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Há determinadas crises sociais, econômicas, políticas e culturais que provocam o sentimento de anomia. Certos problemas, coletivos ou individuais, acarretam o sentimento de desesperança. Mas existem incontáveis situações que, embora rotineiras na vida, provocam outro estado de alma. Elas podem ser definidas por uma só palavra: melancolia.

Essas reflexões foram aviventadas em minha recente visita à exposição Mélancolie – Génie et folie en Occident (Melancolia – Genialidade e loucura no Ocidente).

Um imenso e organizado conjunto de pensamentos, objetos, fotografias, esculturas, desenhos e pinturas ilustram o tema para os milhares de freqüentadores diários das galerias do Grand Palais, de Paris.

O texto de introdução ao evento lembra que a melancolia é tema de toda a história ocidental, desde a Antiguidade até os dias correntes. Sob variadas designações e formas de aparecimento, o fenômeno nunca deixou de interessar aos médicos, filósofos e artistas, além de inúmeros pesquisadores e estudiosos das ciências humanas e sociais.

Profundamente ligado às artes plásticas, o assunto produziu uma rica iconografia que exprime doçura e violência, prostração e fúria, sonhos e desespero. Com mais de 200 obras, a exposição oferece um notável panorama de realidade e fantasia.

No início do século 19, a melancolia foi objeto de estudos especializados dos médicos. Procurando isolar e distinguir outros conceitos adotados ao longo dos séculos, o médico Jean-Étiene Dominique Esquirol propôs uma nova denominação para esse estado psíquico: lipemania. Para ele, o vocábulo melancolia, consagrado na linguagem comum para traduzir a tristeza habitual de certos indivíduos, deveria ser deixado aos moralistas e aos poetas que não são obrigados, em suas obras, ao rigor das palavras como se exige dos médicos. E sintetizou: "Não é mais uma dor que intimida, que grita, que chora, é uma dor que se cala, que não tem lágrimas, que é impassível".

Em uma de suas imortais peças de teatro, Shakespeare (1564–1616), confessou: "A minha melancolia não é a do erudito, que é emulação; nem a do músico, que é fantasiosa; nem a do cortesão, que é orgulhosa; nem a do soldado, que é ambiciosa; nem a do advogado, que é política; nem a da mulher, que é bela; nem a do amante, que é tudo isso. É uma melancolia toda minha, feita de muitos elementos, extraídos de muitos objetos. É, na verdade, a variegada contemplação de minhas viagens, em que o meu freqüente ruminar me envolve numa gratificante tristeza". Shakespeare (Como gostais, ato IV).

Olhando e pensando, ouvindo e sentindo pelas galerias do museu francês as imagens de tristeza reveladas em telas como as de Van Gogh (1853–1890), Delacroix (1798–1863), Théodore Géricault (1791–1824), Edward Hopper (1882-1967), em esculturas e trechos de prosa e poesia, eu pensei nas causas de tristeza de meu país e nas lembranças pessoais.

Voltando à cidade conheci a exposição de Guita Soifer, no Museu Metropolitano de Arte de Curitiba (MuMA) que trata do mesmo e infinito tema. E com o sugestivo título: Objetos de melancolia.

São fotografias de passado distante, rastros de viagem, peças de roupa velha, coisas reanimadas pela sensibilidade da artista para quem a melancolia não precisa ser definida; basta ser sentida. "Mas não como tristeza", adverte. Distribuídos em amplo espaço de uma enorme sala, propositadamente vazia, os objetos compõem lembranças simples que identificam os dois tipos da matéria-prima da composição estética: tempo e memória.

Para o crítico de arte e curador, Agnaldo Faria, a instigante produção tem como referência essencial "o tempo da vida que é também o tempo da morte; que subjuga indistintamente todos os seres e as coisas". E para o escritor e jornalista José Castelo, "uma palavra sintetiza o trabalho de Guita Soifer, e essa palavra me atropela: assombro. E o que sinto: espanto".

Na rotina dos dias posso ver e sentir que a melancolia é, também, um atalho para um novo tipo de encontro. Não apenas com o passado. Nem com a tristeza ou com a loucura.

René Ariel Dotti é advogado e professor universitário; ex-secretário de cultura do estado do paraná.

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