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| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo


Alceni Guerra (no PFL) foi chamado às pressas em Curitiba com uma missão. Era ano 2000. O ex-prefeito de Pato Branco, ex-ministro da Saúde e deputado federal iria chefiar a Casa Civil de Lerner, agora governador do estado em segundo mandato. “Foi um pedido específico do Marco Maciel [vice-presidente da República então, PFL] e do Jorge Bornhausen [presidente do PFL]. Jaime [Lerner] era o candidato deles à presidência do Brasil [na eleição de 2002]”, relembra Guerra. “O Jaime construiu uma imagem nacional muito forte. Era tido como um excelente técnico. Ele conseguiu disseminar na elite essa sensação de que seria indispensável para o futuro do país”, diz. “Faltava apenas popularidade. Mas isso era questão de tempo”. 

Não era. Ironicamente, o caminho para o Planalto era longo e tortuoso demais. Até mesmo para um urbanista que construiu a carreira reduzindo distâncias. 

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Ter o nome ventilado à presidência parecia ser o ápice de uma carreira política construída nas três décadas anteriores. Ao longo de 30 anos, Jaime Lerner desenhou uma das trajetórias mais controversas e duradouras na história paranaense. O arquiteto e urbanista que acaba de completar 80 anos (completados no último dia 17) dirigiu a capital paranaense por três mandatos e governou o estado por mais dois. Seu legado se estendeu para além das inegáveis benfeitorias urbanas da capital – onde instalou o BRT, criou parques, fechou a Rua XV para os carros – e da industrialização do estado. Ele deu vida a uma geração de políticos que surfaram em sua popularidade, como Cassio Taniguchi (ex-prefeito, hoje no DEM) e Rafael Greca (atual prefeito, hoje no PMN). E, embora não admita, gosta do jogo político. Nele, é um camisa 10 à la Rivaldo: discreto e estrategista. 

Eu disse para o Requião que nem me lembrava dele. Mas que, para ele, eu sou inesquecível 

Jaime Lerner, sobre seu adversário político mais ferrenho


Na década de 1970, auge da ditadura militar, os cargos eram nomeados. Lerner, então no partido Arena, base de sustentação do governo ditatorial, chegou ao Executivo municipal pela primeira vez graças a sua atuação como dirigente no Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). Permaneceu de 1971 a 1975. Após deixar a prefeitura, flertou com o partido rival, o MDB (que virou PMDB e hoje é novamente MDB), em um episódio que lhe rendeu a antipatia eterna da sigla. “O Jaime foi um grande mentiroso. Ele voltou à prefeitura em 1978, que é quando ele ia entrar no MDB”, relembra Sylvio Sebastiani, jornalista, filiado ao MDB na época. “Ele chegou a acertar com o [Euclides] Scalco [presidente regional do MDB]. Aí o Scalco me chamou: ‘Sylvio, você apronta uma ficha partidária; eu já falei com o Ulysses [Guimarães, o presidente nacional] e ele está de acordo [com a entrada de Lerner na sigla]’. Só eu e o Scalco sabíamos, era segredo. Mas eu telefonei para o Francisco Leite Chaves [senador pelo MDB] e contei. Chaves era muito novo na política e conversando com uma jornalista deixou vazar a informação. A moça publicou. No dia marcado para assinar a ficha, Lerner liga para o Scalco e diz: ‘eu não vou entrar no MDB’”, conta Sebastiani.

No mesmo período, Ney Braga (Arena), que acabara de assumir o governo estadual pela segunda vez, chamou Lerner para comandar Curitiba. Para Sebastiani, a desistência não foi coincidência. Causa e efeito ou não, o arquiteto ficou no cargo até 1984. No período, Lerner já não era uma figura mal vista pelos curitibanos: o criador do “ônibus assassino” e “fechador de ruas” a essa altura já tinha construído uma imagem de bom gestor que o segurou no poder militar. Mas o que bastava para a elite não bastava para o resto da população. Quando o regime caiu e o voto voltou a ser direto, na eleição de 1985, Lerner sentiu seu ponto fraco. “Eu não seria capaz de negar a competência de decorador de cidades do arquiteto Jaime Lerner. Parques e praças. Mas somente acessíveis para uma determinada faixa da população. Curitiba é linda, mas não é justa”, abriu assim um dos debates seu principal adversário ao Palácio 29 de Março naquela ocasião, Roberto Requião. O discurso colou. O PMDB foi ao poder.

Albari Rosa/Gazeta do Povo

As derrotas e a volta

Duas derrotas pareciam ter selado o destino de Lerner, agora no PDT, na terra das Araucárias: a disputa para a prefeitura em 1985 e a de vice-governador de Alencar Furtado (PMB) no ano seguinte. Foi quando Leonel Brizola, cacique do partido, o levou para o Rio de Janeiro. Era do mentor pedetista a ideia de transformá-lo em prefeito da Cidade Maravilhosa. Na capital paranaense Requião parecia caminhar tranquilo para fazer de Maurício Fruet (PMDB) seu sucessor. Nenhum dos concorrentes parecia fazer sombra ao peemedebista. Nem Algaci Túlio (na época no PDT), um radialista popular que havia sido eleito o vereador mais bem votado anos antes. “Eu não queria concorrer, mas o partido precisava de alguém. O Brizola disse: ’só tem um candidato que vamos pode lançar aqui, o Darci’. Nem meu nome ele sabia direito”, relembra Túlio.

Ele construiu uma imagem nacional muito forte. Era tido como um excelente técnico. Ele conseguiu disseminar na elite essa sensação de que seria indispensável para o futuro do país. Faltava apenas popularidade 

Alceni Guerra, chefe da Casa Civil de Lerner, falando sobre o convite ao urbanista para disputar a Presidência em 2002

“O Brizola queria que o Lerner concorresse lá no Rio, mas os cariocas não aceitaram. Então ele voltou, mas não queria [concorrer ao estado]”. Lerner chegou a cogitar apoio a Túlio. “Quando o Jaime ia para a tevê gravar comigo, o Aníbal Khury [um dos mais influentes políticos paranaenses] ligou para ele e disse: ‘não faça isso, você já ganhou essa eleição’”. A ideia de desistir e apoiar o Jaime foi minha”, diz Túlio, a quem foi oferecida uma contrapartida. “Eu disse: ‘prefiro ganhar como vice do que perder como candidato’”, relembra. A dupla foi para o front em uma batalha que durou pouco mais de duas semanas – mas que o partido cravou em 12 dias para fazer referência ao número da legenda. 

“O Jaime foi designado prefeito nos outros dois mandatos, então não tinha muito apelo nas camadas populares. Ele precisava de um cara popular. Aí que deu a dobradinha. Eu levei o Jaime na periferia. A gente entrava nos botecos, tomava uma cerveja, comia uma banana. O Jaime dava a mão para o pessoal”, conta Túlio. A candidatura explodiu e Lerner bateu Fruet com certa folga. De 1989 a 1993, o arquiteto regeu um mandato tão prolífico quanto midiático. Dali, só restava um caminho: o estado. Mas, como na frase de Luis Fernando Veríssimo: “quando se acha ter todas as respostas, a vida muda as perguntas”. 

“Patinho feio”

Beto Richa não precisa jurar que não é lernista; Osmar Dias também não. Vou facilitar a vida de vocês e de seus marqueteiros. Estou emitindo atestados de 'não lernistas'”, debochou Lerner em 2010. Durante a primeira década do novo século, o esporte favorito de dez em dez candidatos ao Palácio Iguaçu era desvincular sua imagem da do ex-governador. Com Richa (PSDB) e Dias (PDT), que disputavam o posto naquele ano, não foi diferente. Nos anos anteriores, Roberto Requião emendou dois mandatos consecutivos graças, em parte, à baixa popularidade do adversário histórico. Nos últimos quatro anos de sua vida pública, Lerner (agora no PFL) bateu no fundo do poço. Algo curioso para quem, no início na década, era tido como um nome possível para o cargo mais importante do país. 

Eu não seria capaz de negar a competência de decorador de cidades do arquiteto Jaime Lerner. Parques e praças. Mas somente acessíveis para uma determinada faixa da população. Curitiba é linda, mas não é justa

Roberto Requião, em debate da campanha de 1985 à prefeitura de Curitiba

“Quando eu cheguei, Lerner estava politicamente desgastado. Tinham cinco 5 CPIs contra ele [na Assembleia Legislativa]. Eles me pediram para dar estabilidade política e fortalecê-lo com a pré-candidatura [á presidência]. Nenhuma destas CPIs era realmente séria. Eram questões realmente políticas. Em pouco tempo consegui extinguir as CPIs. Mas aí ele já não queria mais ser candidato”, relembra Alceni Guerra, o apagador de chamas na ocasião. Na mesma época, Roseana Sarney começava a despontar como um nome forte dentro do partido. 

O destino era irônico. O mesmo perfil de gestor que o havia alçado ao estrelato, cavou sua cova no estado. Lerner trouxe a indústria automobilística para o estado tentando diversificar o perfil econômico. Mas, para tornar o estado atrativo, concedeu pedágios a rodo nas estradas estaduais. Acabou com a farra do Banestado passando o banco para a iniciativa privada, mas quis privatizar empresas queridinhas dos paranaenses. “Isso o desgastou: ações como os pedágios ou mexer em instituições como a Copel, que são aos olhos da população, uma memória afetiva. Talvez isso seja o que mais tenha marcado o segundo mandato de Jaime Lerner, essa imagem excessivamente privatizante, neoliberal. Ele tinha o olhar voltado para a questão da administração e de alguma forma se distanciou da questão social. Mas isso é muito mais discurso do que na prática. Algumas medidas privatizantes não necessariamente vão causar algum impacto social. Assim como manter uma empresa pública não necessariamente reflete em melhora de vida e bem estar da população. Eram mais questões ideológicas”, avalia o cientista político Hélio Ruben Godoy, cientista político e professor da Uninter. 

O analista aponta que o governador tentou se cercar dos acertos que o levaram a mártir na prefeitura. “Ele levou uma equipe de qualidade para o estado. O problema é que, no estado talvez, a coisa tenha degringolado. Até então, dentro da gestão da prefeitura não se ouvia acusações de mau uso do dinheiro público ou má-gestão. No estado isso começa a se tornar mais evidente. Talvez em função da forma em que se faz política. Até hoje o Palácio Iguaçu tem que negociar com a Assembleia. E a assembleia é fisiologista, tem o toma-lá-da-cá. Na hora de implementar os eixos estruturantes do estado, ele bateu de frente com o sistema já pré-estabelecido de como fazer a coisa”, aponta Godoy. 

Algumas das ações resultaram em condenação por improbidade administrativa. Em 2011, chegou a ser condenado à prisão por dispensar licitação na construção de um trecho da BR-476 e PR-427. Reverteu a pena em multa. Manchado, Lerner manteve sua força na capital, onde a sua imagem de urbanista suplantou os percalços políticos. Mas nunca mais voltaria a ter chance no estado. O coração curitibano não parecia bater para além de Ponta Grossa. 

Albari Rosa/Gazeta do Povo

Chuteiras enfim penduradas?

Hoje, em seu escritório no Cabral, Lerner diz não ter mais interesse em participar ativamente da política. Largou a carreira de vez ao fim do segundo mandato de governador, em 2002. Dedica-se exclusivamente à arquitetura, ainda que as tentações existam. Há gente de campanha em campanha batendo em sua porta à procura de apoio. Isso não mais o interessa, diz. “Tive sorte de sair da vida pública sem mágoas”, faz questão de frisar. Talvez, seu estilo pouco combine com o jeito atual de fazer política, em que acordos são mais importantes do que o ímpeto. “Naquela época [seus mandatos como prefeito], a gente simplesmente ia lá e fazia”. E, para o bem ou para o mal, ele fez.

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