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Como a PGR deve preparar a denúncia contra Bolsonaro por suposta tentativa de golpe
“Golpe é tanque na rua, é arma, é conspiração. Nada disso foi feito no Brasil”, disse Jair Bolsonaro sobre acusação de golpe| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Criminalistas que acompanham de perto a investigação sobre a suposta tentativa de golpe de Estado, no fim de 2022, entendem que a Procuradoria-Geral da República (PGR) já tem indícios suficientes para denunciar Jair Bolsonaro (PL) pelo crime no Supremo Tribunal Federal (STF). Ponderam, porém, que isso não significa, necessariamente, que haja elementos para uma condenação do ex-presidente.

Para três advogados da área consultados pela Gazeta do Povo, os procuradores tendem a buscar mais provas, sobretudo que impliquem Bolsonaro diretamente no ato de 8 de janeiro de 2023, em que houve invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília.

Dentro da PGR, que tem a palavra final para acusar ou não Bolsonaro, a ordem é de máxima discrição neste momento. Quem cuida do caso internamente não dá pistas sobre o momento, a forma e a viabilidade de uma eventual denúncia.

Mesmo nas manifestações sobre o caso enviadas ao STF, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, tem sido econômico nas palavras e evita antecipar qualquer juízo. Embora tenha apresentado algumas ressalvas na investigação – foi contra, por exemplo, a proibição de contato entre Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto – ele tem avalizado quase todas as diligências requeridas pela Polícia Federal e autorizadas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no STF.

Entre ministros do STF, a expectativa é que a investigação da PF seja concluída ainda neste semestre. Só depois disso a PGR pode formular a denúncia.

PGR deverá traçar linha cronológica partindo de reunião de julho de 2022

Para criminalistas ouvidos pela reportagem, se a PGR optar pela denúncia, a tendência é que trace uma linha cronológica que reúna alguns fatos públicos e outros revelados na investigação que demonstrem que, muitos meses antes da eleição, Bolsonaro já cogitava e preparava uma tentativa de reverter sua derrota nas urnas.

Uma peça-chave desse enredo é o vídeo da reunião ministerial, ocorrida em 5 de julho de 2022, em que Bolsonaro prevê que perderia para o então candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva e pressiona seus ministros a questionar o processo eleitoral conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sob o argumento de que seria impossível aferir a lisura das urnas eletrônicas.

Na reunião, o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, tratou o tribunal como “inimigo”, e o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, afirmou que era preciso “virar a mesa” antes das eleições e “agir contra determinadas instituições”.

Muito antes disso, Bolsonaro já questionava a integridade da votação eletrônica. Durante o mandato, disse algumas vezes que teria sido eleito no primeiro turno em 2018, e em 2021, numa entrevista à imprensa transmitida ao vivo, em que anunciaria “provas” de fraude, mostrou vídeos da internet em que eleitores reclamavam de supostos desvios nos votos como "indícios" de fraude. Em julho de 2022, ele reuniu embaixadores para lançar novas dúvidas sobre as urnas e a imparcialidade do TSE.

A PGR também deverá a usar na denúncia contra Bolsonaro fatos até então desconhecidos, mas agora revelados na investigação da Polícia Federal, para robustecer a acusação de que o objetivo sempre foi anular a eleição de Lula. Dentro desse rol estão:

  • o texto de um decreto em que Bolsonaro instituiria um Estado de Defesa no TSE para “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022” – que vem sendo chamado de "minuta do golpe". A investigação da PF aponta que, embora o documento não tenha assinatura, o ex-presidente revisou o texto para prever a prisão de Moraes;
  • mensagens do ex-ajudante de ordens Mauro Cid que indicam que Bolsonaro teria buscado apoio do Exército e de forças especiais (os “kids pretos”) para executar a prisão – alguns diálogos mostram que um coronel monitorava deslocamentos do ministro no fim de 2022;
  • depoimentos do ex-comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, em que relatam reuniões com Bolsonaro e Paulo Sérgio Nogueira, para avaliarem o plano – mensagens do ex-chefe da Casa Civil Walter Braga Netto também indicam que eles sofriam pressão, dentro das Forças Armadas, para avalizarem uma intervenção;
  • conhecimento e possível apoio, por parte de Bolsonaro e Braga Netto, das manifestações de apoiadores em frente aos quartéis em favor de uma intervenção – há vídeos registrando aparições públicas de Bolsonaro e Braga Netto na época, em frente ao Palácio da Alvorada, reconhecendo os atos, bem como mensagem de Cid oferecendo apoio financeiro.

PF tenta ligar falsificação de cartão de vacina à investigação sobre tentativa de golpe

Na terça-feira (19), ao indiciar Bolsonaro por falsificar cartão de vacina contra a Covid, o delegado Fabio Shor escreveu que essa e outras ações investigadas – dos “ataques” a opositores políticos e a integrantes de instituições nas redes sociais até à suposta apropriação de presentes dados à Presidência – visavam a “garantir a permanência no poder”. Segundo a PF, Bolsonaro e seu entorno integrariam associação criminosa para cometer vários delitos com esse objetivo.

A falsificação do cartão de vacina, nas palavras do delegado, “pode ter sido utilizada pelo grupo para permitir que seus integrantes, após a tentativa inicial de Golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior (cartão de vacina), aguardando a conclusão dos atos relacionados a nova tentativa de Golpe de Estado que eclodiu no dia 08 de janeiro de 2023”.

Outros pontos que podem ser ligados à narrativa sobre tentativa de golpe

Para Gabriel Frias Araújo, advogado, professor e mestre em Direito pela Unesp, há um “ideário comum” por trás de fatos mais recentes que culminaram nos ataques ao STF, ao Congresso e ao Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023 – ato que a PF, a PGR e os ministros do STF já consideram como tentativa de golpe, definido no Código Penal, como a tentativa de “depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.

Exemplos disso são a declaração de Bolsonaro de que não cumpriria ordens de Moraes, durante discurso em 7 de setembro de 2021, na avenida Paulista (embora tenha recuado do posicionamento dois dias depois); a fiscalização reforçada da Polícia Rodoviária Federal em estados do Nordeste no segundo turno da eleição de 2022; o vandalismo contra a PF em Brasília no dia da diplomação de Lula, em dezembro, após a prisão de um indígena que protestava contra o presidente eleito; a tentativa de explodir uma caminhão-tanque antes do Natal naquele ano; bem como as manifestações em frente ao quartel-general (QG) do Exército em Brasília, de onde partiram os “executores” do 8 de Janeiro.

Para Araújo, no entanto, a PF ainda deve buscar os elos de ligação entre todos esses eventos.

“Acho que já existem elementos para a fazer denúncia, estão tentando encontrar um rastro que leva uma coisa à outra”, diz. “A PF espera encontrar elementos de fato que liguem tudo isso ou pessoas que participaram de todos esses atos. Não eram coincidências. Vai se chegar a algum nome ou nomes. A questão vai ser individualizar condutas, para que cada um responda na medida do que colaborou”, diz o advogado, que já defendeu réus na Operação Lesa Pátria, que apura os financiadores e instigadores do 8 de Janeiro. Ele supõe que houve alguém que determinou a invasão.

“Em algum momento houve um gatilho. Resta saber quem foi que deu início e a mando de quem. Os manifestantes estavam se mobilizando e organizados desde o resultado das eleições. Enquanto isso, o presidente fazia reuniões a portas fechadas, trabalhou antes e depois das eleições, e certamente sabia que as pessoas estavam na porta dos quartéis”, opina.

Antonio Carlos de Freitas Jr., mestre em Direito Constitucional pela USP, também considera que os elementos colhidos na investigação, até o momento publicizados, são suficientes para uma denúncia, mas não necessariamente para uma condenação de Bolsonaro.

“Não são provas cabais. Não quer dizer que ele vai ser condenado, nem estou dizendo que ele seja culpado. Uma vez denunciado, ele terá o direito de ampla defesa e contraditório para gerar provas [em seu favor]. Mas vejo que já há indícios suficientes para materialidade: houve tentativa de golpe", pondera.

É o que também entende Acacio Miranda, mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada. Para ele, a PF ainda deve tentar encontrar elementos mais robustos da participação de Bolsonaro no 8 de Janeiro.

“Há indícios de materialidade e autoria suficientes para a denúncia, mas não para condenação. Precisamos levar em consideração que, processualmente, essas provas serão analisadas sob o crivo do contraditório. Se elas vão se sustentar na ação penal, não sei”, diz o advogado.

O que Bolsonaro já disse sobre o caso

Bolsonaro sempre negou qualquer tentativa de golpe e diz que não tomou nenhum ato concreto para permanecer no poder – ao contrário, diz que seu governo colaborou para a transição para a nova gestão de Lula e que ele mesmo nomeou os comandantes das Forças Armadas escolhidos pelo novo presidente.

"Golpe? Que golpe? Onde estava o comandante? Onde estavam as tropas, onde estavam as bombas?”, disse Bolsonaro em fevereiro do ano passado, em entrevista ao jornal “The Wall Street Journal” sobre o 8 de Janeiro. Ele destacou que na data estava nos Estados Unidos.

Em junho, ele declarou que não tinha conhecimento da minuta do decreto de Estado de Defesa encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. “Não tive conhecimento. Não existe golpe com respaldo jurídico. Golpe é pé na porta e arma na cara, meu Deus do céu. Golpe tem que depor alguém. [Artigo] 142, GLO, tudo isso são remédios previstos na Constituição. (…) Golpe não tem papel, tem fuzil. Dá pra entender isso?”.

No último dia 25 de fevereiro, em discurso na avenida Paulista, ele voltou a questionar a acusação de golpe. “Golpe é tanque na rua, é arma, é conspiração. Nada disse foi feito no Brasil. Por que continuam me acusando de golpe? Porque tem uma minuta de decreto de Estado de Defesa. Golpe usando a Constituição?”, disse.

Reuniões com as Forças: atos preparatórios ou executórios?

Uma discussão a ser travada no processo, já sinalizada pelo próprio Bolsonaro, diz respeito às fases de uma conduta criminosa. Pelo direito penal brasileiro, são quatro: cogitação, preparação, execução e consumação.

Exemplo fácil de entender é de um homicídio: na fase da cogitação, uma pessoa pensa em matar outra; na da preparação, arruma uma arma e planeja uma emboscada; na fase de execução, dispara o tiro ou dá uma facada; e na consumação, consegue matar a vítima.

O Código Penal diz que as duas primeiras fases não são puníveis, mas somente as duas últimas, exceto em determinados delitos muito específicos, em que a preparação já constitui um ato criminoso – caso do terrorismo, por exemplo.

Para o procurador de Justiça de São Paulo César Dario Mariano, especialista e professor de Direito Penal, com o que se sabe até o momento, Bolsonaro parou na segunda fase e, por isso, não pode ser condenado.

“O que temos ali são meros atos preparatórios, e um planejamento falho ainda. Não houve nenhum ato de execução. As tropas foram colocadas em prontidão? Militares pegaram em armas de fogo? Carros blindados foram colocados nas ruas? Não. Os comandantes não concordaram com isso. Não teve o início da execução, então não se pode falar em crime. Não teve nada além de preparação. Houve desistência voluntária, não há tipicidade”, afirma.

Ele ainda lembra que os crimes de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito só se configuram quando há uma tentativa com emprego de “violência ou grave ameaça”. “Qual foi a violência ou grave ameaça concreta? Alguma instituição ou alguma pessoa foi ameaçada?”, indaga o procurador.

Para ele, só é possível denunciar e condenar Bolsonaro se ficar provado que ele teve participação no 8 de Janeiro. “Ele tem que ter planejado, induzido ou sido responsável por todas as pessoas estarem lá, ou conversou com empresários para financiarem isso. Tem algo nesse sentido? Tem meras suposições”, diz.

Já para Antonio Carlos de Freitas Jr. e Acacio Miranda, se ficar provado que Bolsonaro tentou convencer os comandantes do Exército e da Aeronáutica a aderir ao Estado de Defesa no TSE, para rever o resultado da eleição, estaria caracterizada não uma preparação, mas um ato executório do golpe.

“O tipo penal que estamos tratando usa como verbo ‘tentar’. Então, não podemos exigir que para a configuração do delito, tivesse que estar presente conseguir derrubar o governo legitimamente eleito ou mudar o Estado Democrático de Direito. E a cogitação teria que ser muito fora do plano da realidade. Teria que ser algo como ‘pensei’, ou ‘foi uma brincadeira’, ou ‘foi uma conversa que falaram e logo rechacei, tomei medidas concretas para que não ocorra’. O fato de ter ciência, falar sobre a minuta com autoridades públicas, ver pessoas organizando as manifestações e executando, como no caso do 8 de Janeiro, mostra que houve atos executórios, não preparatórios”, opina Antonio Carlos de Freitas Jr.

“A gente pune o terrorismo da mesma forma que a tentativa. Se o golpe de Estado fosse consumado, não haveria punição”, argumenta Acacio Miranda.

A expectativa entre ministros do STF é que eventual denúncia da PGR seja apresentada ainda neste ano, depois que a PF concluir as investigações sobre essa suspeita.

Uma prisão preventiva, por enquanto, está fora do horizonte, a não ser que Bolsonaro seja acusado de atrapalhar as investigações. A prisão para cumprimento de pena, em caso de condenação, só pode ser efetivada após a sentença e julgamento de dois recursos no próprio STF.

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