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Município de Rio Negro, nos anos 1910, era um dos poucos que tinham alguma  infraestrutura no estado. | /Acervo Mudeu Paranaense
Município de Rio Negro, nos anos 1910, era um dos poucos que tinham alguma infraestrutura no estado.| Foto: /Acervo Mudeu Paranaense

Dezenas de carroças atravessam a cidade enfrentando estradas de chão batido para chegar ao centro de Curitiba. Exaustos, os cavalos se refrescam no bebedouro do Largo da Ordem. São imigrantes italianos e poloneses que partem de suas colônias para vender seus produtos de porta em porta. Diariamente, sempre nas primeiras horas da manhã, a cena se repete. Abarrotadas de lenha, feijão, milho, legumes e verduras frescas, as carroças abastecem a capital do estado.

Esse era o cotidiano de uma Curitiba de 100 anos atrás. A moderna cidade, culturalmente agitada e com uma recém-construída sede para a Prefeitura na Praça Generoso Marques, nem de longe lembrava a realidade que assolava o restante do estado. Emancipado há apenas 66 anos de São Paulo, o Paraná contava em 1919 com somente 39 municípios formados (hoje são 399), segundo levantamento do Ipardes.

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A maioria dessas cidades se localizava no chamado “Paraná Tradicional”, que vai do Litoral até as proximidades da região dos Campos Gerais. O Norte, Oeste e Sudoeste do estado eram verdadeiros vazios urbanos, isto é, sem formação de municípios, mas ocupada por povoamentos de indígenas e da população cabocla. E foi para esse Paraná Tradicional que uma nova leva de imigrantes chegou ao estado principalmente na segunda metade da década de 1910. Somando-se aos italianos, poloneses, ucranianos, alemães, entre outros, os paranaenses conviveram com a formação de colônias holandesas e japonesas nas regiões dos Campos Gerais e no Litoral.

Nessa época, o Paraná era formado basicamente por imigrantes europeus e seus descendentes que, na sua maioria, chegaram à região no fim do século 19, índios e negros descendentes de escravos. Era um verdadeiro xadrez étnico que somava um total de 685 mil habitantes – hoje são mais de 11 milhões de moradores.

A Rua XV de Novembro e seus edifícios em art-déco no ano de 1913: Curitiba destoava do restante do estado. Acervo Museu Paranaense.

Governo só tinha olhos para a capital

Enquanto Curitiba, em 1919, se preocupava em aprovar leis determinando que veículos automotivos e de tração animal deveriam andar pelo lado direito da via para não prejudicar a circulação dos bondes elétricos, o restante do Paraná não contava sequer com estradas, ferrovias e nem estrutura portuária para escoamento de produtos agrícolas. “O governo estadual nessa época tinha olhos para Curitiba. O restante do estado era abandonado”, afirma o historiador da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, Aimoré Índio do Brasil Arantes.

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O Paraná de 1919 não possuía infraestrutura viária para qualquer tipo de expansão econômica. As estradas de rodagens eram poucas, assim como as linhas férreas. Para ajudar, a navegação fluvial era mínima e restrita aos rios Iguaçu, Potinga, Negro e Paraná. Não existiam atracadouros decentes para barcos e navios nos portos de Antonina e Paranaguá. A Estrada da Graciosa, uma das mais importantes na época, não era totalmente pavimentada. “A estrutura viária, quando tinha, era tudo estrada de chão”, conta Aimoré. Dependente economicamente do extrativismo e da venda de erva-mate e madeira, os produtores paranaenses se viam impossibilitados de ampliar seus negócios.

Nas poucas ocupações urbanas na região do Norte Pioneiro, como Jacarezinho, Tomazina e Ribeirão Claro, o escoamento das mercadorias era realizado pelo estado de São Paulo. “Imagina quanto o Paraná deixou de arrecadar e perdeu dinheiro por falta de infraestrutura”, comenta Aimoré.

Produtores de porcos na região Oeste e Sudoeste que queriam vender os animais, por exemplo, percorriam a pé por até 60 dias quilômetros e mais quilômetros de estrada de chão para chegar aos seus destinos. Pasme: as cenas de tropas de porcos tomando as ruas das cidades duraram até perto de 1960.

“Era um estado completamente rural, com pouquíssima infraestrutura, poucas cidades, com intensa presença indígena e comunidades quilombolas”, resume o historiador do Museu Paranaense, Renê Ramos, que é diretor da Coordenação do Sistema Estadual de Museus do Paraná (Cosem).

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Paraná vivia as consequências da Guerra do Contestado

Dominado politicamente pelo conservador Partido Republicano Paranaense, o estado era governado por Affonso Camargo, um dos líderes da sigla e que voltaria a comandar o Paraná em 1928. Foi Camargo que três anos antes defendeu durante Guerra do Contestado (1912-1916) a empresa Lumber, que explorou as madeiras do Oeste do Paraná e depois vendeu os terrenos para imigrantes europeus. Uma das primeiras medidas da Lumber foi organizar um Regimento de Segurança com mais de 300 homens para expulsar os posseiros das terras recebidas do governo e dizimar a população cabocla que vivia na região.

Era a prova viva de que naqueles “sertões” paranaenses existiam paranaenses vivendo em comunidades em uma região dita como “vazia” pelo governo da época. Muitos desses moradores eram descendentes dos chamados “voluntários da pátria” que foram lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), mas que não tiveram ajuda governamental para retornar aos seus lares e acabaram ficando e instalando moradias no meio do caminho. “Esse processo marca o início da concessão de terras do governo do estado para grupos que eram de seus interesses em ‘colonizar’ as regiões Oeste e Sudoeste do Paraná”, explica Aimoré.

O Paraná ainda vivia as consequências da Guerra do Contestado no âmbito econômico, com graves consequências sobre a arrecadação estadual e pela perda de território paranaense após a sentença do Supremo Tribunal Federal, de 1916, que pôs fim à centenária Questão de Limites entre o Paraná e Santa Catarina.

Oeste era dominado por argentinos

Nesse período o Paraná também conviveu com quatro frentes de ocupação e colonização. Uma foi a frente “nortista”, oriunda de pessoas de Minas Gerais e São Paulo, sobretudo, que foram para as cidades de Jacarezinho e Ribeirão Claro. A penetração para o Oeste em direção a Foz do Iguaçu, criada em 1914, começou a partir de grupos que se deslocaram de Guarapuava. Já aparecem, dessa forma, os núcleos habitacionais de Laranjeiras do Sul e Catanduvas, por exemplo.

No entanto, entre 1881 e 1930, essas regiões eram dominadas por argentinos que exploravam o mate e a madeira por meio do sistema das Obrages (grandes áreas de terras concedidas pelo governo brasileiro), especialmente entre Foz do Iguaçu e Guaíra.

O Oeste paranaense era uma fronteira que praticamente não fazia parte do Brasil. Falava-se pouco a língua portuguesa e circulava como moeda o peso argentino. Segundo o historiador Ângelo Priori, professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), as obrages justificavam a existência de mais de dez mil habitantes no Oeste paranaense na década de 1930, a maioria de origem platina. Durante todo esse período estima-se que apenas 25% da população era brasileira.

Essa região era de difícil acesso e a penetração realizava-se apenas por meio do rio Paraná, da estrada de ferro Guaíra-Porto Mendes e da ‘estrada’ de chão que levava de Guarapuava a Foz do Iguaçu. “No entanto, os meios de transporte eram todos controlados pela Argentina e pela Companhia Mate Laranjeira, de origem paraguaia”, conta Priori.

Em 1919, inclusive, entre Guairá e Porto Mendes foi construída uma pequena estrada de ferro, executada pela Mate Laranjeira a fim de facilitar a exportação da erva-mate para o mercado argentino. Nessa época também estava sendo construída a estrada de ferro que ligaria a Região Norte ao estado de São Paulo.

Segundo o mapa paranaense de 1919, elaborado pelo historiador Romário Martins, as outras ferrovias existentes no estado ligavam Curitiba a Paranaguá, Curitiba até Ponta Grossa e Rio Negro e Porto União até as proximidades de Tomazina. O restante estava praticamente isolado.

“Essas ferrovias são fundamentais para ajudar no processo de ocupação urbana desses territórios. Os núcleos de povoamento acompanharam as ferrovias”, assinala Renê Ramos.

Também houve uma frente ocupacional avançando no sentido das cidades de Palmas e Clevelândia, o que já provocou o surgimento do núcleo que viria a ser o município de Pato Branco. Eram os primeiros passos para as criações de novas cidades no estado.

“Mas a povoação de Palmas evoluiu lentamente visto que o interesse econômico dos grandes fazendeiros naquele momento era a criação e expansão de fazendas de gado, que ocupavam grandes áreas com poucos trabalhadores”, explica o historiador Ramos. Muitos desses “colonizadores” eram gaúchos e catarinenses que iniciaram a efetiva ocupação do solo nessas localidades.

Paraná era um território dividido

Há 100 anos, o Paraná era um território dividido em três regiões, como apregoava o historiador Ruy Wachowicz: o Paraná Tradicional, o do Norte e o do Sul e Sudoeste. Mas até as duas primeiras décadas do século 20, como relata Priori, a maior parte territorial do estado ainda não havia se integrado aos centros de decisão política e econômica do Estado – que era Curitiba.

A conquista e ocupação de novas terras no Oeste do Estado começaram a tomar amplas dimensões apenas no início da década de 1940 no ideal politizado da “marcha para o oeste” durante o governo de Getúlio Vargas. A partir das décadas de 1950 e 1960 é que o estado começou a ser alvo de uma urbanização mais intensa, proporcionando, de forma gradativa, a ligação e o “convívio” entre esses três Paranás.

Cidade avançada

As diferenças entre o desenvolvimento de Curitiba, que já servia naquela época de exemplo para outras capitais brasileiras, e o restante do Paraná são gritantes. A capital do estado contava com escolas, hospitais, sistema de tratamento de água e luz elétrica. O resto do estado estava à deriva. Eram poucas escolas e hospitais para atender à população. “Basta ver os jornais da época e as epidemias que tinham no litoral, por exemplo, por causa de consumo de água sem tratamento”, exemplifica o historiador Aimoré Arantes.

A capital já tinha a Universidade do Paraná – a primeira do Brasil – e o Museu Paranaense – o terceiro do país. “Havia muita produção cultural e era uma cidade muito avançada para a época. Mas os governos só tinham olhos para a capital”, salienta o historiador.

O início do café

O ano de 1919 marca também o início da intensificação da produção de café no estado. Especialmente na região Norte, que fora ocupada por mineiros e paulistas. A expansão cafeeira marchava, nessa época, sem tréguas pelo Paraná. No ano seguinte, o estado já contabilizava, segundo estudo de Ângelo Priori, 1.215 propriedades cafeeiras – era o sétimo maior cultivador do país.

“O café começa a tomar corpo da economia do Paraná, mas grande parte da safra é vendida por São Paulo e exportada pelo Porto de Santos pela falta de estrutura para escoar a produção dentro do estado”, afirma Aimoré. Não havia vias de comunicação entre o Norte do Paraná e o litoral do estado.

Nem com o avanço do ramal ferroviário Jaguariaíva- Jacarezinho que chegou a Siqueira Campos, chamada então de Colônia Mineira, em finais de 1919, o escoamento do café foi destinado à exportação pelo Porto de Paranaguá. As tarifas ferroviárias paulistas eram mais baratas e havia a ausência de empresas no Norte do Paraná beneficiadoras de produtos agrícolas. Era o Paraná pagando o preço por relegar por décadas uma parte importante do seu território.

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