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 | Atila Alberti/Tribuna do Parana
| Foto: Atila Alberti/Tribuna do Parana

Entra ano, sai ano e as ocupações irregulares de Curitiba e Região Metropolitana continuam seguindo o mesmo roteiro. À medida em que famílias são assentadas, novos grupos ocupam outras áreas e a conta nunca fecha. Recebem 15 minutos de fama por causa de algum acontecimento importante, para em seguida voltarem ao esquecimento pela opinião pública – que costuma se restringir ao entorno do Anel Viário.

Em 2018 não foi diferente: em agosto, uma polêmica envolvendo o apresentador Luciano Huck e o prefeito Rafael Greca (PMN) deu visibilidade à Vila 29 de Outubro, no bairro Caximba. A comparação do local com o Haiti não agradou o mandatário local e a obra que seria televisionada acabou cancelada.

Mas o pior ainda estava por vir, quando, na madrugada de 8 de dezembro, outra ocupação com nome parecido – a 29 de Março – veio abaixo em meio a um incêndio iniciado após buscas da Polícia Militar pelo assassino de um colega, dias antes. A tragédia chamou a atenção para questões que vão além dos já sérios problemas de moradia: a infiltração do crime organizado nessas áreas.

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Até então, o crime não parecia estar entre os maiores problemas da comunidade. Edna Bacilli, comerciante local e uma das lideranças da comunidade vizinha Dona Cida, garante que, tirando necessidades de saneamento e infraestrutura, a vida era relativamente calma por lá. “A polícia passava tranquila por aqui. Nunca teve atrito”, conta, enquanto recebe pessoas trazendo doações – algumas até da Guarda Municipal – numa tenda improvisada a poucos metros das cinzas que sobraram das construções.

Edna, conhecida como Néia, diz que a maioria das pessoas que estão ali chegaram em Curitiba para trabalhar. Os estrangeiros não são tão numerosos. Há, sim, haitianos e gente de outros países. Mas o sotaque nordestino é mais comum. Eles chegam da Bahia, Paraíba e outros estados atrás de emprego, normalmente incentivados por familiares que estão aqui há mais tempo. E tem, também, quem vem do interior do Paraná ou até mesmo quem teve que fugir dos alugueis altos de outros bairros de Curitiba.

Histórico

A 29 de Março é parte de um conjunto de quatro ocupações que a Prefeitura vem denominando como Vila Corbélia, mas outros a conhecem como Vila São Miguel (no entanto, nenhuma das comunidades se define com esses nomes). O Moradias Corbélia, a alguns metros dali, não tem relação com as ocupações: é um conjunto habitacional construído a partir de 2010 para receber famílias de áreas da margem do rio Barigui, onde hoje fica o Parque Guairacá.

As áreas ocupadas são cortadas pela Estrada Velha do Barigui, que por sua vez separa os bairros São Miguel e CIC. A localidade começou a ser ocupada em setembro de 2012, com a Nova Primavera, bem próxima das instalações da multinacional Toshiba. Em 2015, surgiram a 29 de Março (nas vésperas do aniversário da cidade, no dia 26 de março) e a Tiradentes (pouco antes da data comemorativa, em 17 de abril).

O terreno onde fica a comunidade Dona Cida foi ocupado em 16 de setembro de 2016 por 150 famílias, organizadas pelo extinto Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Paraná (hoje MPM - Movimento Popular por Moradia). O nome homenageia uma militante sem teto que morreu naquele ano, enquanto aguardava por uma cirurgia no rim. Em apenas uma semana, o acampamento já abrigava o dobro de famílias e recebia sua primeira notificação de reintegração de posse.

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As instalações em geral são precárias, mas também há organização. Na Dona Cida, os moradores buscam seguir um tamanho padrão nos terrenos e respeitam espaço para vias que cruzam a área. Sobre as cinzas do 29 de Março já podem ser vistas as demarcações com fitas dos pequenos lotes.

Há alguns pontos de comércio como mercearias e serviços como barbearias. Uma linha de ônibus, a Mário Jorge, liga as comunidades ao Terminal Caiuá, a três quilômetros dali. Ela atravessa toda a extensão das ocupações pela Estrada Velha do Barigui, que é asfaltada só até a entrada da Toshiba. O restante do caminho é na terra mesmo.

Assim, o pó, ou a lama, costumam incomodar. A energia elétrica também. Como as áreas não estão legalizadas, a infraestrutura no local é mínima. Os moradores, então, recorrem a instalações clandestinas. Como resultado, é comum faltar luz à noite, quando o consumo é maior. Em 2015, o MPM cadastrou 300 núcleos familiares na Nova Primavera, 280 na 29 de março e 600 na Tiradentes. A Dona Cida trouxe outras 400 famílias à conta.

Frustrações

Apesar dos poucos anos de vida, as comunidades já tiveram que lidar com grandes decepções. Desde 2013 havia uma expectativa de que a Nova Primavera recebesse a construção de moradias populares, financiadas pelo programa Minha Casa, Minha Vida e erguidas pela própria empresa proprietária da área, a construtora Damiani. Mas o projeto não avançou nas várias esferas burocráticas por onde passou. Com o agravamento das crises econômica e política no país, também não recebeu o aporte financeiro necessário.

No final de 2016, uma nova esperança: quase no fim de seu mandato, o prefeito Gustavo Fruet (PDT) viajou ao México. Ao assumir em seu lugar, a vice Miriam Gonçalves (PT) assinou um decreto transformando o local em área de utilidade pública, com o objetivo de desapropriação para fins de habitação de interesse social. O terreno, de 210 mil metros quadrados, abrangia três das quatro ocupações em questão – a 29 de Março já pertence à prefeitura.

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A atitude da prefeita em exercício, porém, não caiu bem, gerando mais um capítulo de uma crise entre o prefeito e o Partido dos Trabalhadores. O então secretário de Governo, Ricardo Mac Donald Ghisi, alegou questões técnicas e barrou a publicação do decreto. Depois disso, a prefeitura iniciou estudos para avaliar a viabilidade das desapropriações. O procedimento até sobreviveu à troca de gestão, mas tramita até hoje na administração municipal.

De acordo com o Instituto Democracia Popular (IDP), que dá apoio jurídico e político a estas e outras comunidades semelhantes pela cidade, a 29 de Março é a única das quatro áreas para a qual não há registrada nenhuma ação de reintegração de posse. A Tiradentes responde por ação da empresa Essencis, que administra o aterro sanitário próximo e que faz parte da paisagem.

Já a ocupação Dona Cida tem uma reintegração autorizada desde outubro, o que tornou o dia a dia da comunidade ainda mais tenso. Enquanto isso, o IDP e a Defensoria Pública do Estado tentam reverter a decisão. A Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) e o Ministério Público do Paraná (MP-PR) também acompanham as conversas.

Limbo

Um dos problemas burocráticos das áreas é que elas se encontram em uma espécie de limbo jurídico que dificulta ainda mais suas regularizações. O presidente da Cohab de Curitiba, José Lupion Neto, esclarece que a lei municipal 14.981, de 2016 (sancionada por Fruet poucos dias depois do mal sucedido decreto de sua vice), abriu a possibilidade para que ocupações implantadas irregularmente até o fim de 2011 fossem regularizadas, desde que obedecidos alguns critérios.

Porém, como esses terrenos começaram a ser ocupados em 2012, acabaram fora das condições da lei, que prevê até a flexibilização de algumas das rígidas normas urbanísticas curitibanas. Uma delas é a possibilidade de lotes menores do que o mínimo normalmente exigido, bem como ruas mais estreitas, de oito ou até mesmo seis metros de largura.

Ainda assim, áreas como a Dona Cida, a Tiradentes e a Nova Primavera, de propriedade particular, dependeriam de desapropriação pelo Poder Público para serem regularizadas para as famílias de lá. E o procedimento demandaria recursos que continuam insuficientes – ao menos para resolver a situação das mais de 400 áreas irregulares espalhadas pela cidade.

Para tentar amenizar o problema no ano que vem, Lupion diz que a Cohab conta com recursos extras, que chegariam ao Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social por meio da outorga onerosa (quando empreendedores pagam para construir mais pavimentos que o permitido em determinada área) e de empréstimos vindos do exterior – como os R$ 250 milhões que vêm sendo buscados junto à Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) para implantação do Projeto Bairro Novo da Caximba que, depois do entrevero com Luciano Huck, se tornou a menina dos olhos do prefeito Greca.

Porém, nenhum dos dois artifícios pode ser dado como sacramentado. O primeiro tem que passar pelo Legislativo e o segundo está em análise. Outra expectativa é sobre como o novo governo Jair Bolsonaro (PSL) vai tratar a política habitacional.

Preconceitos

Paulo Bearzoti Filho, que é integrante do Movimento Popular por Moradia (MPM) e acompanha as quatro ocupações desde o início, lamenta que a prefeitura não tenha uma política mais intensa de desapropriações, ao mesmo tempo em que impõe um protocolo rígido demais para as construções. “Não é errado, mas é idealista e irreal”, afirma.

Bearzoti acredita que preconceitos equivocados de parte da população em relação às ocupações acabam atrapalhando a implantação de políticas mais efetivas. “Há a crença de que regularizar incentivaria novas ocupações. E muitas pessoas acham que [ocupar] é malandragem. Mas é muito ruim morar nesses lugares. Tem lama, não tem água nem luz. Tem a criminalidade e o clientelismo de políticos”, explica. Para ele, certas declarações recentes do prefeito também não têm ajudado nessa questão. “A imensa maioria dos moradores só quer trabalhar e viver em paz”.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná, o deputado estadual Tadeu Veneri (PT), que também vem acompanhando a situação das famílias do local, condena a especulação imobiliária e o descaso de seguidas administrações municipais, que culminaram em tragédias como a da 29 de Março. “O que aconteceu na 29 de Março foi um soluço. Chama a atenção, mas se em três meses não houver um programa de continuidade aquela população vai voltar a viver os mesmos dramas que vive hoje, de violência policial, de organizações criminosas e simbólica, porque continuam sendo ‘favelados’ e isso é muito forte”.

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