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Até o próximo dia 4 de maio, a cidade de Havana, capital de Cuba, recebe um curso de formação política promovido por diversas organizações de esquerda da América Latina — entre elas o Foro de São Paulo, a Fundação Perseu Abramo (ligada ao PT), o Movimento Sem Terra, a Marcha Mundial de Mulheres e a CLOC-Vía Campesina da Nicarágua. A formação é oferecida pela Universidade Ñico López, oficial do Partido Comunista Cubano e criada por Fidel Castro com o objetivo de difundir a teoria marxista-leninista.
Especialistas ouvidos pela reportagem temem que o evento possa incentivar ideias cubanas sobre censura, que poderiam ser importadas ao Brasil num momento considerado crítico, marcado pelo cerceamento da liberdade de expressão. Como o programa oficial do evento não foi divulgado pela universidade, a Gazeta do Povo questionou os participantes sobre debates em censura ou regulações na internet.
A Fundação Perseu Abramo foi a única a responder ao questionamento. Disse que levando em consideração a trajetória do jornalista e professor que dá nome à Fundação, “não há nenhuma possibilidade de que pautas antidemocráticas sejam discutidas no âmbito da instituição, o que significa que ela respeita e sempre seguiu os preceitos do Estado Democrático de Direito e, obviamente, da Constituição Federal”. A organização também destacou que, como qualquer outra fundação partidária, todas as ações da Fundação Perseu Abramo, o que inclui a prestação de contas, são fiscalizadas e avalizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
Nas páginas oficiais das entidades, o curso aparece com registros breves e sem muitos detalhes. Não há informações sobre o conteúdo e se apresenta apenas como “Curso de Formação Política: vinculação das forças políticas e dos movimentos sociais e populares”. Afirma ser destinado a filiados do Partido dos Trabalhadores, dirigentes sindicais, parlamentares e membros de ONGs e coletivos de esquerda.
“Apesar de se apresentar como uma ‘formação crítica’, a proposta ocorre num ambiente político em que a crítica ao poder é censurada e a divergência é silenciada, mas reforça um papel de aproximação do governo do PT do Brasil com ditaduras”, destaca Alves.
Para Módolo, mais do que uma ação “educativa” ou de doutrinação, o curso evidencia uma escolha simbólica e política: legitimar uma estrutura de poder autoritária em nome de uma pretensa unidade latino-americana. “Tal contradição levanta dúvidas sobre os verdadeiros valores defendidos por essas organizações quando falam em democracia e liberdade no Brasil.”
O governo brasileiro não informou se enviou representação oficial ao curso em Havana.
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Para o advogado e comentarista político Luiz Augusto Módolo, especialista em Direito Internacional, a “experiência” compartilhada no evento pode estimular mecanismos de censura típicos de regimes ditatoriais.
Módolo avalia que o Foro de São Paulo representa uma coordenação política que, ao longo de décadas, foi decisiva para a ascensão de partidos de esquerda ao poder. Segundo ele, essa articulação contribuiu diretamente para levar o PT ao Planalto em cinco mandatos, bem como para eleger partidos aliados na Bolívia, na Venezuela e na Nicarágua.
O sociólogo Gustavo Alves opina que o local do evento - uma estrutura central do regime cubano, no qual não há eleições livres, imprensa independente ou liberdade de associação - poderá ter efeitos na política de esquerda brasileira. Segundo ele, é fundamental acompanhar as pautas sobre liberdade de expressão e o risco de incentivo à censura em debates sobre regulação das mídias sociais que podem surgir após o evento.
Para Alves, o curso, descrito como espaço de articulação entre movimentos sociais e partidos da América Latina e do Caribe, contradiz os ideais que as organizações brasileiras dizem defender. “Entidades como a Fundação Perseu Abramo e o MST, que no Brasil se apresentam como defensoras dos direitos civis e da participação popular, associam-se a uma ditadura que restringe liberdades fundamentais, como a de expressão. Ao promoverem um curso numa universidade controlada por um regime autoritário, reforçam seu alinhamento ideológico com um sistema que impede qualquer pluralismo político”, alerta.
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As entidades - tanto as brasileiras quanto a cubana promotora do curso - foram procuradas pela Gazeta do Povo para explicar como o evento está sendo custeado e de onde vieram os recursos para passagens, estadia e alimentação das comitivas nacionais.
Em nota, a Fundação Perseu Abramo (FPA) disse que é um “centro de formação política e de produção de conhecimento do PT, mantém acordos com universidades, institutos político-partidários e centros de pesquisa de diversos países”. “Nesse sentido, assume um papel importante no campo progressista, na produção de estudos, na análise de políticas públicas e na elaboração de propostas para programas de governo. Após convite da Universidade Ñico López, de Cuba, para participar de um curso sobre as relações entre partidos políticos e movimentos sociais e populares, avaliamos internamente e decidimos contribuir”.
A Fundação Perseu Abramo confirmou que está custeando passagem e estadia de dirigente para ministrar parte do referido curso, seguindo o estabelecido em seu estatuto e em consonância com as normas legais relativas a funções de intercâmbio entre fundações, universidades, centros de pesquisa e outras organizações da sociedade civil.
O MST e o Foro de São Paulo não responderam à reportagem.
O que é o Foro de São Paulo e as polêmicas envolvendo a instituição
Fundado em 1990, o Foro de São Paulo surgiu para reunir partidos e movimentos de esquerda da América Latina e do Caribe, e debater estratégias comuns após o fim da União Soviética e o avanço do neoliberalismo. Desde então, passou a articular partidos socialistas, comunistas, progressistas e nacionalistas, além de movimentos sociais e sindicais. Participam membros de países como Brasil (PT), Cuba (Partido Comunista), Venezuela (PSUV), Bolívia (MAS) e Uruguai (Frente Ampla).
Seus encontros periódicos reúnem líderes da esquerda para definir posicionamentos políticos, estratégias eleitorais e formas de cooperação. O Foro tem influência sobre governos e movimentos de esquerda, e é criticado pela proximidade com regimes criticados por violações de direitos humanos.
O Foro de São Paulo se apresenta como uma articulação política que reúne mais de uma centena de partidos, movimentos sociais e organizações da esquerda da região. Mas, na prática, segundo especialistas, funciona como um fórum de coordenação de estratégias e intercâmbio de experiências entre governos, ex-guerrilhas e ativistas de distintas correntes progressistas.
Desde sua fundação, o Foro de São Paulo promoveu o apoio explícito a grupos guerrilheiros considerados terroristas por muitos governos, como as Farc (Colômbia), o ELN (Colômbia) e o MIR (Chile). Em atas de reuniões – por exemplo, em Porto Alegre (1997) e Caracas (1998) – essas organizações foram referidas como “núcleos de oposição ao imperialismo” e “movimentos democráticos”, mesmo após episódios de sequestros, atentados e vínculos comprovados com o narcotráfico.
Críticos apontam que o Foro também chegou a exigir o reconhecimento do status de “presos políticos” para sequestradores e a questionar operações antiterroristas de países vizinhos.
Na abertura da conferência em Brasília, em 2023, o presidente Lula chegou a declarar orgulho de ser chamado de “socialista ou comunista”, renovando o viés ideológico do grupo.
Para opositores, essa postura reforça o caráter fechado e homogêneo do Foro, acusado de insuflar agendas autoritárias e esquivar-se de debates internos sobre violações de direitos humanos. A proximidade com governos tidos como autocráticos e a participação de ex-militantes das Farc mantêm acesa a discussão sobre o real alcance democrático de suas deliberações.
No mesmo encontro, a então deputada federal e hoje ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, afirmou que o primeiro encontro do Foro, em 1990, debateu os efeitos e retrocessos sociais do neoliberalismo, que chamou de “a face mais cruel do capitalismo na região”, e que, naquela ocasião, os partidos parceiros escolheram “a luta política e popular como caminho mais eficaz para a transformação política e social”.
“É uma grande mentira, portanto, dizer que o Foro de São Paulo seria uma organização secreta que apoia ou participa de movimentos armados e insurrecionais. Somos da paz, da democracia e da justiça”, argumentou.
Entidade da Nicarágua reivindica estatização ou redistribuição forçada de terras
Outra instituição que aparece como realizadora do evento, a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo – Vía Campesina (CLOC-Vía Campesina) é uma rede continental que agrega movimentos campesinos, indígenas e afrodescendentes em toda a América Latina. O objetivo informado é defender a soberania alimentar e a reforma agrária em contraposição ao modelo neoliberal.
Globalmente, La Vía Campesina reúne 182 organizações em 81 países e diz representar pequenos e médios produtores, articulando-se como uma frente de pressão política por Estados mais intervencionistas no campo.
Em Nicarágua, a CLOC-Vía Campesina organiza-se sobretudo por meio da Associação dos Trabalhadores no Campo (ATC) e de movimentos de mulheres rurais, participantes ativos na elaboração e aprovação da Lei de Soberania e Segurança Alimentaria e Nutricional (Lei 693). Realiza cursos de formação política, assessoria técnica a cooperativas e mobilizações junto ao Sistema de Integração Centro-americana (SICA), com o objetivo que o Estado exerça papel central na distribuição de terras e insumos.
Para analistas, porém, a atuação da CLOC-Vía Campesina na Nicarágua representa um desvio autoritário sobre a propriedade privada e o livre mercado. Ao reivindicar a estatização ou redistribuição forçada de terras e ao fortalecer leis que dão ao governo controle amplo sobre a produção agrícola, a organização seria porta-voz de um projeto coletivista que mina incentivos à produtividade e prioriza a ideologia acima da eficiência econômica.
Universidade promotora do evento é do Partido Comunista de Cuba
Fundada em dezembro de 1964 por Fidel Castro, a Universidade do Partido Comunista de Cuba “Ñico López” surgiu como Escola Nacional de Instrução Revolucionária e iniciou com 12 unidades provinciais. Seu objetivo inicial era “formar quadros comprometidos com a revolução” e dotados de compreensão ideológica rigorosa, emblemática da linha oficial do Partido Comunista de Cuba.
Se transformou em uma estrutura universitária com 16 faculdades de formação política e social - presentes em todas as províncias - e com 176 escolas municipais e distritais em processo de incorporação como filiais. A rede se consolidou como o principal centro de educação política do país, mantendo ininterruptamente o compromisso de difundir a doutrina marxista-leninista com foco monolítico da instituição.
O currículo é estritamente orientado à manutenção do status quo “revolucionário”, sem espaço para pluralismo ou debate crítico com correntes ideológicas distintas. A formação enfatiza a necessidade de lealdade ao Partido, estabelecendo normas de censura interna a qualquer dissidência.
Em seu corpo docente, estão militantes de longa trajetória e ex-dirigentes partidários que ministram disciplinas que vão de teoria marxista à organização de movimentos, sempre sob a ótica da “defesa intransigente” do socialismo cubano. Eventos acadêmicos e conferências têm caráter repetidamente ritualístico, reforçando a unidade ideológica e a subordinação ao Comitê Central do Partido Comunista Cubano.
Nos últimos anos, a “Ñico López” iniciou um processo de modernização: criou centros de estudo avançados, programas de mestrado e doutorado, além de incorporar tecnologias de ensino à distância. Contudo, mesmo com esse avanço técnico, permanece inalterado o perfil autoritário da formação, voltado essencialmente para a perpetuação da hegemonia política vigente.
Segundo suas próprias publicações, restritas e controladas em redes sociais e na página oficial do governo, a Ñico López é o principal centro de formação político-ideológica do Partido Comunista Cubano, voltada sobretudo à capacitação de quadros, isto é, militantes e dirigentes em todos os níveis (municipal, provincial e nacional), bem como a representantes de organizações de massa e partidos aliados na América Latina e Caribe, a exemplo das parcerias históricas com o PT no Brasil.
Entre suas principais atividades e modalidades de formação estão cursos de quadro básico e avançado com programas estruturados em níveis — básico, intermediário e avançado — para “cidadãos-cadros”, nomenclatura que se dá a militantes treinados como quadros dirigentes, recém-ingressos e para veteranos do partido, com foco em método de trabalho político, organização de base e liderança coletiva.
Oferece ainda seminários temáticos e oficinas práticas com aulas, workshops e visitas técnicas sobre temas como mobilização de massas, comunicação política, estratégia eleitoral e gestão de organizações populares, além de eventos culturais e esportivos que reforçam a integração ideológica e de rede entre os participantes.
Em seus programas de pós-graduação com mestrados, doutorados e especializações em áreas centrais ao projeto revolucionário ensina Economia Política e Teoria Sociopolítica; Marxismo-Leninismo e Cultura Política; Ciências da Direção e Gestão de Organizações; Relações Internacionais e História e Pedagogia e Metodologias de Ensino Político.
Na educação a distância e rede de filiais, a universidade tem uma estrutura em fase de incorporação como campus, que garantem formação contínua até nas localidades mais remotas, utilizando tecnologias de informação e comunicação para as aulas.
Se dedica à pesquisa e produção científica por meio de um recém-criado Centro de Estudos, pelo qual desenvolve linhas de “investigação” sobre políticas públicas, inovações em gestão partidária e combate ao que denomina de “guerra ideológica”, alimentando a tomada de decisões do Comitê Central e do sistema de governo com ciência e inovação.
A universidade também promove intercâmbio internacional a partir de cursos de formação política para movimentos, partidos e coletivos de esquerda da América Latina e Caribe, como as edições do “Curso de Formação Política: Vinculação de forças políticas e movimentos sociais e populares”, que está em curso com o objetivo de aprofundar “Consenso de Nossa América” sob a justificativa de reforçar valores e estratégias comuns ao bloco.
A Gazeta do Povo também procurou a Universidade Ñico López para esclarecer a realização do seminário, mas não obteve resposta. O governo brasileiro não informou se enviou representantes oficiais para o encontro.








