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A eventual aprovação, pelo Congresso, do projeto de lei que anistia os condenados pela invasão e depredação das sedes dos poderes em 8 de janeiro de 2023 poderia, pelo texto atual da proposta, alcançar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os outros 33 denunciados por suposta tentativa de golpe.
A nova norma, se promulgada e aplicada, poderia livrá-los de todas as cinco acusações criminais que enfrentam – tentativa de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito, organização criminosa, dano ao patrimônio da União e deterioração de bens públicos tombados.
O problema, segundo especialistas consultados pela reportagem, é que o perdão efetivo dos crimes, para cada um dos denunciados, teria de ser declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), onde tramita o caso. E, nessa situação, a Corte poderia deixar de aplicar a norma, caso considere que ela é inconstitucional.
O Projeto de Lei 2858/2022, de autoria do deputado Vitor Hugo (PL-GO), diz que seriam anistiados “manifestantes, caminhoneiros, empresários e todos os que tenham participado de manifestações nas rodovias nacionais, em frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta Lei”.
A anistia compreenderia “crimes políticos ou com estes conexos e eleitorais”. Os crimes conexos, segundo o texto, seriam aqueles “de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Embora Bolsonaro e todos os outros denunciados não tenham participado do 8/1, os crimes de que são acusados poderiam se enquadrar como “conexos”. O criminalista Davi Tangerino observa que o ataque às sedes dos Poderes faz parte da denúncia da Procuradoria-Geral da República, o que facilita a demonstração da conexão.
“Se anistiam os crimes conexos ao 8 de janeiro. Seguindo a própria denúncia da PGR, que entende a tentativa de golpe num desencadear de eventos de 2021 até o 8 de janeiro de 2023, pode-se perfeitamente sustentar que os atos antecedentes são conexos ao 8 de janeiro. Seria uma interpretação ampla, mas possível”, diz o advogado, doutor em Direito Penal pela USP e professor da UERJ.
O procurador de Justiça César Dario Mariano da Silva, mestre e especialista em Direito Penal, explica que a anistia “se volta para o passado e faz desaparecer o crime”. “A anistia apaga o fato delituoso, mas permanece íntegro o tipo penal. Dessa forma, embora haja o esquecimento dos crimes praticados em determinado momento histórico, não há a extinção do tipo penal, que poderá ser aplicado normalmente a outros crimes cometidos não atingidos pela anistia”.
Advogado e doutor em Direito Penal pela USP, Matheus Herren Falivene caracteriza a anistia como “a declaração de que determinados fatos serão considerados impuníveis por motivos de utilidade social”.
“Em regra, se aplica aos crimes políticos e excepcionalmente aos crimes comuns. No caso específico do projeto apresentado, a anistia extinguiria a punibilidade dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, por serem crimes políticos, e dos crimes comuns conexos, como dano e organização criminosa”, diz o criminalista.
Ainda assim, para ele, a redação do PL 2858/2022 poderia ser mais clara, para abarcar os atos do dia 8 de janeiro, que não são citados no texto explicitamente. A proposta ainda poderá ser alterada na Câmara, onde tramita atualmente, e no Senado, antes de ser aprovada pelos deputados e senadores.
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Perdão ainda dependeria do STF, que poderia derrubar lei e não aplicar anistia
O grande obstáculo para o efetivo perdão dos denunciados é que, mesmo que anistia seja aprovada em lei pelo Congresso, caberia ao STF aplicá-la aos casos concretos, ou seja, às centenas de condenados pelo 8/1, mas também aos 34 denunciados por supostamente tramarem o golpe.
“Sempre haverá necessidade de que o Judiciário declare a anistia e quem ela irá atingir individualmente”, explica César Dario Mariano da Silva.
E justamente nessa fase a anistia para Bolsonaro e os outros 33 denunciados poderia emperrar. Vários ministros já se posicionaram publicamente contra a anistia e, nos bastidores, interlocutores dizem que há maioria folgada para declarar a anistia inconstitucional. Uma decisão nesse sentido poderia ser proferida dentro do próprio processo contra os acusados, podendo variar o momento (entenda melhor abaixo).
Na hipótese de aceitação da anistia por parte dos ministros, Matheus Falivene entende que ela poderia ser aplicada rapidamente, antes do julgamento final do caso. “Caso a anistia seja promulgada antes do julgamento, será extinta a punibilidade, devendo esse fato ser declarado no processo. Isso interrompe a marcha processual.”
Mariano da Silva também diz que a aplicação do perdão nos casos concretos independe do julgamento final. Ou seja, a anistia pode ser declarada antes de eventual condenação. Atualmente, o caso ainda está na fase de denúncia e, portanto, ainda não há processo penal aberto. Para o procurador, se a lei valesse hoje, também já poderia ser aplicada.
“Extinta a punibilidade pelo beneficiado pela anistia, o procurador-geral é obrigado a promover o arquivamento do inquérito perante o STF, que é obrigado a acolher o pedido. O que poderá acontecer é ser questionada a possibilidade de anistiar os participantes dos atos por ser crime contra o Estado Democrático. Só que a única restrição para a anistia é ser o crime hediondo ou equiparado. Não há vedação aos crimes contra o estado democrático, que são crimes considerados políticos.”
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STF poderia derrubar a anistia durante ou ao final de ação penal de Bolsonaro
Tangerino, por outro lado, diz que é possível ao STF derrubar a anistia por inconstitucionalidade, de forma semelhante ao que fez com o decreto de indulto dado por Bolsonaro, em 2023, ao ex-deputado Daniel Silveira, condenado pela Corte por crimes semelhantes. A maioria considerou que o indulto foi concedido com “desvio de finalidade”, porque o parlamentar era um aliado político do ex-presidente.
No julgamento, o ministro Luiz Fux considerou que as ameaças proferidas por Silveira configuram crime político, contra o Estado Democrático de Direito, e, por esse motivo, não são passíveis de indulto ou anistia.
Tangerino diz que a declaração de inconstitucionalidade da lei da anistia poderia ocorrer dentro do próprio processo contra os acusados. As ações penais ainda não foram abertas, pois dependem do recebimento das denúncias, em julgamentos que ocorrerão nas próximas semanas. No total, são cinco denúncias, cada uma para um núcleo da suposta organização criminosa; o julgamento da primeira, contra Bolsonaro e outros sete acusados, ocorrerá nos dias 25 e 26 de março, na Primeira Turma do STF.
O advogado criminalista diz que a análise da constitucionalidade da anistia poderia ser examinada no julgamento final, de mérito; ou mesmo antes, durante o curso da ação penal. “Defesa e acusação até podem arguir isso antes. E o relator decidiria se seria o caso de apreciar isso, primeiro, de maneira isolada, ou junto com o mérito. Havendo preso, talvez fosse o caminho mais indicado decidir antes”, esclarece Tangerino.
Na prática, a possibilidade de derrubar a anistia por inconstitucionalidade dentro do próprio processo penal agilizaria e simplificaria essa decisão.
O outro caminho, mais demorado, seria pelo julgamento de uma ação à parte, no caso, de controle concentrado de constitucionalidade, como uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade) ou ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental).
Trata-se de um percurso mais longo porque haveria necessidade de um partido ou a PGR ingressar com ação, o ministro relator colher a manifestação de todas as partes envolvidas e interessadas, e o presidente do STF marcar o julgamento no plenário. Em geral, esse trâmite dura meses ou anos.








