Que a crise enfrentada pelos estados brasileiros existe e é gigante não há dúvidas. A combinação de descontrole das despesas somada a queda nas receitas ajuda a explicar como a situação chegou a esse ponto. Os gastos crescentes, principalmente com funcionalismo e Previdência, são a maior parte do problema. Mas a queda na arrecadação do ICMS, principal tributo estatual, também agravou a crise. Mas isso é efeito da conjuntura ruim causada pela recessão ou um fenômeno estrutural que mostra que o imposto está ficando obsoleto?
Foi o economista José Roberto Afonso, do Ibre/FGV, quem ajudou a levantar a bola para a discussão sobre a relação do ICMS com a crise federativa e a obsolescência do ICMS, em artigo escrito em parceria com Melina Rocha Lukic e Kleber Pacheco de Castro. O artigo defende que o ICMS, o imposto que mais arrecada no Brasil, está ficando obsoleto porque “incide apenas sobre mercadorias em uma economia que é cada vez mais baseada em serviços”. O ICMS incide sobre serviços de telecomunicações, mas quem telefona tanto em tempos de WhatsApp?
“Mais do que os aspectos tributários, como esse é um imposto de competência estadual, a sua obsolescência contamina também o equilíbrio federativo, revelando a face mais marcante da inegável e profunda crise desse nível de governo”, defende o artigo. Quando o ICM (antiga versão do ICMS) foi criado tinha uma alíquota genérica de 17% e arrecadou, em 1968, o equivalente a 7,28% do PIB, gerando sozinho 31% da carga tributária total. Em 2017, o ICMS com base mais ampla e alíquotas maiores, arrecadou o equivalente a 6,79% do PIB, o que responde por 20% da carga tributária nacional.
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É claro que a recessão na economia brasileira também impactou a arrecadação e a situação fiscal dos estados. Um boletim divulgado em novembro de 2018 pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) mostrou que, até o exercício de 2017, 12 das 27 unidades da federação não apresentavam capacidade de pagamento – não tinham condições de quitarem seus débitos. Mas, a leve retomada da economia em 2018 deu um alívio. A Carta de Conjuntura 41, do Ipea, mostrou um tímido crescimento da arrecadação do ICMS nos oito primeiros meses de 2018 em quase todos os estados.
“Nota-se, contudo, que o ICMS se tornou um imposto cada vez mais dependente do desempenho dos setores de energia elétrica, combustíveis e comunicação. Mesmo estados com economias mais diversificadas, cuja arrecadação supostamente não dependeria tanto de setores específicos, atualmente têm suas arrecadações fortemente concentradas nos setores supracitados”, aponta a análise assinada por Mônica Mora Y Araujo de Couto e Silva Pessoa, Cláudio Hamilton Matos dos Santos e Felipe dos Santos Martins, todos pesquisadores do Ipea.
Para João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), a variação de arrecadação do ICMS está mais ligada ao fato de a tributação brasileira ser muito elevada em cima de consumo – e o ICMS está na ponta. Com produtos caros para o consumidor final e a crise, a tendência é de diminuição da circulação econômica.
Ele lembra de uma decisão do governo do Paraná, de reverter uma diminuição de alíquotas de ICMS em 95 mil itens. Para compensar a perda de arrecadação com esses itens, aumentou-se a alíquota do imposto em outra ponta, como a energia elétrica – exatamente como o observado pelos pesquisadores do Ipea. “Isso aumentou o preço dos produtos e diminuiu o consumo”, comenta.
A crise fiscal e o complexo imposto
No artigo de José Roberto Afonso, a obsolescência do ICMS estadual é justificada em alguns pontos. O primeiro é que sua principal base de cálculo – valor adicionado na indústria e agricultura – tem tendência decrescente na economia moderna, em oposição à ascensão do setor de serviços. As chamadas guerras fiscais também afetaram a realidade econômica, por causa de decisões políticas para uma busca de promoção de desenvolvimento. Por fim, a ele se afastou da própria concepção inicial de um tributo sobre valor adicionado por causa do excessivo uso de instrumentos como substituição tributária. “As contradições nas quais está mergulhado revelam a derrocada do ICMS como forma de tributar o consumo”, argumenta.
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Para Tiago Conde Teixeira, sócio do Sacha Calmon- Misabel Derzi Consultores e Advogados e professor de direito tributário, o ICMS está obsoleto e “são favas contadas para ele acabar”, porque a forma como foi conduzido não deu certo. “O ICMS é um dos tributos que mais dá problemas para o contribuinte, porque tem um sistema complexo de tributação e substituição. E é o tributo que é ‘a galinha dos ovos de outo’ dos estados, porque é de onde ele tem a arrecadação”, aponta.
O problema é que a complexidade do imposto gera insegurança jurídica e mesmo a guerra fiscal deixa empresários com um pé atrás para investir, por correrem o risco de verem as leis estaduais serem questionadas posteriormente. Letícia Amaral, sócia da Amaral, Yazbek advogados e especialista em matéria tributária, lembra que isso também gerou custo e ônus burocrático para empresários e comerciantes, que precisam de assessoria para entenderem as regras distintas de cada estado. E, claro, tudo é repassado no custo final do produto.
“O ICMS não me parece obsoleto, porque a gente ainda vive de compra, isso é circulação de mercadoria. O grande problema é que em aí a reforma tributária, que precisa simplificar o sistema, e o entrave é o ICMS, porque é a fonte de custeio dos estados. E a trava para que a reforma tributária saia é a negociação com os estados”, avalia.
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A reforma tributária sai ou não?
A reforma tributária não é a única discussão que está no âmbito do governo federal e que vai impactar diretamente a organização dos estados. A reforma da Previdência, por exemplo, pode servir de modelo para alterações nos regimes próprios de servidores estaduais. Já a tributária, que busca a simplificação e unificação de tributos e pode afetar ainda mais diretamente a arrecadação nos estados, é mais sensível.
João Eloi Olenike lembra que o então relator da reforma, o deputado paranaense Luiz Carlos Hauly (PSDB), não foi reeleito. Mais: dos 52 deputados que formavam uma comissão na Câmara para avaliar a matéria, só 13 continuarão por lá nessa legislatura. Para ele, a proposta vai recomeçar quase do zero, inclusive porque houve uma grande renovação também nos governadores que assumiram novos mandatos este ano. “Eles vão perder o ICMS? Vai ter de haver um acordo para ver como será feita essa compensação. Se sai o ICMS para um imposto tipo IVA, como os estados vão pagar as contas? A União vai ter de criar um fundo para ampará-los durante a mudança”, observa.
O advogado Tiago Conde Teixeira, sócio do Sacha Calmon- Misabel Derzi Consultores e Advogados, aposta que a reforma tributária sofrerá modificações em relação a atual proposta, para ter a “cara” do novo governo. Um exemplo é a possibilidade de baixar tributação de empresas. Para ele, a medida é positiva, embora em um primeiro momento cause mal-estar entre a população, porque com tributação menor a possibilidade de investir e gerar mais empregos é maior. Ainda assim, ele defende uma reforma que pense em diminuir os níveis de desigualdade, o que só vai acontecer com tributação menor e mais focada em patrimônio e renda ao invés de consumo.
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