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Putin foi convidado a vir ao Brasil no encontro do G20
Lula e Putin no Palácio do Planalto, em 2004: amizade antiga.| Foto: EFE/Jefferson Rudy

O Brasil se opôs a uma proposta da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (ONU) de possibilitar que oficiais estrangeiros condenados por crimes de guerra sejam processados e punidos fora de seu país. A posição foi externada num parecer enviado em novembro de 2023 ao órgão da ONU, que disciplina a aplicação das regras do direito internacional entre os países-membros.

No documento, o Brasil ainda defende que, dentro de seu território, um país só deve cumprir obrigações impostas pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) – como uma ordem de prisão – contra um líder estrangeiro somente se o país dele também for signatário do Estatuto de Roma, que criou a Corte, define os crimes julgados por ela (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, entre outros) e processa pessoas acusadas por esses delitos.

A posição tem chamado a atenção de diplomatas e analistas internacionais por contrariar regras do Estatuto de Roma. Ao lado de 123 países, o Brasil é signatário desse tratado, e nessa condição, se compromete a cumprir as determinações do TPI desde 2002.

Hoje, o processo mais notório no tribunal é o de Vladimir Putin, ditador da Rússia, contra quem há um mandado de prisão internacional expedido no ano passado, em razão de atrocidades cometidas na invasão da Ucrânia.

Putin foi considerado responsável pela deportação de ao menos 9 mil crianças ucranianas que viviam em territórios ucranianos temporariamente ocupados pela Rússia. Posteriormente, elas foram adotadas a força por famílias russas. A maioria dos pais não sabe o paradeiro dos filhos que foram vítimas do crime.

A rigor, se Putin pisar num território de um país signatário do Estatuto de Roma, esse país é obrigado a prendê-lo e entregá-lo ao TPI, sediado na Holanda.

Parecer do Brasil garante imunidade a ditadores como Putin

No parecer entregue à ONU, o Brasil opinou acerca de uma proposta em discussão na comissão sobre o direito à imunidade penal em jurisdições estrangeiras.

Pela proposta da ONU, funcionários de determinado Estado não podem ser processados criminalmente em outro país por atos cometidos no exercício de suas funções. Chefes de Estado, de governo e ministros de Relações Exteriores têm imunidade ainda mais ampla, pois não seriam processados criminalmente fora de seu país por atos praticados a título oficial ou privado, durante ou antes do seu mandato.

A exceção é justamente para casos de crimes de guerra e contra a humanidade, genocídio, apartheid, tortura e desaparecimento forçado. Pela proposta da ONU, a imunidade não se aplica nesses casos, quase todos julgados pelo TPI.

No parecer entregue à Comissão de Direito Internacional da ONU, a diplomacia brasileira afirmou ter “compromisso com a promoção da responsabilização por crimes graves nos termos do direito internacional” e disse reconhecer “iniciativas para evitar a impunidade”.

Porém, em seguida, o Brasil argumenta que, se de fato o órgão ressalvar a imunidade nos crimes de guerra e afins, “esta disposição só se aplicaria entre os Estados partes do possível acordo futuro”. “Em nenhuma circunstância, a limitação ou exceção sugerida no projeto do artigo 7º poderia aplicar-se a um Estado não-parte numa convenção baseada nesta redação”, disse a diplomacia brasileira sob Lula.

Em termos práticos, é uma forma de garantir a imunidade a líderes de países que, como a Rússia, não ratificam o Estatuto de Roma e, por isso, não se submetem às ordens do TPI.

Em outro trecho do parecer, o Brasil também defende que as regras de imunidade não afetem “direitos e obrigações” de países que aderem a acordos internacionais para estabelecer tribunais penais – o que, em tese, favoreceria o cumprimento das ordens do TPI. Mas faz uma ressalva: isso só se aplicaria “entre as partes desses acordos”.

Ou seja: um país só poderia prender um líder estrangeiro a mando do TPI se ele for de um Estado-parte, signatário do Estatuto de Roma. Mais uma brecha para que Putin se livrar de uma prisão internacional.

Lula já disse que Putin não correria risco de ser preso no Brasil

A discussão ganhou relevância nas relações internacionais em razão da declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em setembro do ano passado, garantindo que Vladimir Putin não correria risco de ser preso caso venha ao encontro do G20 no Rio de Janeiro, em novembro deste ano.

“Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Não, ele não será preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil”, disse Lula, durante entrevista em Nova Déli, na Índia, num encontro do mesmo G20, grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo. Putin não compareceu a esse evento, embora a Índia não seja signatária do Estatuto de Roma e, portanto, não tenha obrigação de cumprir ordens do TPI.

Caso a ONU aprove a garantia de imunidade frente ao TPI da maneira como foi proposta pelo Brasil, pelo fato de a Rússia não ratificar a existência da Corte internacional, o governo brasileiro teria um argumento jurídico para não prender Putin em uma eventual visita do ditador. Apesar disso, alguns especialistas consideram que seria uma manobra frágil.

Ministério da Justiça teria que executar a prisão, explica especialista

Especialista no tema, o advogado e doutor em Direito Marcelo Peregrino sustenta que o Estatuto de Roma, incorporado pelo Brasil na forma de lei, é muito claro em declarar que a imunidade penal não se aplica a líderes condenados por crimes de guerra e congêneres no exterior.

É o que indica o artigo 27 do tratado: “o presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”.

Ao artigo 59 do Estatuto de Roma é ainda mais claro no que diz respeito às ordens de prisão do TPI dirigidas aos Estados signatários, como o Brasil: “o Estado Parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de detenção e entrega, adotará imediatamente as medidas necessárias para proceder à detenção, em conformidade com o respectivo direito interno e com o disposto na Parte IX”.

Peregrino diz que, numa eventual visita ao Brasil de Putin ou outro criminoso de guerra apontado pelo TPI com ordem de prisão, caberia ao Ministério da Justiça executar a medida.

“O que o Estatuto de Roma diz é que países devem cumprir mandados internacionais mesmo contra autoridades estrangeiras que dispõem de imunidade material e formal, mesmo sendo nacional de um país que não seja signatário do Estatuto de Roma. O Brasil se comprometeu com o TPI e o tratado que o estabeleceu foi incorporado internamente. Não há dúvida quanto à validade do Estatuto de Roma”, diz o advogado.

Recusa em prender Putin pode gerar desgaste de Lula com líderes do Ocidente

Além de frágil do ponto de vista jurídico, uma eventual recusa do Brasil em prender Putin, caso ele venha ao G20, desgastaria o país ainda diante de Estados Unidos e Europa, cujos líderes, ao contrário de Lula, condenam de forma veemente o presidente russo pela invasão da Ucrânia.

Para Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM, um eventual descumprimento pelo Brasil do Estatuto de Roma não seria um mero aceno a Putin. “Direitos humanos são parte essencial do que é ser Ocidente. Fazer questão de receber um líder culpado de cometer crimes de guerra, como Putin, ainda mais numa invasão e anexação de território, como já ocorreu na Crimeia em 2014, é algo que qualquer cidadão europeu médio repudia, não somente seus líderes”.

Ele lembra que em abril de 2023, durante visita a Portugal, Lula disse que “a decisão da guerra foi tomada por dois países”, sugerindo que a Ucrânia seria tão culpada quanto a Rússia. “Isso pegou muito mal. Lula tem tentado corrigir desde então, mas está anotado. Querendo ou não, quem invadiu o país vizinho foi a Rússia. E o Brasil sempre pautou sua política externa contra o uso da força. Diria que atitudes assim provocam não um afastamento, mas uma má vontade, por parte de Estados Unidos, quando o Brasil precisar”, acrescenta Gunther Rudzit.

O encontro do G20 no Brasil está marcado para novembro, no Rio de Janeiro. Mesmo com a palavra de Lula de que Putin não seria preso aqui, sua vinda é considerara improvável. Além de persona non grata entre a maioria dos líderes do grupo, haveria riscos no trajeto – o espaço aéreo europeu está fechado para aeronaves russas e uma travessia pela África também poderia ser foco de ataques, a depender do país.

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