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Mercado livre de energia
Mercado livre de energia deve ser aberto para todos os consumidores brasileiros até 2028. Assim, compra da energia poderá será feita das geradoras, passando por comercializadores.| Foto: Divulgação/Copel

Parece cada vez menos distante o dia em que todo brasileiro poderá escolher seu prestador de serviço de energia elétrica. O mercado livre, em que clientes compram energia diretamente dos geradores, vem passando por mudanças regulatórias e prevê a abertura para todos os clientes do grupo A, atendidos pela alta tensão, para janeiro de 2024. São 100 mil unidades consumidoras em potencial. Já a abertura para a baixa tensão, que engloba os consumidores residenciais, está sendo discutida pelo Ministério de Minas e Energia, e a previsão é que aconteça até 2028. E aí, estamos falando de 89 milhões de contas.

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Grandes consumidores, como indústrias e comércio, assim como consumidores pequenos, se mostram favoráveis ao modelo, amplamente utilizado na Europa e nos Estados Unidos. E os comercializadores de energia, empresas que fazem a ponte entre o gerador e o cliente, no atacado e no varejo, já articulam estratégias para ganhar mercado.

O mercado livre de energia é atualmente restrito a clientes com consumo igual ou superior a 500 kW. Atende, hoje, cerca de 31 mil unidades consumidoras, que respondem por 24,6 GW médios. “É 37% de toda energia elétrica consumida no Brasil. Com a abertura do restante do mercado de energia em alta tensão, o mercado livre poderá atender cerca de 48% do consumo nacional, ou seja, 32 GW médios”, antecipa o CEO da comercializadora Electra Energy, Ricardo Suassuna.

Estar no mercado livre significa uma redução entre 15% a 30% nos custos com energia. Mas, para entidades representativas do setor, a abertura para migração deve observar questões legais para garantir que o rateio dos custos assumidos pelas distribuidoras de energia, como compra de energia a longo prazo, não fique para quem permanecer no mercado cativo, este que temos hoje para a maior parte dos consumidores, em que o cliente consome energia de apenas uma concessionária.

“A abertura deve ser feita de forma organizada e planejada, de modo a evitar uma crise setorial que traria malefícios para todos e, principalmente, para o conjunto de consumidores. Meu entendimento é que mais do que nunca se torna necessária uma revisão ampla do arcabouço setorial contemplando essa abertura de todo o segmento de consumo”, ressalva o presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata, que já foi presidente do Operador Nacional do Sistema (ONS).

Para ele, o modelo setorial em vigor, implantado em 1998 e revisado em 2004, vem sofrendo alterações tópicas que não são suficientes para a sustentabilidade do setor elétrico brasileiro em função das mudanças profundas pelas quais passou o setor. “Podemos citar as mudanças da matriz elétrica, na forma do consumo e na autonomia dos consumidores”. E a abertura de todos os consumidores ao mercado livre, portanto, viria se somar a essas alterações.

Ricardo Suassuna, CEO da Electra Energy
Ricardo Suassuna, CEO da Electra Energy: com abertura, mercado livre poderá atender cerca de 48% do consumo nacional de energia.| Divulgação

Sinais dos potenciais consumidores

Para se ter uma ideia de como o mercado deve responder, a Sondagem Nacional da Indústria, pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgada no início deste mês, apontou que 56% das indústrias que estão no mercado cativo têm interesse em migrar para o mercado livre a partir de 2024. Atualmente, cerca de 10,5 mil empresas industriais operam nesse modelo, a maior parte delas, de pequeno porte. A portaria 50/2022, que vai permitir a migração para todos os clientes que se enquadram na alta tensão, foi publicada em outubro do ano passado.

Do perfil de consumo atual, a sondagem mostrou que, das grandes empresas, 59% já estão no mercado livre, sendo que 52% compram energia exclusivamente como consumidores livres – o restante mescla com consumo no cativo. Das indústrias de médio porte, 57% estão no mercado cativo e 25% no livre. Entre as pequenas, essas porcentagens variam para 70% e 6%, respectivamente. Uma fatia de mercado em que as comercializadoras de energia estão de olho.

Para os consumidores do grupo B, que consomem energia na baixa tensão, como residências, escritórios, pequenos comércios e edifícios, também há previsão de abertura de mercado, mas para daqui a 5 anos.

Este consumidor menor também se mostra favorável à possibilidade de escolher seu fornecedor de energia. Pesquisa encomendada pela Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) ao Datafolha, em novembro de 2022, apontou que 8 entre 10 brasileiros defendem essa hipótese, podendo portabilizar a conta de luz, como fazem com a telefonia. A pesquisa mostrou que 54% dos entrevistados acreditam que o preço da energia tende a cair com a abertura do mercado e mostrou que, de cada 10 brasileiros, 7 efetivamente trocariam de fornecedor, por motivo de preço (63%), busca por fontes renováveis (20%) ou qualidade no atendimento (16%). A pesquisa ouviu 2.088 pessoas em 130 municípios brasileiros, com margem de erro de 2 pontos percentuais.

Outra evidência disso é o crescimento dos sistemas de geração distribuída (GD) nos últimos anos, clara demonstração de que os pequenos consumidores buscam alternativas para reduzir suas contas de luz. A modalidade consiste em gerar a própria energia, principalmente por fonte fotovoltaica. “Eles passarão a ter mais uma opção de contratação da energia a preços competitivos, uma vez que a livre contratação proporcionará economia significativa nas contas de luz sem a necessidade de investimentos, como acontece no caso da GD”, ressalta Ricardo Suassuna, da Electra.

Indústrias compõem Grupo A, tarifado na alta tensão.
CNI aponta que 56% das indústrias que estão no mercado cativo têm interesse em migrar para o mercado livre.| Gilson Abreu/AEN

No final de 2022, o Ministério de Minas e Energia (MME) divulgou os resultados da consulta pública 137/2022, que colheu sugestões sobre como deve ser conduzida a liberação. Segundo o órgão federal, 94% dos 53 agentes participantes se disseram favoráveis à abertura do mercado para a baixa tensão. No entanto, boa parte deles também trouxe à tona questões do arcabouço legal do setor a serem tratadas para garantir que a migração não onere os consumidores cativos. O ministério afirma que as contribuições estão em análise e serão consideradas para tomada de decisão sobre o tema.

Até lá, há que se pensar no que resolver em termos legais para o setor como um todo. E, do ponto de vista de modelo de mercado das comercializadoras, traçar estratégias para lidar com as demandas de clientes que pela primeira vez vão contratar energia como contratam, por exemplo, o fornecedor de telefonia e internet.

Um mercado em potencial

Para as comercializadoras de energia há uma grande oportunidade à vista. E elas já estão se preparando. Investimentos em tecnologia, serviços digitais e cartela de produtos diferenciados, além de investimentos vultosos em marketing, estão no alvo.

Mas, para a Câmara de Comercialização de Energia (CCEE), associação que faz a gestão de compra e a venda de eletricidade no país envolvendo geradores, distribuidores, comercializadores e consumidores, a primeira lição de casa é preparar as comercializadoras, habituadas a vender no atacado, para um novo modelo de mercado.

“Precisamos desenvolver mais a categoria de comercializador varejista, criada para gerenciar todas as oportunidades e os riscos que são inerentes à compra e venda de energia”, afirma a vice-presidente do Conselho de Administração da CCEE, Talita Porto. Para ela, os pequenos consumidores não vão querer se envolver diretamente em processos que são complexos por natureza, como é a gestão de compra e venda de energia. “E é o varejista quem irá atendê-los de forma que tenham a mesma comodidade que têm hoje no segmento das distribuidoras”.

Hoje no Brasil 50 empresas se enquadram nessa categoria, número considerado bom pela entidade. “O que precisamos, agora, é garantir uma base robusta de clientes para que esses grupos possam ganhar escala e uma operação mais eficiente, além de ajustarmos questões técnicas e regulatórias. Por isso, consideramos muito acertada a decisão do MME de determinar que os novos entrantes no ambiente, a partir de 2024, sejam representados por varejistas”, diz, citando mais uma prerrogativa da portaria 50/2022.

Nesse ponto, a Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace) levanta uma observação. Para o diretor-presidente, Carlos Faria, a regulamentação vai ter de se atentar à representação varejista dos consumidores com carga inferior a 500 kW na CCEE. “Esse processo não pode criar uma reserva de mercado para a atuação de comercializadoras varejistas. Caso contrário, de pouco adiantaria abrir o mercado e obrigar, na prática, o consumidor a trocar a distribuidora por um comercializador para representá-lo na câmara”, explica.

Sendo assim, para a entidade, é importante que outros fornecedores venham a fazer parte do processo – e, assim, fomentar um processo sadio de competitividade.

Carlos Faria, diretor-presidente Anace
Carlos Faria, da Anace: regulamentação deve se atentar à representação varejista.| Divulgação

De todo modo, para o consumidor os trâmites devem ser facilitados. A representação varejista - lembra Suassuna, da Electra - desonera o consumidor da adesão à CCEE e da gestão da relação entre energia contratada e consumida. “Ou seja, para o consumidor, o seu fornecedor de energia elétrica se comportará como uma distribuidora digital, com preços mais competitivos que a sua distribuidora atual, que possui tarifas reguladas”, comenta.

E quem já está no mercado tem a chance de usar expertise e o tempo que resta para se preparar para isso. A Delta Energia, de São Paulo, acredita que marketing vai ser chave nesse aspecto. “Uma coisa é conversar com 100 ou 200 potenciais consumidores, outra coisa é com milhares”, analisa Luiz Fernando Leone Vianna, vice-presidente Institucional e Regulatório do grupo.

Outro aspecto é a questão tecnológica, que deve ser grande desafio para as comercializadoras varejistas. “Pensando nisso, a gente adquiriu uma empresa de tecnologia que desenvolve medidores para colocar dentro da casa ou indústria do consumidor para que ele monitore o consumo de energia. Queremos um projeto taylor made [produtos ou serviços feitos sob medida], diferente do que as distribuidoras oferecem. Em vez de chegar uma conta no final do mês com o total do consumo, o consumidor acompanha o quanto gasta e de que maneira gasta ao longo do mês”, antecipa.

Luiz Fernando Leone Vianna, do Grupo Delta Energia
Luiz Fernando Leone Vianna, do Grupo Delta Energia: produtos taylor made para competir pelo consumidor que está por vir.| Divulgação

Não que algumas distribuidoras não estejam nesse radar, mas atingir um público tão amplo parece longe de ser uma realidade no curto ou médio prazo. E, para além da questão tecnológica, também vai ser preciso se atentar ao atendimento. No mercado livre, o cliente paga duas contas. A da energia que ele compra, para o comercializador, e a da concessionária, referente ao chamado mercado fio, que é a taxa pelo uso da rede da distribuidora. Afinal, não tem como a energia chegar à casa, indústria ou comércio de qualquer pessoa sem usar a infraestrutura da distribuidora. “Vamos ser o único ponto do consumidor. Ele terá uma conta e um ponto de contato. Nós vamos pagar para a distribuidora o fio”, explica.

Demandas mais exigentes

Ainda neste conceito taylor made, Fillipe Soares, diretor da Copel Mercado Livre, braço da companhia de energia paranaense dedicado à comercialização de energia nessa modalidade, nota que os benefícios da migração incluem a possibilidade de firmar negociações diretas com o fornecedor na formatação dos contratos. “É uma associação de flexibilidade com redução de custos, permitindo o melhor atendimento da necessidade de cada um, como questões comerciais, forma de pagamento e garantias”, afirma.

E, assim como em outras áreas, este mercado também está criando a figura de um consumidor mais exigente, que busca agilidade nos processos e produtos de origem. “Daí a necessidade de oferecer soluções digitais em que o cliente consiga ter acesso rápido, seja ao atendimento ou à formalização de um contrato, além de abertura para outros produtos. No nosso caso, na linha da agenda ESG, já fornecemos certificados de energia renovável aos clientes. Com isso, é possível rastrear o fornecedor”, explica. Demanda que deve ser cada vez mais acentuada, uma vez que muitas empresas precisam apresentar ações concretas de descarbonização pelos compromissos adotados por seus grupos, seja no Brasil ou no mundo, no caso das multinacionais.

Fillipe Soares, diretor da Mercado Livre
Fillipe Soares, da Copel Mercado Livre: foco em produtos diferenciados, como energia certificada para cumprir agenda ESG.| Valdenir Daniel Cavalheiro/Copel

Na Electra, a agenda ESG também é um dos focos. E a empresa, assim como a Copel Mercado Livre, vai aproveitar dos ativos que detém na geração de energia renovável para vender com esse selo. “Nesse contexto, a sinergia entre as empresas que compõem o grupo contribuirá positivamente para atingir nossos objetivos”, reforça o CEO Ricardo Suassuna.

O que precisa ser feito até 2028

Até que a definição das regras para abertura do mercado à baixa tensão saia, há um caminho. E, para a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), ele passa por definições na complicada regulamentação do setor, especialmente no que tange à questão das concessionárias.

Para a associação, há que se levar em conta os riscos trazidos pela sobrecontratação (ou seja, contratos de compra de energia já firmados e que precisarão ser pagos); os custos de usinas termelétricas (lastro que é arcado apenas pelo mercado regulado); e os subsídios aos usuários que compram energia proveniente de fontes de incentivadas. A entidade estima que estes impactos poderão trazer custos totais às tarifas de até R$ 116 bilhões aos consumidores, sendo R$ 73 bilhões exclusivamente ao mercado regulado.

Nesse sentido, a associação acredita que a abertura de mercado deve ser feita não por meio de portaria, mas de forma legal mais abrangente, como por meio do Projeto de Lei 414/2021, que tramita no Congresso Nacional.

Para Luiz Fernando Leone Vianna, que já foi presidente da Copel e da Itaipu binacional, a preocupação do rateio dos contratos legados é legítima, mas tem solução. “Um fator é que nem todos os consumidores (da baixa tensão) migrarão (para o mercado livre), até porque tem os de baixa renda, que têm subsídio. E existe também uma descotização em curso. A Eletrobras é uma, e a própria Itaipu, que está para ser definido como fica a energia”, explica, referindo-se à finalização, agora em 2023, do contrato de venda de energia firmado entre Brasil e Paraguai, que deve passar por revisão das prerrogativas antes de uma renovação ainda este ano.

“Essas descotizações reduzem a quantidade de contratos legados. E, ainda, se for necessário, existe a possibilidade de criação do encargo de transição, e isso é previsto no PL 414. Mesmo quem migrar para o mercado livre não vai deixar de arcar com o ônus (aos que ficam no cativo), se houver necessidade”, antecipa Vianna.

A CCEE também acredita que o prazo de cinco anos até a abertura para a baixa tensão é suficiente para resolver as questões pendentes. “Parece desafiador, mas fizemos todos os estudos e simulações necessários para nos assegurarmos de que é (um prazo) bastante factível. Na CCEE, nós sempre defendemos que a abertura tem que ocorrer de forma sustentável, contínua e previsível, e esse cronograma reflete essa crença”, expõe Talita Porto.

Vale lembrar que a migração para o mercado livre será opcional. “Não nos parece razoável imaginar que todos os consumidores vão optar pela migração assim que o ambiente for aberto para eles”, ela destaca. A tendência, acredita, é que o processo seja gradual, como ocorreu em todo o mundo. E haverá tempo para que todos se preparem para uma nova realidade no consumo de energia no Brasil.

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