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Armínio Fraga foi presidente do Banco Central no governo FHC e já foi aluno de Paulo Guedes.
Armínio Fraga foi presidente do Banco Central no governo FHC e já foi aluno de Paulo Guedes.| Foto: Bel Pedrosa/World Economic Forum

Ex-presidente do Banco Central e um dos economistas mais influentes do país, Armínio Fraga tem rodado o Brasil defendendo um programa fiscal progressista. Para ele, ficou impossível pensar em desenvolvimento econômico sem se combater as desigualdades. Assim, defende o fim de subsídios a grandes empresas e de mecanismos que permitem a pessoas com renda mais elevada pagar alíquotas menores de impostos.

O programa de Armínio passa, também, pela reforma da Previdência, mas aponta a urgência da reforma administrativa para sanar os problemas de ineficiência do Estado. Em entrevista à Gazeta do Povo, o economista reforça que esse olhar para a questão distributiva é, mais do que nunca, uma prioridade em suas análises, assim como é, também, a preocupação com questões ambientais, culturais e de direitos humanos que, em sua visão, tem impactado o ambiente econômico do país.

Confira a íntegra da entrevista:

Qual avaliação o senhor faz dos primeiros 10 meses do governo Bolsonaro? Houve avanços na questão econômica? A agenda do ministro Paulo Guedes está no caminho correto?

Creio que sim. Tem uma combinação de assuntos de natureza fiscal e assuntos de natureza mais liberal. No front fiscal, a longo prazo, a reforma da Previdência foi o grande destaque. É um assunto que vem sendo discutido no Brasil há décadas, sempre foi muito difícil se avançar e considero que essa reforma foi um ponto extremamente positivo, tanto pelo impacto quantitativo quanto distributivo.

No outro front, o destaque até agora foi a MP da Liberdade Econômica, uma lei desburocratizante, que contém alguns aspectos trabalhistas. E existe a pauta corrente, com muita coisa encaminhada, mas não concluída, como o acordo com a União Europeia, o desejo de se ampliar a liberalização comercial de uma forma gradual, que é algo que também está em pauta há décadas, além de uma agenda maior de concessões e privatizações que é bem conhecida, com o setor do petróleo sendo a mais impactante a longo prazo. E uma gestão menos politizada das empresas que ficarem sob comando estatal.

Antes mesmo da chegada deste governo, o anterior já tinha conduzido uma agenda na mesma direção, como o teto dos gastos, que deu um sinal forte. E a questão fiscal vai entrar em discussão novamente, quando o governo encaminhar ao Congresso as PECs que têm a ver com o gasto público, de uma forma mais ampla, como a desvinculação e o pacto federativo, que são temas enormes e difíceis. Temos que aguardar os detalhes para avaliar as chances de sucesso.

Fala-se, também, há algum tempo, em uma reforma tributária, que pode contribuir para a simplificação dos impostos no país. E há a discussão encaminhada de uma reforma do Estado, em particular ligada ao funcionalismo. Não é exagero dizer que o grande foco de ineficiência no Brasil esteja no próprio Estado. Nosso Estado não é pequeno e deveria entregar mais, com relação ao que se gasta. Essa reforma pode ser dividida em dois grandes blocos: o futuro do funcionalismo, um tema de enorme complexidade, que teria impacto de médio e longo prazo; e uma reforma do RH do Estado, que lidaria imediatamente com a capacidade de o Estado administrar melhor sua força de trabalho.

Ao mesmo tempo que a pauta econômica avança, o senhor vê retrocessos em questões como meio ambiente, educação, direitos humanos e cultura, por exemplo? E essas questões interferem no crescimento econômico?

Vejo retrocesso sim. São questões fundamentais que têm me preocupado, especialmente a partir das eleições. Fazem parte do desenho de uma sociedade boa de se viver, onde as pessoas se sentem bem e produzem mais. O investimento de qualidade vem cada vez mais consciente da importância das questões que você cita, assim como da importância da liberdade de imprensa e da qualidade da democracia.

Todas essas áreas têm relação com qualidade de vida e, com certeza, com produtividade também. Não há evidência científica definitiva ainda, mas realmente acredito nisso. E não falo apenas de um imperativo moral, que, por si só, já seria suficiente. Como economista, tenho procurado acrescentar essa visão de vida, de liberdade para valer e isso eu vejo, de fato, bastante ameaçado.

Por que o ajuste fiscal introduzido já no governo Michel Temer e aprofundado no atual governo ainda não conseguiu impactar no PIB e na geração de empregos?

O ajuste fiscal que ocorreu até agora foi modesto, ainda falta bastante. A Previdência vai contribuir com cerca de um ponto do PIB ao ano, mas essa contribuição vem defasada no tempo. Vai ser crescente, mas começa muito pequena. Um ajuste permanente, bem feito, só vai acontecer no dia que formos ainda mais fundo na Previdência. Um importantíssimo primeiro passo foi dado, mas não será o último. Falta lidar com estados e municípios.

Vários países enfrentam desafios nessa área, mas segundo o FMI o nosso é dos maiores. E a reforma do funcionalismo. Esses dois itens precisam ser abordados para criar um horizonte de viabilidade para o funcionamento do Estado brasileiro. Só assim saúde, educação, infraestrutura e saneamento vão poder ser contemplados adequadamente. O quadro hoje é difícil. O governo na verdade está falando em direção oposta, na necessidade de flexibilizar para baixo o gasto. Mas não vai ser suficiente desvincular e desindexar sem economizar mais na Previdência e no funcionalismo.

A queda dos juros não ajuda?

O quadro fiscal ainda é muito frágil, mesmo quando se incorpora a queda da taxa de juros, que, com certeza, ajuda muito. Parte desta queda foi em função da recessão, mas pode ter havido um certo impacto do próprio teto do gasto público. Questiono a viabilidade do teto já nos próximos anos, pois não vejo o tamanho do Estado diminuindo tanto quanto está implícito no teto. É uma questão de aritmética: o PIB cresce e o gasto fica parado. Há uma inconsistência esperando por nós.

E todas as outras reformas que estão postas são mais difíceis de serem aprovadas que a reforma da previdência, que foi discutida por 25 anos até que a ficha caiu.

Há quem já defenda o aumento de gastos por parte da União, principalmente em investimentos, já que o setor privado está investindo muito pouco. É um caminho?

Não tenho dúvida de que um Estado que investe 1% do PIB investe muito pouco. Não acredito em Estado empresário, nossa história faz disso uma obviedade. Mas o governo precisa investir mais sim. Seriam investimentos de natureza pública mesmo, bens públicos, ou que procurem desenvolver aspectos da economia que não interessariam ao setor privado. E o investimento privado está mínimo também, por isso o investimento como um todo no Brasil nunca esteve tão baixo. E isso precisa ser corrigido através de regras claras e estáveis, de uma redução geral na incerteza, inclusive política.

E a ideia de expandir o gasto público para crescer?

A ideia da Dilma de que gasto é vida? Tem muita gente falando que o país precisa voltar a investir de uma maneira mais eficiente e ninguém pode ser contra isso. Mas não acredito que hoje, mesmo pensando em investir melhor, se deva repetir o erro de querer impor crescimento com mais gastos públicos. A última experiência foi no governo Dilma e foi um tremendo fracasso. Agora, se o Brasil sinalizar uma trajetória de ajuste e de gasto melhor, o investimento privado reagiria bastante bem. E como o Brasil tem muita capacidade ociosa e muita gente desempregada, poderia voltar a viver um círculo virtuoso como o de 1999.

O senhor tem se manifestado publicamente em defesa de um “programa fiscal progressista”, afirmando que, para que haja crescimento efetivo da economia do país, é necessário se combater as desigualdades. De que forma?

Acredito que, além do imperativo moral, que já bastaria, pois o país é extremamente desigual, cabe pensar em alguns aspectos da nossa situação. De um lado, há de se eliminar uma série de políticas públicas que são de caráter regressivo e absurdo. Uma parte já se foi:  os enormes subsídios do BNDES a empresas.

Outra que já entrou na berlinda são os subsídios implícitos nas regras do de Imposto de Renda, nos regimes que permitem que gente que ganha muito pague pouco Imposto de Renda. Um exemplo é uso do Simples por quem ganha muito. Esse tipo de distorção precisa desaparecer. É aquilo que se batizou de Bolsa Empresário. Enquanto o Bolsa Família gasta 0,5% do PIB muito bem gastos, o Bolsa Empresário chegou a gastar até 7% do PIB.

Quando se quer construir um conjunto de estratégias econômicas que exigem mudanças, até sacrifícios de alguns em curto prazo, fica difícil. Como é que as pessoas vão aceitar que se mexa em sua Previdência quando tem esses tipos de distorções em outras áreas? Isso envenena nosso ambiente econômico. E isso tem a ver também com igualdade de oportunidade. Temos que pensar a promoção de igualdade de oportunidade como investimento, não como gasto. Saúde pública, saneamento básico.

Logo, não há qualquer conflito entre dar resposta à questão da desigualdade e o desafio do crescimento. Eles andam juntos. Por razões políticas, por razões humanas e por razões econômicas, de produtividade, a agenda da desigualdade precisa ser conduzida em paralelo à do crescimento, senão o crescimento ou não vai acontecer ou, se acontecer não vai muito longe.

É preciso aumentar a carga tributária sobre os mais ricos?

A nossa carga tributária não é baixa para um país de renda média. Eu vejo algum espaço para se tributar mais as faixas mais altas de renda, mas não apoiaria uma alíquota muito elevada, como apregoam alguns. A arrecadação em si, provavelmente não cresceria e incrementaria a fuga de pessoas e de talentos que o Brasil já vive.

O que eu recomendaria fortemente seria eliminar espaços que permitem que pessoas que ganham muito acima da média paguem uma carga de impostos abaixo da média, como é o caso de muitos que podem se beneficiar do regime simplificado de Imposto de Renda, o famoso Simples já mencionado. A pessoa pode, hoje, ganhar até R$ 4,8 milhões por ano e pagar 8% ou até 4% de Imposto de Renda, dependendo do setor. Isso está errado.

Acabar com as deduções de despesas médicas e com educação no Imposto de Renda ajudaria a combater desigualdades?

Com certeza contribuiria. Mas é um assunto muito polêmico porque atinge a classe média (por padrões internacionais). Quem, hoje, se beneficia dessas deduções vai sofrer. E são formadores de opinião, um número muito grande de funcionários públicos, então, é um tema político difícil. O sonho seria ter aqui uma classe média definida por padrões das economias mais avançadas. Mas, a curto prazo, isso representa sim uma fonte dessa desigualdade.

Há como se defender uma pauta dessas em um governo que tem amplo apoio dessa classe média?

Defender, sim, aprovar, não sei. Não nos esqueçamos que apenas metade da população tem acesso a esgoto e emprego formal. Cada um tem um voto. Isso acaba sendo um material altamente explosivo do ponto de vista social e um terreno muito fértil para demagogia, populismo. Por isso a agenda distributiva precisa ser encarada.

Eu sei que são questões muito difíceis. Não estou dizendo que tudo isso que estou propondo vai acontecer da noite para o dia, mas realmente não enxergo progresso amplo, sustentável e inclusivo no Brasil sem encararmos essas questões: menos gasto com Previdência e funcionalismo, mais com a área social. Esse arcabouço mostra a contabilidade da vida pública do Brasil e ela tem que ser arrumada.

A reforma da Previdência, como foi aprovada pelo Senado, contribui para a redução da desigualdade? É a reforma suficiente? Quando o Brasil precisará voltar a discutir Previdência social?

A reforma foi um primeiro passo importante. Ela pode contribuir com 1 ponto percentual no PIB por ano por 10 anos, ou, até, um pouco mais, com o combate a fraudes. Foi um avanço, mas não vai ser a última vez que vamos discutir a questão, e acho que precisaremos de uma nova reforma dentro de 10 anos.

E a reforma tributária. Há projeto do governo, projeto da Câmara, projeto do Senado, proposta dos governadores, propostas do empresário. Será possível se chegar a um consenso?

O assunto é complexo, um grande desafio político. Em tese, deveria ser possível desenhar uma reforma onde todo mundo ficaria igual ou melhor. Mas isso exigiria que as pessoas entendessem que uma parte do ganho viria de uma economia mais arrumada, que cresceria mais. E, às vezes, nas discussões políticas, nem sempre se consegue fazer essa conexão com o futuro e tampouco a conexão causal.

Essa reforma representa uma oportunidade de ouro para o Brasil. Mas não sabemos se vai passar. Há um entendimento razoável sobre os custos do sistema atual, mas será preciso negociar com os estados e só o tempo dirá se vai ser possível. O governo abandonou, a ideia de CPMF, uma decisão correta, pois é um imposto muito ruim. O caminho agora vai na direção da reorganização da tributação indireta, com algum modelo de simplificação do ICMS, ISS, PIS/Cofins. Esse cipoal de tributos  hoje representa um enorme obstáculo à vida econômica do Brasil, um verdadeiro pesadelo burocrático.

E a reforma administrativa. É correto mexer na situação dos servidores públicos?

É fundamental essa reforma. Tivemos no passado uma que não resolveu. Isso faz parte de um processo, as discussões vão avançando, mas o funcionalismo, com muito poder, vai lutar contra. Que seria muito bom e muito justo, não há dúvida.

Eu venho, há algum tempo, trabalhando com colegas nesta área, na linha de elaborar reformas que permitam uma administração mais eficiente da máquina estatal. A reforma do RH do Estado teria impacto imediato sobre a gestão pública. A reforma que imagino teria que ter algumas características tais como todo funcionário público ser avaliado, não haver promoção automática e, em última instância, em casos mais extremos, permitir a demissão. A Constituição já prevê isso.

Esse é um ponto quase sempre esquecido, porque na prática tem sido quase impossível afastar funcionários públicos por mau desempenho. Não creio que o setor público deva ser administrado da mesma maneira que o setor privado. Claro que isso não faz sentido, trata-se de outra cultura, são outras vocações, mas não dá para continuar como está.

E o impacto sobre o gasto público?

O gasto do Brasil com funcionalismo é um ponto fora da curva quando comparado com países parecidos com o Brasil. E isso independe do tamanho do gasto. O gasto com funcionalismo em proporção ao gasto total é muito alto no Brasil. A reforma do RH do Estado teria impacto fiscal a médio prazo.

Como o senhor viu os recentes protestos no Chile, um país que era citado como modelo de política econômica liberal bem-sucedida?

Foi uma combinação de fatores. O Chile avançou muito em muitas áreas, mas segue sendo um país desigual. E há, também, uma frustração de expectativas. Quando as coisas pararam de melhorar, estagnaram, as tensões aumentaram muito. Isso aconteceu já no Brasil, está acontecendo na França. Então, não se deve só ao fato estático, de que a desigualdade continua, mas também a uma situação mais dinâmica, onde diminui a expectativa de que o progresso vai continuar. E tudo isso pode acontecer outra vez aqui no Brasil, com certeza.

E o resultado da eleição na Argentina?

O caso da Argentina é muito complicado. Um país que se destruiu com o peronismo, entregou uma economia arrebentada para a administração do presidente Macri. Ele só conseguiu apresentar algum resultado no início, depois, falhou e, agora, os peronistas estão voltando. A Argentina vive um quadro extremamente frustrante há décadas, principalmente para um país que já foi uma das principais economias do mundo. O populismo e a demagogia só trouxeram tristeza.

Acredita que que o acordo Mercosul com a União Europeia está ameaçado?

Não sei ainda. A volta do kirchnerismo não anima muito, mas vamos aguardar que sinais eles darão ao mercado. É um processo extremamente penoso para eles, mas para nós também, que estamos aqui do lado.

O senhor tem apresentado em entrevistas, eventos públicos e artigos suas ideias para a política econômica do país. Está tendo alguma abertura no governo para expor suas ideias, tem contato com a equipe de Paulo Guedes?

Tenho pouco contato direto com o governo. O ministro Paulo Guedes e eu nos conhecemos de longa data, ele foi meu professor. Temos várias ideias em comum. Mas ele trabalha amarrado a um governo que não necessariamente concorda com ele. Não creio que ele seja contra uma agenda de redução das desigualdades no Brasil. Participei de um grupo que desenvolveu uma proposta de reforma da Previdência detalhada e que foi apresentada ao governo e aproveitada em parte.

Mas os problemas maiores do governo estão dentro do próprio governo, que precisa executar a agenda econômica e corrigir rumos. Temo que isso não ocorra.

E o que vislumbra para o futuro?

O futuro é preocupante. O que me anima é ver o crescimento da participação de jovens na política. Isso, combinado a um ambiente em que sobrevivem as liberdades de expressão, de opinião e de imprensa, nos permite imaginar algum caminho melhor. Mas minha análise objetiva da situação me leva a um estado permanente de preocupação.

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