um só texto é necessário para uma melhor compreensão jurídica e aplicação da lei, com ganhos inequívocos aos profissionais do Direito e ao povo em geral.

O aumento da pena máxima do homicídio culposo é excelente, por exemplo. Também com o novo estatuto, o preso primário precisa cumprir metade da pena para progredir em caso de crime hediondo, o que é mais do que os dois quintos anteriores; no caso de reincidência, mantêm-se os já existentes três quintos.

A despeito de tais questões, a maior parte do texto se apresenta em descompasso com o que pensa, sente e crê o brasileiro médio, trabalhador, pagador de seus impostos e com um profundo sentido moral do que é correto e do que é errado. A proposta ignora um dos mais fundamentais pilares de nossa tradição jurídica, por exemplo: o valor inalienável da vida humana.

Isso é claro, por exemplo, ao permitir que os índios não aculturados possam não ser punidos quando praticarem aquilo que o Brasil considera crime. Uma tribo perdida na floresta que faça churrasco de bebês tem a garantia legal de que pode continuar tranquilamente com seu assado de fim de semana. A possibilidade de não se aplicar a pena na eutanásia também é sinal de alerta. Os termos são redigidos de modo a não deixar as coisas claras, havendo perigo de se justificar o assassinato puro e simples travestido de piedade para com quem sofre.

Igualmente, as anteriores hipóteses de exclusão da pena no aborto tornam-se exclusões do próprio crime. Aliás, novas hipóteses são criadas: não só a anencefalia e doenças análogas – em uma eugenia assustadora –, mas também "por vontade da gestante, até a 12.ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade." Quer dizer, a mãe não se sente preparada para ter filho e, então, o mata? Qual a diferença para uma mãe psicologicamente perturbada que mata seu filho adolescente?

Jogo de azar, de mera contravenção, passa a ser crime, mais grave. O bullying, de problema de educação, virou caso de polícia, ao ser criminalizado. A homofobia, conceito esse absolutamente indeterminado, se torna também tipo penal, tornando delinquente simplesmente quem considera errada a prática homossexual e preparando-se para jogar no cárcere padres e pastores que, de seus púlpitos, atrevam-se a expor a Bíblia. É a volta dos crimes de opinião, tão típicos das ditaduras? A posse de drogas para uso pessoal deixa de ser crime, e se torna delito com pena de até quatro anos não socorrer um animal. Resumindo, matar seu filho e ter cocaína para cheirar não serão delitos, mas jogar no bicho, chamar um gordinho de "baleia" e deixar de socorrer um animal podem colocar alguém na cadeia.

A comissão de juristas não foi sensível aos apelos do brasileiro, que quer dura reprimenda aos criminosos. Foi leniente com fatos graves, deixando-os de considerar crimes, e tornou delitos fatos que poderiam ser resolvidos em outra esfera que não a penal. Trata-se de um Código ideológico, escrito por intelectuais em desconexão com a realidade brasileira e que não representam as mais profundas aspirações do nosso povo.

Rafael Vitola Brodbeck, delegado de polícia no Rio Grande do Sul, é autor de Lei de Drogas Anotada (Ed. Verbo Jurídico) e Inquérito policial (Ed. Núria Fabris).

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