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| Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Severino começou a trabalhar aos 14 anos, mas foi só aos 66, completados em agosto de 2017, que conseguiu comprovar o tempo de contribuição necessário para requerer a aposentadoria. Levou toda a documentação a uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e foi instruído a esperar. Passado um ano, nem sinal de benefício, nem qualquer outra informação a respeito, a despeito da lei que obriga o pagamento em até 45 dias. 

O nome do personagem é fictício, mas a história é real: casos como esse têm se multiplicado pelo Brasil, um reflexo de como a crise fiscal precarizou os serviços públicos, afetando diretamente o cidadão. Um cenário que tende à calamidade no curto prazo, em função do Teto de Gastos, que criou diversas restrições orçamentárias, e da falta de reformas estruturais.

Um agravante é que, ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro falha nas suas atribuições, sofre pressão de vários lados para aumentar outros gastos. O pleito do reajuste salarial da magistratura em 16,83%, aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 8 de agosto, não é o único, mas é o que causaria mais impacto: quase R$ 4 bilhões para União e estados, em função do efeito cascata na remuneração de uma série de categorias. Além disso, o Judiciário descumpriu o Teto de Gastos em 2017 em R$ 101,7 milhões – a Emenda Constitucional 95/2016 limita as despesas no valor de 2016 acrescido da inflação. Pela lei, o Executivo cobrirá esses “deslizes” até 2020. 

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Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) sancionada pelo presidente Michel Temer (MDB) no dia 14 de agosto, não há previsão de recursos para arcar com o reajuste aprovado pelo STF. Isso seria suficiente para proibir qualquer aumento, mas um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados em 2015 dá margem para questionamentos. 

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também quer o reajuste, e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, lembrou que a atualização salarial contribui para o trabalho de “combate à corrupção” feito pelos procuradores. O Ministério Público da União estourou o teto em 2017 em R$ 126,1 milhões, cobertos pelo corte de despesas do Executivo. O último reajuste a beneficiar essas categorias foi em 2014, mas qualquer sinal de concessão para 2019 abriria caminho para outras categorias pleitearem aumentos. 

Esse é um caminho que o Brasil precisa evitar: as projeções orçamentárias mostram que, mesmo sem reajuste algum, o funcionamento da máquina pública já está em risco. Em sessão em 13 de junho na qual aprovou com ressalvas as contas de Temer referentes a 2017, o Tribunal de Contas da União (TCU) alertou que esse será o resultado, caso as despesas com benefícios previdenciários continue a crescer no mesmo ritmo dos últimos anos. 

“Mesmo considerando a hipótese otimista em que as despesas de pessoal e as demais despesas obrigatórias não cresçam em valores reais, em pouco tempo os recursos serão insuficientes para custear as despesas discricionárias com os programas da saúde e da educação, investimentos públicos, a manutenção dos serviços públicos, entre outras”, diz o relatório do TCU.

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Um exemplo drástico de corte de despesas veio à tona em 1.º de agosto, quando a Capes enviou uma carta ao Ministério da Educação (MEC) informando que a projeção orçamentária do órgão para 2019, com um corte de R$ 500 milhões em relação a 2008, seria insuficiente para o pagamento das bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, o que afetaria 93 mil estudantes e pesquisadores. Além disso, 105 mil bolsistas de iniciação científica e 245 mil alunos do programa de formação em docência da Universidade Aberta do Brasil (UAB) também seriam prejudicados. 

O ministro da Educação, Rossieli Soares, garantiu os recursos necessários para o pagamento de bolsas da Capes e para “todas as áreas da educação”. Dias depois, porém, outra informação preocupante: a previsão de recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2019 é de R$ 400 milhões a menos do que em 2018. 

Paralisação total

Ainda que os ocupantes atuais das pastas se comprometam com o repasse dos recursos, o fato é que as projeções do TCU apontam para a paralisação total de todos os serviços públicos em 2024, sem possibilidade de o governo federal gastar nada com despesas discricionárias – que não são obrigatórias, mas que inviabilizariam o pagamento de contas de luz, água, telefone e material básico de escritório, por exemplo. A situação já seria calamitosa em 2020, quando o Teto de Gastos estipula que as despesas discricionárias devem ser reduzidas à metade do montante utilizado em 2017. E isso depois de reduzir bastante o custeio da máquina (veja infográfico). 

Estudos recentes do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) apontam que os serviços poderiam ser paralisados já em 2019. Manoel Pires, um dos pesquisadores, aponta que o valor mínimo para o funcionamento dos serviços públicos federais – em um nível já considerado emergencial – gira em torno de R$ 120 bilhões. “Ainda assim o capital físico do governo continuaria em deterioração, numa situação que provavelmente não seria sustentável por muito tempo”, acrescenta Luiz Guilherme Schymura na Carta da Conjuntura de agosto do Ibre. 

A projeção da LDO para o ano que vem, porém, estima um limite de R$ 98 bilhões para as despesas discricionárias. A analista fiscal do Ibre Vilma Pinto lembra que, em 2017, quando o governo federal fez contingenciamento de R$ 42,1 bilhões para manter essas despesas em R$ 102 bilhões, houve riscos ao funcionamento da máquina. O Brasil sofreu com a suspensão da emissão de passaportes – a despeito do pagamento de taxa individual de R$ 257,25 para se obter o documento –, redução no patrulhamento feito pela Polícia Rodoviária Federal e no horário de atendimento ao público do órgão, entre outros problemas. Para contornar isso, o Planalto teve que liberar recursos e rever a meta fiscal.

Previdência

Para resolver o impasse fiscal é fundamental a reforma da Previdência, apontam vários economistas e analistas. Quando assumiu, Michel Temer se comprometeu a enfrentar o assunto, mas a resistência da sociedade, a baixa popularidade do presidente e o envolvimento dele em denúncias de corrupção jogaram o tema para frente. Os principais candidatos à presidência assumem a necessidade de mudanças, mas esse não é um tema que tenha a simpatia do eleitorado. 

De todo modo, é esperado que, ao assumir, o novo presidente encare o desafio. O que gera uma pressão no sistema atual. Ao mesmo tempo em que propôs a Reforma da Previdência, em agosto de 2016, Temer também determinou a revisão de auxílio-doença e aposentadorias por invalidez. Segundo levantamento mais recente do INSS, de julho, isso resultou em 764 mil perícias e economia de R$ 9,6 bilhões. Por outro lado, prejudicou o andamento dos serviços prestados no órgão. 

“Hoje, com essa revisão, há mais gente procurando o INSS. O órgão tem que chamar as pessoas para fazer nova perícia, mas isso implica em reabertura de processo administrativo. O servidor então se ocupa com isso e não consegue fazer a análise dos novos benefícios”, observa o advogado Leandro Pereira, vice-presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR.

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E o fato é que o pessoal lotado no INSS não dá conta da demanda. Ainda em 2013, uma auditoria realizada pelo TCU mostrou que dos 39,3 mil servidores efetivos do órgão, 46% chegariam ao fim de 2017 em condições de eles próprios se aposentarem. Nesse período, não houve concurso ou reposição de trabalhadores na mesma proporção. Pela regra do Teto de Gastos, os concursos só ficam proibidos após o descumprimento dos limites de despesa, o que ainda não ocorreu no Executivo. Na prática, porém, o Ministério do Planejamento não tem liberado as contratações, tentando segurar o aumento do gasto com pessoal – que continua subindo, principalmente em função dos gastos previdenciários da União. 

A demora no atendimento é comprovada pelos boletins estatísticos do INSS. Em janeiro de 2015, 26,6% dos benefícios que tinham pendência apenas do INSS para serem concedidos demoravam mais de 45 dias para serem analisados. O dado mais recente (maio de 2018) mostra que esse porcentual subiu para 42%. O prazo de 45 dias está previsto na Lei nº 11.665/08 e, em 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o pagamento da aposentadoria, quando liberado, deve ser retroativo à data do pedido, dando um alento ao segurado. 

Entretanto, como a demora atual para a concessão tem levado mais de um ano em alguns casos, muitas pessoas têm recorrido à Justiça para garantir seu direito à aposentadoria. Segundo Pereira, a deficiência do INSS tem extrapolado para outros guichês, atolando o Judiciário de processos. Em reação, a Defensoria Pública da União (DPU) ingressou em março com uma ação civil pública na Justiça Federal de Brasília, exigindo o cumprimento dos prazos razoáveis e um cronograma para atendimento, indicando a lotação ideal de servidores necessários. A ação, assinada por defensores públicos do Distrito Federal e do Paraná, exige ainda a retomada de atendimento presencial, já que os pedidos feitos via internet não são acessíveis a toda a população brasileira. “O órgão lançou dois aplicativos, o Meu INSS e INSS Digital, que ajudam bastante para diminuir o custo dos processos para o órgão, mas são ferramentas de entrada de requerimentos. De nada adianta se a retaguarda para análise continua do mesmo tamanho”, observa Leandro Pereira. 

Eleições

Para Schymura, do Ibre, mantido esse cenário, a máquina pública continua operando em 2019, mas em nível mínimo. “A partir de 2020, com certeza não há margem de manobra. A necessidade do cumprimento do teto levará necessariamente à inoperância da máquina pública”. Na opinião dele, é preciso repensar a Emenda Constitucional nº 95/16, que instituiu o Teto de Gastos. “Não se trata de deixar a política fiscal brasileira sem âncora, mas sim de realizar os ajustes necessários no atual arcabouço institucional para que o imenso desafio das contas públicas seja superado no próximo governo de forma ordeira e inteligente”, opina, na Carta de Conjuntura do Ibre. Resta ao eleitorado decidir quem, dentre os candidatos à presidência, receberá a incumbência de reerguer a máquina pública brasileira. 

Serviços em risco

Polícia Rodoviária Federal

Um dos poucos órgãos a obter autorização para concurso neste ano. Mas em número muito inferior ao necessário: a PRF tem déficit de 3 mil servidores, mas poderá abrir apenas 500 vagas. A autorização foi publicada em Diário Oficial em julho, e ainda não há previsão da data em que será realizado. Em 2016, com o contingenciamento de despesas, a PRF teve que reduzir o patrulhamento nas rodovias e restringiu o atendimento ao público, como forma de economizar com as despesas administrativas. 

Receita Federal

Em junho, o órgão arrecadador federal anunciou o fechamento de 25 agências em todo o país. Três delas no Paraná: Iporã, Loanda e Laranjeiras do Sul. Segundo portaria publicada em Diário Oficial, o motivo é o cancelamento de parte da verba destinada à Secretaria da Receita Federal. Em 2016, uma agência em Araucária também foi fechada por restrições orçamentárias. Segundo informou a Receita Federal ao Conselho Regional de Contabilidade, o fechamento seria temporário, até a realização de concurso, o que ainda não ocorreu. 

Universidades

Em 9 de agosto, cerca de mil pessoas tomaram a praça Santos Andrade em um ato contra o corte de bolsas de pós-graduação e formação de professores. O reitor da UFPR, Ricardo Melo Fonseca, destacou que a medida não prejudica apenas a instituição, mas o futuro do Brasil. “Se forem efetivados os dramáticos cortes, o que ocorrerá na prática será uma descontinuidade nos processos de geração do conhecimento que talvez não sejamos aptos a recuperar depois”, declarou. 

INSS

Na Gerência Executiva de Curitiba, são 40 mil processos aguardando análise. Há apenas 483 servidores, dos quais 137 já cumpriram os requisitos para se aposentar, o que pode ocorrer até o início de 2019, quando se concluirá o pagamento de um abono permanência. Segundo o advogado Leandro Pereira, se isso ocorrer, será o equivalente ao fechamento de duas agências na cidade. Uma das agências, a da Rua XV, deixou de fazer atendimento presencial, como forma a agilizar o serviço interno. “A gente já vê muita criatividade dos servidores em dar algum fluxo aos processos, por vezes até levando trabalho para casa. Mas a gerência está de mãos atadas, sem autorização para concurso”, diz ele. 

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