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A poucas semanas da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a Rússia, marcada para maio, a Ucrânia dá um passo atrás na relação bilateral com o Brasil. Nos próximos dias, o embaixador ucraniano em Brasília, Andrii Melnyk, deixa a capital federal para assumir o papel de representante da Ucrânia nas Nações Unidas (ONU). Com sua saída, o posto pode ficar vazio até o próximo ano, conforme apurou a Gazeta do Povo.
A expectativa, de acordo com membros do governo ucraniano ouvidos em caráter reservado pela reportagem, é deixar um encarregado de negócios responsável pela embaixada até o final do próximo ano, contando com uma possível mudança de governo após as eleições presidenciais de 2026. A percepção é de que a gestão petista tem sido favorável à Rússia, país que invadiu a Ucrânia, no conflito que já dura mais de três anos.
A saída de um embaixador sem um novo para substituí-lo não é bem-vista no meio diplomático. Deixar as relações entre dois países sob a responsabilidade de um encarregado é sinal de rebaixamento na relação bilateral, indicando descontentamento, esfriamento político ou desacordo significativo entre os países envolvidos.
Antes disso, Kyiv tinha apostado no Brasil, deslocando para o posto um de seus embaixadores de mais alto escalão, Melnyk, que antes havia servido na Alemanha com a missão de destravar o envio de armamentos para a Ucrânia.
A razão para esse rebaixamento seria a aproximação de Lula com Putin, e as preocupações sobre a viagem que o mandatário brasileiro fará à Rússia no próximo mês. Lula falou com o ditador russo no início deste ano por meio de um telefonema e afirmou o desejo de fazer uma viagem a Moscou após convite de Putin. A previsão é de que a viagem aconteça na primeira semana de maio.
Ainda se soma ao descontentamento do governo ucraniano a falta de um posicionamento do Itamaraty sobre os recentes ataques com mísseis balísticos feitos pela Rússia contra a Ucrânia, que deixaram dezenas de civis mortos em Kryvyi Rih e Sumy. Conforme apurou a reportagem, o Brasil não deve se manifestar sobre as últimas ofensivas russas. Os ataques dos dias 4 e 13 de abril foram realizados após as discussões para um cessar-fogo temporário que Donald Trump vinha tentando negociar entre os dois países. Kyiv aceitou a trégua, mas não houve resposta positiva de Moscou.
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Zelensky rejeitou ligações com Lula
O descontentamento de Volodymyr Zelensky não é recente e a relação entre Brasil e Ucrânia tem passado por uma nova degradação nas últimas semanas, após a expectativa de uma ligação que não ainda ocorreu. Durante passagem de Lula pela Ásia, o petista anunciou que teria uma conversa por telefone com presidente ucraniano para discutir o plano de paz sino-brasileiro para um cessar-fogo na Ucrânia.
"Eu pretendo conversar sobre isso [fim da guerra] outra vez com o [presidente da Rússia, Vladmir] Putin. E, nesta semana, tem um telefonema do Zelensky para mim, e eu vou conversar com o Zelensky. Eu espero que agora ele esteja preocupado com a paz porque até agora ele não estava", declarou Lula, no final de março, ao ser questionado sobre a possibilidade de um contato com o presidente ucraniano.
Essa ligação, contudo, ainda não ocorreu. À Gazeta do Povo, o embaixador do Brasil na Ucrânia, Rafael de Mello Vidal, informou que o contato não ocorreu por "grandes dificuldades na agenda do presidente Zelensky, causadas pelo ataque na cidade de Kryvyi Rih, que vitimou muitos civis e crianças, levando-o a deslocar-se para a região e atender a compromissos com as famílias e a cidadania".
"Aguarda-se o oferecimento de nova data para o telefonema por parte da Presidência ucraniana, e sua possível compatibilidade com a complexa agenda do Presidente Lula. Os últimos dias foram marcados também por um ataque à cidade de Sumy, no Domingo de Ramos, que também tem mobilizado intensamente a agenda presidencial ucraniana", informou Vidal. O bombardeio matou mais de 30 pessoas.
Por outro lado, de acordo com interlocutores ucranianos, Zelensky teria desistido de um telefonema com o mandatário brasileiro motivado por um descontentamento pela posição brasileira. E também teria pesado na decisão do presidente da Ucrânia a viagem que Lula pretende a fazer a Moscou nas próximas semanas. Essa questão foi interpretada como um aceno a Vladimir Putin e mais um sinal de distanciamento de Lula da Ucrânia, que não demonstrou interesse em visitar o país ou receber Zelensky para uma agenda oficial – e também não prestou condolências sobre os últimos ataques realizados por Putin.
Conforme já mostrou a Gazeta do Povo, a Ucrânia tentou investir em uma maior aproximação com o Brasil, mas não obteve retorno positivo. Além dos convites não respondidos para que Lula visitasse a Ucrânia, também não houve retorno sobre as tentativas de fazer com que o mandatário brasileiro recebesse Zelensky para um encontro em Brasília.
Em 2023, o presidente ucraniano precisou fazer uma parada na capital federal para abastecer seu avião antes de seguir caminho para a Argentina, onde se encontraria com Javier Milei. Na ocasião, havia a expectativa de que Lula pudesse aproveitar a oportunidade para se reunir com Zelensky, mas o petista recusou um encontro. Uma representante do Itamaraty, então, se reuniu com o líder ucraniano.
Na contramão disso, Lula tem mantido contatos frequentes com Vladimir Putin. No último ano, o brasileiro era um dos confirmados na Cúpula de Líderes dos Brics (bloco de países emergentes) que foi realizada em Kazan, na Rússia. A viagem precisou ser cancelada às vésperas do embarque após Lula sofrer um acidente do Palácio do Alvorada e sofrer um traumatismo craniano, o que o impediu de realizar viagens áreas por alguns meses.
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Viagem de Lula a Rússia pode ser determinante para a relação entre os dois países
A viagem de Lula para Moscou em maio tem sido vista com cautela por Kyiv. Para analistas, a decisão de Lula visitar o país invasor antes do país invadido chancela a percepção de que o mandatário brasileiro tem um "lado" na guerra entre os dois países. Por outro lado, a Ucrânia pretende esperar a viagem acontecer para determinar o tom que será adotado na relação diplomática com o Brasil durante o restante do governo Lula.
Apesar de convergirem sobre o interesse pelo encerramento do conflito, Lula e Zelensky enfrentaram embates nos últimos anos em razão das percepções diferentes que cada um tem sobre o fim da guerra. Lula defende que uma solução para o conflito precisa ser negociada entre Rússia e Ucrânia, ou seja, invasor e invadido.
"Até então, ele [Zelensky] achava que o Putin tinha que aceitar o acordo dele, do jeito que ele queria. E não é assim. Ninguém é o senhor da razão, achando que pode impor sua vontade sobre os outros. Num conflito como esse, se os dois estiverem dispostos a negociar, será muito melhor para a Ucrânia, muito melhor para a Rússia, muito melhor para a Europa e muito melhor para o mundo", defendeu Lula recentemente.
Zelensky, por outro lado, é um crítico assíduo dessa percepção. Para Kyiv, incluir Putin nas negociações seria favorecê-lo no contexto da guerra que foi iniciada pelo próprio ditador russo. Tal divergência afastou os presidentes ucraniano e brasileiro. Apesar do distanciamento, a embaixada brasileira na Ucrânia ressalta laços de cooperação e aproximação entre os dois países.
Embaixada do Brasil na Ucrânia vê espaço para fortalecer laços
À reportagem, Rafael Vidal destacou a grande comunidade ucraniana que vive no Brasil e afirmou que os laços entre os dois países são fortes no terreno cultural e no terreno parlamentar. "Dada a presença de importante representação da diáspora ucraniana no Senado e na Câmara dos Deputados, que conta com a Frente Parlamentar Brasil-Ucrânia, atuante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, bem como em São Paulo", declarou.
A representação brasileira também vê possibilidade de expandir as relações bilaterais por meio de acordos. "Há entendimentos sobre avanços em cooperação na formação de médicos, investimento em geração de energia limpa (biocombustíveis), investimentos em energia, cooperação no programa Escola para Todos e cooperação cultural em cinema e tradução de obras e autores brasileiros (Clarice Lispector). A Ucrânia também aderiu recentemente à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza", disse Vidal à Gazeta do Povo.
O embaixador também citou laços entre os dois países no terreno político e ressaltou o plano sino-brasileiro que propõe a paz na Ucrânia. "A relação diplomática é forte no terreno político, estando o Brasil à frente, por exemplo, de uma importante iniciativa de paz, que busca criar as condições para um cessar-fogo, reunida no Grupo de Amigos da Paz", mencionou.
A proposta, que já foi criticada por Zelensky, teve alguns termos apreciados pela Ucrânia depois que Donald Trump entrou nas negociações para encerrar a guerra. O republicano, deu indícios de que poderia escantear Kyiv e a Europa das discussões e buscou negociar com a Rússia antes de ouvir os ucranianos. A situação também gerou um mal-estar geopolítico.
Desde então, a proposta promovida por Brasil e China ganhou tons não tão desfavoráveis para a Ucrânia, pois prevê que as negociações precisam ter o reconhecimento de ambos os países envolvidos no conflito. O texto, no entanto, é considerado vago pela Ucrânia, já que prevê a integridade territorial do país, mas não menciona a retirada de tropas russas e nem a devolução do território já ocupado.