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Hospital de Clínicas da UFPR em Curitiba.
Hospital de Clínicas da UFPR em Curitiba.| Foto: Cassiano Rosario/Gazeta do Povo / Arquvo

Médicos que atuam no Hospital de Clínicas (HC) em Curitiba afirmam que o grande volume de pacientes com Covid-19 tem prejudicado o atendimento de outras doenças. A Gazeta do Povo ouviu cinco médicos de diferentes áreas que relatam o mesmo quadro no hospital-escola da Universidade Federal do Paraná (UFPR), maior complexo de saúde do estado. Com leitos cedidos para tratamento da Covid-19, a espera por procedimentos e cirurgias de outras enfermidades aumenta. Com o atraso no atendimento, relatam os profissionais, a condição clínica do paciente, que normalmente já é crônica pelo fato de o hospital atender casos de alta complexidade, agrava-se.

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“A gente entende o quadro crítico da pandemia. Mas os pacientes que não são de Covid-19 estão pagando um preço muito alto”, enfatiza uma médica que atua em um dos setores que faz cirurgias no Hospital de Clínicas. “Nessa espera por leito, a doença pode progredir ou o paciente pode ter uma infecção mais grave, prejudicando a cirurgia. E pode acontecer o pior: a morte”, reforça a médica que, assim como os outros profissionais ouvidos nesta reportagem, preferiu não ter o nome revelado.

A ala em que atua a médica tem a agenda lotada até novembro. Porém, muitos pacientes poderiam adiantar o procedimento se as vagas de internamento não estivessem ocupadas por pacientes com Covid-19. “Hoje temos uma fila de 15 pacientes que não conseguem internar para cirurgia porque não tem leito”, reforça.

Um médico que realiza cirurgias de outra especialidade relata que o setor onde atua perdeu ao longo da pandemia cerca de 20 leitos, que foram revertidos para pacientes com coronavírus. Agora, nos poucos procedimentos que o setor consegue fazer, os pacientes são encaminhados para enfermarias gerais, dividindo espaço com pacientes que passaram por cirurgias de todas outras especialidades. “No meu departamento, a queda no número de cirurgias foi de aproximadamente 50%, não só por redução de leitos, mas também de horários no centro cirúrgico, e poucos tipos de procedimentos estão sendo feitos”, revela o médico, citando os decretos que suspendem cirurgias eletivas - em que o paciente não corre risco de morrer naquele momento - para que o sistema de saúde consiga reservar leitos e insumos para o tratamento da Covid-19.

Só para uma cirurgia específica desse setor, explica o profissional, a fila está em mais do que o dobro em relação à média antes da crise sanitária. Enquanto que antes da pandemia a fila, que já era grande, se mantinha em torno de 300 pacientes, agora está em aproximadamente 700 pessoas.

Outro procedimento do mesmo setor que o HC realizava em média entre 80 e 100 vezes por ano antes do coronavírus, agora está com fila de 450 pacientes. “Nesse caso, o hospital levaria mais de quatro anos para zerar a fila atual, que não para de crescer. Só que o quadro clínico de muitos desses pacientes não permite esperar esses quatro anos. Fica a angústia de ter que informar para o paciente que ele precisa passar pelo procedimento, mas não tem como internar. É dramático ter que dizer ao paciente que ele tem 450 pessoas na frente dele”, lamenta o médico.

O profissional defende a volta gradativa do atendimento de outras doenças para que as fila sejam desafogadas. “Temos que pensar em soluções, porque os pacientes que chegam ao HC requerem cuidados especiais, são casos complexos, que precisam de cirurgias, que já vêm de hospitais que não têm condições de atendê-los”, conclui.

Mesma opinião de outra médica. "A pandemia segue crítica. Mas após quase um ano e meio, não vemos uma luz no fim do túnel não só para os pacientes de Covid-19, mas também para os de pacientes de outras doenças que só podem contar com o Hospital de Clínicas", avalia.

Uma das possíveis soluções levantadas por todos os médicos ouvidos pela Gazeta para desafogar os atendimentos no HC seria a abertura de hospitais de campanha para pacientes de Covid-19. Opção que a prefeitura de Curitiba descarta desde o início da pandemia, alegando que abriu estruturas mais adequadas para o atendimento médico, com a reativação de unidades de saúde que estavam fechadas antes da crise sanitária. Entre as unidades reativadas estão o Hospital Vitória, cedido à prefeitura pelo plano de saúde Amil, na bairro CIC, e o Instituto de Medicina e Cirurgia do Paraná, no Alto da XV, além da transformação de leitos das duas unidades da Maternidade Victor Ferreira do Amaral para atendimento de Covid-19.

Nos períodos mais graves de transmissão do coronavírus, como o atual, a prefeitura também tem revertido todas as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para atender exclusivamente casos graves de Covid-19.

Pacientes se agravam

As cirurgias de coração foram das poucas permitidas de serem executadas sem restrições ao longo de toda a pandemia, não só no HC como em outros hospitais. Isso porque cardiologia, oncologia, neurologia e nefrologia são as únicas especialidades que não são impactadas pelos decretos estadual e municipal que suspendem os procedimentos eletivos para garantir leitos e insumos para Covid-19. Mesmo assim, revela um médico cardiologista do HC, o avanço do internamento de pacientes com coronavírus vem atrapalhando o departamento.

“Não são apenas cirurgias que estão deixando de ser feitas por falta de leitos. Outros procedimentos que poderiam evitar o agravamento dos quadros, como angioplastia, implante de marcapasso, troca de válvulas cardíacas, também estão muito reduzidos”, afirma. “A gente fica angustiado porque nossa função como médico é acabar com o sofrimento do paciente. A gente tenta não passar essa angústia ao paciente, porque ele pode ficar abalado, mas é difícil”, lamenta o médico.

Segundo o cardiologista, muitos desses pacientes que não conseguem ser internados acabam retornando ao hospital na sequência, mas em estado muito mais grave do que se tivessem tido o acompanhamento adequado. “Só que aí esse paciente entra pela porta de emergência, porque teve um enfarte ou outro problema que poderia ter sido evitado se ele tivesse passado pelo procedimento quando precisou. E quando o paciente chega ao hospital neste estado, tem que ser internado de qualquer forma porque pode morrer”, argumenta o médico.

Situação também replicada em outras alas, segundo uma médica anestesiologista. “Com a pandemia estamos tendo de anestesiar muito mais pacientes de emergência, que chegam ao hospital com quadro grave porque não puderam fazer o acompanhamento com seus médicos”, afirma a profissional, que faz anestesia para cirurgias de diversas especialidades. “Muitos desses pacientes não conseguem atendimento na UPA e quando chegam ao HC já estão graves”, complementa a médica. Desde maio, todas as UPAs de Curitiba foram revertidas em atendimento exclusivo de casos graves de Covid-19, com os atendimentos de emergência de outras enfermidades sendo encaminhados para as unidades básicas de saúde.

A médica também diz que, com ampliação das UTIs para atendimento de Covid-19, cada vez mais os anestesiologistas estão sendo solicitados para intubar pacientes fora dos departamentos em que atuam no HC. “Antes da pandemia era raro a gente ser chamado para intubar pacientes na UTI. Mas só em um plantão de 12 horas na pandemia eu intubei quatro pessoas”, revela.

Residentes

A pandemia também estaria prejudicando a formação dos médicos residentes no HC. Como profissionais de saúde de todos os setores estão sendo requisitados para atender Covid-19, os médicos recém-formados estão tendo menos contato com a especialidade que escolheram. “O Hospital de Clínicas é um hospital 100% SUS, de atendimento terciário [casos de alta complexidade] e universitário. Então o HC tem que priorizar não só a necessidade dos pacientes, mas também o ensino, a formação de seus alunos”, cobra um dos médicos.

Outro médico afirma que muitos residentes estão tendo sua formação comprometida por ter de atender pacientes com Covid-19 e não poderem se dedicar exclusivamente à sua especialidade. “O médico que está agora no segundo ano de residência, por exemplo, deveria ter passado por procedimentos de nível médio da sua especialidade ano passado, mas não passou. Contato com procedimentos complexos, que seria nesse ano, ele teve menos ainda”, critica. “A gente vê alunos que estão pensando em desistir da residência e tentar novamente depois da pandemia porque não estão aprendendo na área deles”, ressalta.

A situação é tal que algumas sociedades de especialidades médicas já planejam estágio extra para complementar a formação dos residentes prejudicados pela pandemia. “Só que aí não vai ter bolsa de estudo, que é um problema para um médico se manter enquanto estuda”, lamenta o profissional. “A expectativa é de que a pandemia se encerre para que pelo menos quem entrar na residência ano que vem não tenha esse impacto na sua formação”, espera o médico.

Outro lado

Em resposta ao posicionamento dos médicos ouvidos pela reportagem, a direção do Hospital de Clínicas afirma que, mesmo com a pandemia, segue atendendo os pacientes de todas as outras especialidades. “Assim como acontece em todo o país, por otimização de recursos humanos e materiais, os decretos e portarias, com base nos números da pandemia, regularam a operação das instituições de saúde. E nós, seguindo as determinações dos órgãos de saúde, atendemos tanto os casos da Covid-19 quanto de outras doenças”, ressalta a direção.

“Para ilustrarmos isso em números, a média de ocupação de leitos do HC é de 440, sendo que 190 estão destinados à Covid-19 e os demais continuam atendendo pacientes com outros quadros clínicos. Desse modo, mesmo com as reestruturações e remanejamentos, seguimos prestando assistência às demais doenças”, segue a direção do HC em nota.

Em relação aos médicos de outras áreas que estão reforçando o atendimento da Covid-19, o hospital explica que isso precisou ser feito “a fim de entregar à sociedade os serviços para os quais foram contratados. Desse modo, seguindo a ética e a legalidade, com consulta ao Conselho Regional de Medicina, houve o remanejamento de equipes, com competência e formação para prestar a melhor assistência aos nossos pacientes”, aponta o hospital. “Diante desse contexto, e o recrudescimento dos casos, a instituição fez um apelo à classe médica para integrar a linha de frente, como reforço aos colegas intensivistas, que estão há mais de 15 meses na batalha contra a Covid-19”, segue a nota.

A direção do Hospital de Clínicas também afirma que os profissionais que estão reforçando o atendimento de Covid-19 continuam executando suas cargas horárias semanais normalmente, além de terem sido capacitados para este tipo de atendimento. “Retomar a nossa rotina pré-pandemia é o objetivo de toda instituição de saúde do país, pública ou privada, porque significa que a Covid-19 estará fazendo cada vez menos vítimas. No entanto, enquanto isso não acontece, precisamos continuar com os atendimentos de todas as doenças em que somos especialistas, mas sem nos furtar de também trabalhar na linha de frente”, conclui a nota do HC.

Prefeitura

Em nota, a prefeitura de Curitiba respondeu a questão levantada pelos médicos da possibilidade de serem encaminhados menos pacientes de Covid-19 ao HC para desafogar o tratamento de outras doenças.

“A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) esclarece que durante o processo de contratualiazação – contrato de oferta de serviços e leitos – cada hospital coloca à disposição do SUS de Curitiba o número de leitos de acordo com a sua capacidade estrutural e de recursos humanos. Vale ressaltar ainda que a admissão dos pacientes é feita pelo próprio hospital por meio da Central Metropolitana de Leitos. Não é portanto, o município que define para qual hospital o paciente será transferido”, explica a prefeitura.

A nota do município ainda diz que o HC tem 307 leitos abertos para atender todas as outras condições de saúde que não sejam Covid-19. “Cabe ao hospital gerenciar seus atendimentos”, finaliza.

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