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| Foto: Pedro Serapio/Gazeta do Povo

Heróis, vilões e um povo que precisa ser salvo. Poderia ser um enredo de história em quadrinhos, mas é, na verdade, como têm se desenhado as eleições deste ano no Brasil. Em um pleito marcado pela polarização, a luta entre “o bem” e “o mal” vem pautando os debates, as entrevistas e o tom das campanhas. Mas esse discurso não tem nada de novo e foi registrado nas mais diversas épocas da história do mundo.

Segundo uma das definições do dicionário Michaelis, mito é uma “história fantástica de transmissão oral, cujos protagonistas são deuses, semideuses, seres sobrenaturais e heróis que representam simbolicamente fenômenos da natureza, fatos históricos ou aspectos da condição humana; fábula, lenda, mitologia”.

André Azevedo da Fonseca, coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Imaginação Social (Imagico) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), explica que “isso é ancestral”. “Reis usavam todo aquele paramento, todo o cerimonial, as roupas, pintavam-se em quadros, tudo para criar aquela imagem de soberania. No Brasil a gente vê isso o tempo todo. [Getúlio] Vargas fez muito isso, os republicanos inventaram vários heróis ou tentaram reconstruir personagens em favor de sua causa”. Ele lembra ainda que nos Estados Unidos, por exemplo, os chamados “pais fundadores” são até hoje tratados como heróis.

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Depois de passar dez anos estudando a criação de mitos na política, Fonseca avalia que “quando uma sociedade está em crise é muito comum, por conta da própria perplexidade diante da situação, que as pessoas tendam a regredir, a buscar algumas referências sólidas para interpretar o mundo. Nesse sentido o mito é muito poderoso”.

Políticos usam a figura do “herói” para ganhar confiança junto aos eleitores

Ao mesmo tempo em que as pessoas estão em busca de uma figura que encarne, na teoria, todas as qualidades que poderiam resolver os problemas do país, os políticos usam essas mesmas “fantasias” para conquistar confiança junto aos eleitores.

Jaqueline Zulini, pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV), afirma que isso faz parte das estratégias de campanha para que um candidato se diferencie dos outros. “Em momentos de maior acirramento político, como agora, esse tipo de estratégia costuma aparecer com mais frequência. O candidato que apela para isso e se vende como um verdadeiro “herói da pátria”. Ele espera fortalecer a própria imagem diante do seu eleitorado e, sobretudo, cativar os indecisos e os eleitores do(s) adversário(s) que ataca.”

Os mitos e a sua desconexão com o mundo real

Uma outra definição do Michaelis coloca o mito como “uma crença, geralmente desprovida de valor moral ou social, desenvolvida por membros de um grupo, que funciona como suporte para suas ideias ou posições”. Ou seja, a criação de um mito seria, então, uma fantasia que dá sustentação às ideologias defendidas por determinado grupo ou comunidade.

Na avaliação de Cláudio Couto, coordenador do mestrado de gestão em políticas públicas da FGV, “o mito é algo que, a rigor, não é verdadeiro. O mito é uma coisa que, na verdade, não tem como ser real. É uma invenção de algo que tenta justificar uma narrativa”.

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Como esclarece Fonseca, o termo correto para tratar o assunto é “gestão de significado”. É o que fazem, por exemplo, os publicitários, ao associar por meio de imagens e sons o produto que estão vendendo – seja uma peça de roupa ou um candidato a presidente – a determinadas ideias e conceitos. Isso se faz em maior parte no nível inconsciente, em vez de no nível consciente.

“Os mitos não se comunicam com a nossa dimensão racional, mas com dimensões do nosso inconsciente. São medos e desejos profundos, que falam sobre verdades que guardamos enquanto espécie humana. Por isso os símbolos utilizados são ancestrais. Animais que rastejam, a sombra, o escuro, a conspiração de pessoas que cochicham, etc”, pontua o pesquisador.

Herói precisa do vilão, e vice-versa

Esses símbolos são historicamente usados para gerar medo e criar a necessidade de um salvador. Um herói que não tenha vilão a ser combatido não tem razão de existir. Assim, se o vilão não existe, ele precisa ser igualmente inventado. “Quanto pior o inimigo, mais as pessoas vão ansiar pela presença do herói. Demonizar o inimigo é uma forma disfarçada de o herói se sacralizar, já que um herói só é sagrado se luta contra inimigos demoníacos. A criação do medo faz parte desse estrado de crise. É uma neurose”, afirma Fonseca.

Na história isso aconteceu uma série de vezes. Os militares, quando assumiram o poder em 1964, afirmavam que estavam lutando contra o comunismo que ameaçava tomar conta do país. Tiveram o apoio de grande parte da sociedade civil. Já na Alemanha, os nazistas afirmavam combater a ameaça de que os judeus tomariam seus empregos e a economia.

História se repete nas eleições

Nas eleições não é diferente. Enquanto tentam conquistar votos, os candidatos apontam, também, pessoas e ideias que devem ser combatidas. “A conexão emocional do eleitor com o candidato tem peso no processo eleitoral. Da mesma forma que as campanhas eleitorais tentam sensibilizar as pessoas para as causas defendidas pelos candidatos, o medo também pode ser uma condicionante do resultado eleitoral. Até o eleitor indeciso pode decidir votar caso considere possível que um candidato com propostas ameaçadoras possa se eleger”, diz Jaqueline.

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“O medo muitas vezes produz a irracionalidade. As pessoas têm tanto medo de uma coisa que param de raciocinar sobre o significado daquela coisa. Uma criança que tem medo do bicho papão não vai parar para avaliar que nunca apareceu um bicho papão, que nunca provaram que ele existe. Esse pavor construído em torno de mitos leva a comportamentos que não fazem muito sentido do ponto de vista da racionalidade”, lembra Couto.

Por que a ideia do herói nacional ainda cola?

Por que as pessoas continuam acreditando que uma pessoa ou um grupo de pessoas poderão ser, sozinhos, os salvadores da nação? Para Jaqueline, “propaganda política é pura retórica. Mesmo que o candidato que veste a carapuça de herói tenha decepcionado no passado, se ele tiver uma boa equipe de marketing cuidando da sua campanha eleitoral acabará convencendo muita gente. Um jingle bem feito associado a imagens emocionantes da vida política do candidato fazem milagre”.

Fonseca, por sua vez, opina que essa é uma visão mítica e não democrática da política, perspectiva fomentada pelos próprios candidatos. “É uma visão corrompida do que é uma disputa política. Os candidatos fariam muito bem se ajudassem a desconstruir essas mitologias para que o debate fosse privilegiado, em vez de fazer com que seus militantes gastem energia combatendo ‘demônios’. Mas eles se utilizam desses recursos para fins de campanha. Sabem que é exagero, mas reforçam porque podem se beneficiar desse discurso.”

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Couto tem opinião parecida. “As pessoas querem soluções simples pra problemas complexos. Como um remédio milagroso para emagrecer sem regime e exercício. As pessoas procuram isso inclusive na politica.”

Como sair das histórias em quadrinhos?

Diferente dos conflitos de uma HQ, a realidade política brasileira não será resolvida com o herói derrotando o vilão. A profunda crise política, econômica, social e de confiança vivida hoje pelos brasileiros precisa de mais que um salvador da pátria para ser aplacada.

Couto afirma que, para ele, algumas vezes é necessário que se passe por uma experiência negativa para que esse ambiente se torne mais racional. “Se as pessoas são chamadas à razão, param para refletir e escutam mais, isso muda um pouco. Às vezes, para que isso aconteça, é preciso ter uma experiência negativa, perceber que o que era vendido como muito bom não era tão simples assim.” O cientista político ainda diz que, para que essa narrativa se quebre, é preciso criar um ambiente propício à racionalidade.

Por outro lado, ele avalia que também há um preço a ser pago por quem veste a fantasia do herói. “Aquele que vende ilusões em algum momento terá que dar satisfações. Quanto maior a altura, maior o tombo. Veja o caso do [João] Dória (PSDB) [ex-prefeito de São Paulo]. Vendeu-se como outsider, elegeu-se no primeiro turno, passou todos os dias de governo fazendo campanha e largou o mandato pela metade. Agora está perdendo nas pesquisas para governador. Essa é a consequência de vender ilusão.”

Fonseca destaca que nenhum candidato é 100% bom ou 100% ruim. Cada um tem defeitos e qualidades e faria bem à disputa eleitoral que eles se lembrassem disso durante a campanha, assumindo sua responsabilidade para a construção de um contexto político menos propício ao surgimento desses mitos. “Os candidatos deveriam evitar estimular essas teorias da conspiração, demonizar o adversário para poder trata-los como humanos que são. Também acho que começar a pensar sobre a linguagem manipulada para atribuir esse tipo de sentido ajuda a interpretar melhor, para que a gente possa humanizar a política.”

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