Redes sociais como Instagram e TikTok têm funcionado como alavancas para o crime organizado. Além da venda explicita de produtos ilegais em plataformas de e-commerce, uma infinidade de vídeos publicados nas redes mostram criminosos ensinando a “arte de contrabandear”. Há também espaço para dar dicas sobre como fugir da fiscalização, quais rotas seguir e para a ostentação dos frutos dos atos ilícitos, com fotos e vídeos de muito dinheiro, carros importados, viagens e relógios.
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Dados do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) indicam que o custo anual com pirataria e contrabando no país alcança R$ 410 bilhões. E, para o FNCP, uma participação importante neste volume financeiro tem vindo da propagação criminosa em redes sociais. O valor pode ser apenas uma amostra de um rombo bem maior, observa o advogado Edson Vismona, ex-secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do estado de São Paulo, atual presidente do FNCP.
Nas redes sociais, os contrabandistas não demonstram receio de serem identificados, investigados e alvos de possíveis operações policiais. Vídeos mostram carregamentos de cigarros e eletrônicos. "Geram provas contra si mesmos em atividades de contrabando, descaminho ou ensinando como as pessoas podem fazer para ingressar nesses meios. Incorrem em dois crimes tipificados no Código Penal, o de promover e o de incitar ao crime", explica o mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e advogado criminal que atua em casos de repressão ao contrabando Matheus Falivene.
Nos casos em que as imagens não são explícitas, as hashtags não deixam dúvidas quanto à relação com atos criminosos. As músicas que ilustram os vídeos fazem apologia ao uso e ao tráfico de drogas e à desobediência às leis. É uma escalada de uma prática que não é nova: nos EUA, o FBI já teve bastante dor de cabeça com vídeos que ensinavam a fazer bombas, lembra o delegado da Polícia Federal (PF) Marco Smith, que há 15 anos trabalha na região de fronteira do Brasil com o Paraguai.
De onde surgem os vídeos relacionados a crimes disponíveis no TikTok e Instagram
E é da fronteira do Sul do País que vêm grande parte dos registros de atividade criminosa ostentados nas redes sociais. Um dos grupos mais ativos em postagem, o “contrabando045”, tem núcleo na região do município de Guaíra (PR). O nome faz menção à localização: na região oeste do Paraná, o DDD é 45. Até a publicação desta reportagem, o perfil seguia ativo.
Fronteiriça com o Paraguai, Guaíra é cidade-gêmea a Salto Del Guairá, importante polo comercial no país vizinho, depois de Cidade do Leste. Guaíra e Salto Del Guairá estão separados apenas pelo Rio Paraná. Em alguns pontos, isso representa poucos metros entre elas. O contrabando aparece na região como a principal atividade ilícita. Segundo dados da Polícia Federal, em cerca de 170 quilômetros de extensão do rio (do município de Santa Helena até Altônia, entre o oeste e noroeste do Paraná) estão estabelecidas, pelo menos, 30 grandes quadrilhas que fazem contrabando de cigarros, eletrônicos, pneus ou, ainda, descaminho de uma centena de outros produtos. Além das quadrilhas principais, um número incalculável de grupos criminosos que surgem a todo momento.
Parte desses grupos se especializa no tráfico de drogas, de armas e de munições a serviço de grandes facções criminosas brasileiras ou a braços milicianos, informa o delegado da PF. “Esses produtos passam pela fronteira do Brasil com o Paraguai para abastecer ações criminosas por todo o Brasil”, alertou.
Em Altônia, a combinação da prática criminosa por terra, água e redes sociais não é diferente. Outro perfil bastante ativo é o "menorescobar044. O DDD na região de Altônia é 44 e o nome também remete a um dos maiores traficantes de drogas do mundo, o colombiano Pablo Escobar, morto em uma ação policial no ano de 1993. O "menor" faz alusão a crianças e adolescentes cooptadas para o crime organizado. “Muitos deles chegam a abandonar a escola em municípios de fronteira para ficar a serviço do contrabando. Recebem bons salários e adquirem certo status rapidamente, acreditando que estão se promovendo”, explica o delegado Smith.
Uma busca rápida feita pela reportagem da Gazeta do Povo mostrou pelo menos duas dezenas de outros perfis similares disponíveis. “São muitos vídeos, principalmente no TikTok e no Instagram com esses conteúdos relacionados ao crime. Temos rastreado há algum tempo e atuado para combater esse tipo de ação”, destacou o advogado e presidente do FNCP Edson Vismona.
Na avaliação dele, o que tem acontecido pode ser avaliado com um “descalabro”. “Pratica-se o ato, registra-se o crime e ainda posta. O STF decidiu que em crimes com até R$ 20 mil [no caso de produtos transportados] é de menor potencial ofensivo [com penas mais brandas, sem a prisão em flagrante], então se estimula que essas ações sejam mantidas com o contrabando em menor volume, mas constante em veículos de passeio, por exemplo”, considera.
O advogado Matheus Falivene pontua que a exposição não se atém à prática do crime, mas a imagens com quantias incompatíveis com atividades lícitas. “As vezes nem é a o ato criminoso em si postado, mas um volume de dinheiro, carros luxuosos, viagens, geralmente se ostenta muito. E de onde vem o dinheiro dessa ostentação, se ele não é declarado à Receita Federal? Tudo isso acende uma luz de alerta às investigações policiais”, diz ele.
Vídeos removidos
Desde o início da apuração para a reportagem, alguns vídeos com práticas mais explícitas de crime foram removidos do TikTok e do Instagram. Outros, porém, que fazem alusões indiretas, seguiam lá.
“Esse material, mesmo que dê indícios de crime, serve para o monitoramento das quadrilhas, coloca essas pessoas no radar da polícia para operações policiais. Quem conhece a realidade da fronteira sabe se tratar da incitação a um crime”, completa o delegado da PF. Para ele, as publicações podem indicar crime de formação de quadrilha.
“O que também pode estar por trás disso é estimular amadores ao início da prática para sobrecarregar as forças de segurança na fiscalização e, assim, grupos mais profissionalizados trabalharem com mais tranquilidade”.
Marco Smith , delegado da Polícia Federal (PF)
Para combater as ações das quadrilhas, defende o advogado Matheus Falivene, é preciso avançar na denúncia que culmina com o bloqueio ou remoção dos usuários e, a partir daí, rastreamento, identificação, investigação e penalização. “Existem vídeos nas redes sociais ensinando como ser contrabandista com milhares de visualizações e uma infinidade de interações”, completa.
Comentário ou compartilhamento de conteúdos suspeitos pode gerar responsabilidade
O internauta que interage em conteúdos ilícitos, com comentários e compartilhamentos, também pode responder judicialmente. E esta é outra frente que o FNCP pretende atacar, reivindicando penas mais severas, ampliação no sistema de investigação e maior atuação dos serviços em segurança. O órgão identificou que as redes sociais se transformaram em fortes meios para estimular o “empreendedorismo criminoso”.
Vismona reitera que o prejuízo é de todos os brasileiros. “Eles afetam diretamente a população mais vulnerável do país, inviabilizando a criação de novos postos de trabalho pelas empresas e o investimento em áreas prioritárias, como educação e habitação, por parte do governo federal”, defende.
TikTok e Instagram respondem sobre perfis ligados ao crime
À reportagem da Gazeta do Povo, o TikTok afirmou que está avaliando os vídeos internamente para aplicação da política adequada. “O sistema de recomendação do TikTok também foi projetado considerando a segurança. A disponibilidade de um conteúdo na plataforma não significa que ele será automaticamente exibido no feed para você. Há vídeos que podem não ser elegíveis para recomendação e existem casos em que o conteúdo não é recomendado. Usamos uma combinação de tecnologia e revisão humana para identificar os vídeos que violam nossas políticas. Caso alguém veja algum conteúdo que acredite que esteja violando nossas Diretrizes da Comunidade, temos ferramentas para que os usuários possam reportar”, respondeu a empresa. A plataforma não informou se os vídeos que foram removidos teriam sido retirados do ar pelo usuário ou pelo próprio TikTok.
O Instagram destacou que “quando algo vai contra as Diretrizes da Comunidade do Instagram, responde com os seus sistemas de monitoramento de conteúdo” usando inteligência artificial e ferramentas de aprendizado de máquina para ajudar a identificar e remover uma grande quantidade de conteúdo violador, “geralmente, antes que alguém os veja. “Nas ocasiões em que a nossa tecnologia precisa de mais dados ou deixa passar algo, contamos com milhares de analistas pelo mundo para aplicar nossos Padrões da Comunidade e as Diretrizes da Comunidade”. A plataforma disse ser completamente contrária a postagens que incitem, façam apologia ou revelem atos criminosos e pede a denúncia de perfis e publicações. Ao constatar atos ilegais ou contrário à política e postagens, pode gerar desde a exclusão do conteúdo até a remoção da conta.
Cigarro é outra "menina dos olhos" do crime na fronteira
Estruturada há décadas na região, a cadeia criminosa na fronteira do Brasil com o Paraguai vai além de postar vídeos, promover hashtags ou atrair curtidas, comentários e engajamentos nas redes sociais. O mesmo levantamento do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade aponta que o cigarro contrabandeado reflete em perdas na ordem de R$ 10 bilhões por ano ao Brasil.
“Enquanto no Brasil a tributação gira em torno de 70%, a 80% sobre o produto, no Paraguai não chega a 20%. Vamos discutir uma reforma tributária em breve, ninguém mais quer nem suporta aumento de tributos. Situações como essas também precisam ser analisadas”, criticou o presidente do FNCP, Edson Vismona, ao alertar sobre a perda de tributos.
“O cigarro não deixa de ser consumido, só se deixa de consumir o nacional para utilizar do estrangeiro, que é muito mais barato”, completou. Além dos cigarros convencionais, a instituição se mostra preocupada com o aumento no contrabando de cigarros eletrônicos, movimento que tem crescido exponencialmente, avalia a FNCP.
Organograma do crime
Investigações da PF têm monitorado, há anos, que uma parcela das quadrilhas que agem no Brasil são comandadas por brasileiros que vivem no Paraguai “Muitos têm mandados de prisão em aberto no Brasil e optam por viver no Paraguai foragidos”, diz o delegado Marco Smith.
Ele avalia que ações em parceria com as autoridades do país vizinho têm auxiliado na prisão de parte desses criminosos, mas ainda há boa parte deles por lá. O comércio de cigarros, eletrônicos, pneus e afins não é considerada uma prática ilegal no país vizinho. Ele se torna um crime ao ingressar no Brasil.
De acordo com o delegado, geralmente quem vive no país vizinho é líder de quadrilha. A cadeia do contrabando inicia com as negociações com os fornecedores que estão no Paraguai. Para a travessia, são contratados olheiros que monitoram a presença de policiais no território brasileiro, para dar suporte ao atravessador ("mula", na gíria criminal).
O atravessador conduz as lanchas pelo rio e continua com carros e caminhões abarrotados com produtos ilegais. Além dos olheiros, eles contam com batedores em veículos “limpos e quentes” para antecipar, por telefone ou radiocomunicadores, como está a fiscalização pelo caminho. Nas redes sociais de quem incita o crime têm sido comum a postagem de vídeos de perseguições policiais a esses grupos. Quando uma fuga é bem sucedida, há comemoração. “Mais um dia onde deixamos os home [sic] para trás”, informava uma dessas legendas.
Por terra ou por rio
A ponte Ayrton Senna em Guaíra, sobre o Rio Paraná, faz ligação com o município de Mundo Novo (MS), também fronteiriça à cidade paraguaia de Salto Del Guairá. Quem não atravessa por lancha, faz o caminho por terra, passando pela ponte. “Como Foz do Iguaçu ganhou notoriedade nacional no combate ao crime organizado, recebeu uma grande rede de fiscalização e controle. Os criminosos migraram e subiram o rio, escolhendo as regiões de Guaíra e de Altônia”, diz o delegado Marco Smith.
No contrabando aquático estão ainda aqueles que ficam do lado brasileiro da fronteira, escondidos na mata que margeia o Rio Paraná, aguardando lanchas e barcos. Os contrabandistas abrem clareiras na mata para os chamados portos clandestinos. Há dezenas desses portos às margens do rio e, com frequência, são detonados pelas forças de segurança. Mas pouco tempo depois os criminosos preparam o atracadouro em outro lugar.
Dali os produtos são rapidamente descarregados em veículos que aguardam para o trajeto curto e terrestre do contrabando. “Ele não sai da barranca do Rio Paraná e vai direto para o consumidor final. Existem grandes estruturas que mudam com frequência de local para burlar a fiscalização que servem como depósitos. Após algum tempo, deixam o depósito até o posto final: os compradores, principalmente nas regiões Sul, Sudoeste e Nordeste”, conta o delegado.
Os depósitos temporários também funcionam em propriedades rurais alugadas por contrabandistas. A região é agrícola, tendo a fronteira do Brasil com o Paraguai margeada por cultivos, principalmente de soja e milho. Isso facilita a cooptação de produtores, que acabam alugando barracões para estocagem de cigarros e pneus. “Muitos nem enxergam o contrabando como um crime”, lamenta Smith.
Na sequência dessa cadeia criminosa, estão os receptadores: pessoas que adquirem produtos ilegais para a revenda. Elas também estão sujeitas a responder criminalmente, alerta o advogado criminal Matheus Falivene.
Agentes de segurança corrompidos pelo crime
Em meio à cadeia criminosa estão elos importantes: os agentes de segurança corrompidos pelo crime. “Eles existem e sem eles nada disso seria possível para o crime organizado. Eles informam quando e como terá fiscalização, sobre as operações, indicam rotas alternativas”, segue o delegado, que acrescenta que isso está na mira das forças de segurança. Recentemente, ao menos cinco grandes operações resultaram na prisão e no afastamento de mais de 100 agentes públicos de segurança envolvidos com o contrabando e o descaminho, somente nas regiões oeste e noroeste do Paraná.
Para a investigação dessa participação, inclusive, mas também de toda a cadeia do crime na região de fronteira com o Paraguai, na cidade de Guaíra tem uma delegacia bem equipada e um núcleo de Polícia Marítima da PF; aduana da Receita Federal, que vive com barracões abarrotados de produtos ilegais apreendidos; um posto da Polícia Rodoviária Federal na cabeceira da ponte Ayrton Senna; Companhia do Exército e estrutura do Batalhão de Polícia de Fronteia da PM (o BPFron).
“Queremos que o novo governo amplie as fiscalizações de combate ao crime organizado que tanto tem avançado nessas regiões e prejudicam a economia de todo o país que contam com envolvimento de grandes quadrilhas criminosas, de grupos milicianos, que abastecem o crime organizado”, reforça Edson Vismona, presidente do FNCP.
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