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Lula - G20
No G20, Lula defende reforma em organismos multilaterais| Foto: Divulgação/Secom

O Brasil pretende se apoiar na presidência do G20 [grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Africana] neste ano para discutir regulamentação da Inteligência Artificial (IA) e a responsabilidade das empresas com a desinformação online. O controle da Inteligência Artificial é hoje um dos mais importantes temas do debate internacional e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) espera “surfar essa onda”. Porém, na concepção de especialistas, levar a discussão ao bloco pode resultar em poucos ou nenhum resultado concreto.

"A presidência do Brasil no bloco dura apenas um ano e uma discussão desse nível para chegar a resultados efetivos leva muito mais tempo do que isso, sobretudo quando diz respeito a um tema delicado e que os países têm diferentes interesses sobre essa regulamentação", avalia Lucas Fernandes, coordenador de Análise Política da BMJ Consultores Associados.

Os temas da regulação da inteligência artificial e das redes sociais foram incluídos na agenda do Grupo de Trabalho de Economia Digital do G20. A primeira reunião que vai tratar da discussão está marcada para acontecer no dia 31 de janeiro em formato virtual. O assunto ganhou forte apelo nos últimos anos devido ao receio da manipulação de informações e imagens através de Inteligência Artificial para produção de notícias e vídeos enganosos.

Ainda de acordo com o governo, a intenção não é discutir apenas a responsabilidade jurídica sobre as informações veiculadas e produzidas com Inteligência Artificial, mas também chamar atenção sobre a responsabilidade social e como as chamadas “deep fakes” [recurso de manipular imagens de figuras públicas para promover falas forjadas] podem afetar o usuário. Esse é um dos aspectos da discussão mundial sobre Inteligência Artificial, que também é vista pelas nações como instrumento militar, fonte bilionária de receitas, forma de controle social da população e, em última instância, até uma ameaça existencial para a humanidade.

“O Grupo de Trabalho de Economia Digital trata de assuntos relacionados à conectividade, ao governo digital, à integridade da informação e à inteligência artificial. Estabelecido em 2021, esse grupo busca orientar formuladores de políticas públicas sobre como aproveitar o potencial digital das economias”, diz o documento divulgado pelo Governo Federal informando sobre os grupos de trabalho no G20.

Para especialistas, contudo, a expectativa de sucesso brasileiro no debate não é das melhores. Além de não ter muitos avanços internos sobre o tema, as diferentes opiniões e de interesses dos países podem dificultar um consenso ou até mesmo a criação de diretrizes efetivas. "Em certa medida, [a regulamentação de avanços tecnológicos] traz algum alinhamento com órgãos internacionais relevantes, como ONU e a Unesco, mas é um tema que polariza e que vai encontrar diferentes opiniões. Sobretudo no G20 que é um bloco que reúne nações com diferenças gigantescas", pontua o especialista da BMJ, Lucas Fernandes.

Não deve haver consenso entre os países sobre o tema

Os interesses das nações sobre a regulamentação da Inteligência Artificial, das redes sociais e a responsabilidade sobre a disseminação de notícias falsas em plataformas digitais divergem entre si. O Estados Unidos, país em que a maioria dessas empresas gigantes da tecnologia está sediada, tem pouco apetite em “fechar o cerco” para essas organizações, já que há o receio de que elas busquem países mais “liberais” para se basearem e levem consigo o capital que geram ao país.

Na Rússia e na China, por exemplo, os líderes autocratas exercem um grande poder de restrição sobre essas plataformas. Esses países têm suas próprias redes sociais, totalmente censuradas pelos governos. Além disso, usam as redes sociais do Ocidente para espalhar notícias falsas, tentar minar democracias e influenciar no resultado de eleições das democracias liberais em uma estratégia de guerra cibernética.

Por outro lado, a União Europeia se encontra em um meio termo da polarização entre a perspectiva americana e o ponto de vista da Rússia e da China. Os países da União Europeia defendem que deve existir certo monitoramento e regulação das redes sociais, mas nada que possa tirar os países europeus do radar das empresas como uma opção para terem sede e atrair investimentos. O receio europeu é o acúmulo excessivo de poder nas mãos dessas empresas privadas.

A advogada e coordenadora do think tank de direito e tecnologia Legal Grounds Institute, Maria Gabriela Grings, explica que a metodologia dos Estados Unidos possui uma perspectiva mais mercadológica, com um foco mais centrado na autorregulamentação do mercado. Já a legislação russo-chinesa sobre o tema é voltada aos interesses do Estado e, consequentemente, de seus líderes autocratas, que possuem grande controle da internet em seus países. Já o modelo europeu tenta promover a discussão do desenvolvimento alinhado à proteção do usuário.

Devido à aproximação ideológica de Lula com a China e Rússia nos últimos meses e à tentativas da esquerda brasileira de censurar as mídias sociais e acabar com a liberdade de expressão no país, havia o receio de que as propostas para o tema no Basil fossem guiadas pelo modelo imposto por Vladimir Putin e Xi Jinping. Os especialistas, contudo, dizem não acreditar nessa possibilidade. De acordo com os analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, do ponto de vista da política externa, o Brasil deve trabalhar por uma legislação mais alinhada com a proposta da União Europeia.

“Entende-se que há uma tendência do Brasil seguir mais a linha argumentativa europeia. Aconteceria como foi feito com a legislação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que teve uma grande inspiração em todo o desenvolvimento histórico europeu, que há décadas já trabalhava com a questão da proteção de dados. Então imagina-se que seguiremos na mesma toada em relação à regulamentação da Inteligência Artificial”, avalia Grings.

Os diferentes modelos de regulação da Inteligência Artificial

A discussão sobre o tema no Brasil é recente, mas a União Europeia e os Estados Unidos discutem uma legislação para os avanços tecnológicos há mais de uma década. Desde 2008 a Europa debate uma forma de regular a Inteligência Artificial. Mas foi em 2021, depois da criação de diversos grupos de formação técnica dentro da União Europeia, que o Parlamento Europeu publicou uma proposta de regulação conhecida como AI Act (Lei da Inteligência Artificial, em tradução livre).

“Essa proposta é baseada em governança, supervisão e responsabilidade dos sistemas de Inteligência Artificial, buscando equilibrar o respeito aos direitos fundamentais e o estímulo ao desenvolvimento tecnológico", explica Maria Gabriela Grings, do think tank Legal Grounds Institute, que também é doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

O modelo propõe que os sistemas Inteligência Artificial sejam analisados e classificados de acordo com o risco que representam para quem os utiliza. Nesse sentido, Grings explica que foram definidos três níveis de risco: risco inaceitável, que vão ser proibidos por serem prejudiciais à população e aos valores fundamentais da União Europeia ou aos direitos fundamentais; sistemas que criam um risco elevado para a saúde e a segurança dos direitos fundamentais das pessoas; e os sistemas de baixo risco, sendo que estes estão sujeitos apenas a obrigações de transparência mínima.

Já nos Estados Unidos, a especialista pontua que a discussão pode ser ainda mais complexa devido à forma como opera o sistema legislativo do país. O foco em Washington é no desenvolvimento e proteção de mercado, e um pouco mais centrado em direito do consumidor.

"Tenho a impressão de que lá [EUA] a preocupação é muito mais sobre como regular um mercado do que colocar o ser humano como um centro de cuidado que deve nortear toda uma legislação. Não que eles não se preocupem com as pessoas, com certeza se preocupam, mas me parece que talvez elas não sejam tanto o foco como faz a União Europeia muito claramente. Lá [na União Europeia] essa preocupação com o ser humano está muito mais explícita", pontua a especialista.

“Ainda que exista um conjunto de orientações nos Estados Unidos, tanto em âmbito nacional e estadual, parece que ainda falta uma grande lei sobre Inteligência Artificial. E não sei se ela virá, seja pelo do sistema legislativo americano, pela velocidade do desenvolvimento da Inteligência Artificial ou até mesmo pelos próprios parâmetros de preocupação estabelecidos pelo país”, explica Maria Gabriela.

Longe dessas duas legislações, está ainda o modelo imposto na China e na Rússia. Nesses modelos, as leis seguem uma orientação que responde aos interesses de seus ditadores. Considerados países não democráticos, Putin e Xi restringem e utilizam tecnologias para manipular seus cidadãos. "Na China, há um grande controle estatal sobre a internet e, consequentemente, sobre os desenvolvimentos tecnológicos e usos”, pontua Grings.

“Existe um grande número de legislações chinesas sobre o tema. No ano passado, o governo chinês editou vários textos normativos com explicações bem específicas sobre o uso da Inteligência Artificial Generativa [IA que cria textos, imagens e vídeos]. Como no aspecto sobre recomendações algorítmicas, questão de análises sintéticas e dos deep fakes. Não me parece que o governo tenha uma grande preocupação em fazer uma legislação mais única e até certo ponto até mais genérica sobre inteligência artificial. Por lá as aplicações parecem ser mais verticalizadas”, avalia Maria Gabriela, coordenadora do think tank Legal Grounds Institute.

Na China, ferramentas de Inteligência Artificial Generativa como o ChatGPT são consideradas uma ameaça ao controle social e de pensamento que o Partido Comunista tenta exercer sobre a população. Por outro lado, o regime investe na Inteligência Artificial como recurso policial, usando, por exemplo, softwares de reconhecimento facial para identificar e vigiar tanto criminosos como dissidentes políticos.

Para a especialista, o desenrolar dos últimos meses mostra que o Brasil deve seguir mais alinhado à proposta europeia. “Entre os textos legislativos que temos tramitando no Congresso Nacional, há uma proposta que foi formulada por um grupo de juristas e especialistas que analisou todo o cenário global e entendeu que a legislação europeia, ainda que tenha suas especificidades e situações que não se aplicam à realidade brasileira, conversa melhor com aquilo que está na construção jurídica brasileira. Portanto, imagina-se que o Brasil vá se alinhar mais com a proposta da União Europeia”, afirma a especialista.

O principal projeto em tramitação é o Projeto de Lei 2.338/2023, apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que quer criar um marco legal para o setor. Mas, em paralelo, o Tribunal Superior Eleitoral propôs uma série de regras para alegadamente evitar que a Inteligência Artificial seja usada de forma abusiva nas eleições municipais deste ano. A reação da oposição, especialmente do Partido Liberal, está sendo assumir protagonismo nessa discussão para combater o que alega ser ativismo do Judiciário.

Lula mira tema no G20 com a intenção de pressionar big techs

Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo explicam que levar essa discussão para o G20 não deve surtir efeitos práticos e concretos, mas pode chamar atenção das empresas sobre o assunto. "O G20 não tem caráter impositivo, é um bloco que propõe rodadas de conversas para discutir diversos temas", pontua o cientista político e diretor de Projetos do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais, Marcelo Suano.

"De acordo com a situação proposta pelo bloco e com a força real que um país possui na presidência do G20, o máximo que Lula pode conseguir levando essa discussão aos demais é fazer uma pressão internacional para que os governos comecem a caminhar no médio e longo prazo para apresentar alternativas e soluções, coordenadas e combinadas, e que independem da presidência, sobre o tema. Mas nada além disso", afirma o cientista político.

Para o analista da BMJ, Lucas Fernandes, em um cenário mais concreto e otimista, os países podem concordar em assinar uma declaração conjunta onde assumiriam um compromisso de discutir sobre o tema. Fernandes ainda explica que pode ser difícil chegar a esse consenso, já que cada nação vê essa regulamentação "de acordo com os seus interesses".

A estratégia em levar a discussão para o bloco também pode ter a intenção de encontrar respaldo em outras nações para defender a pauta internamente no Brasil. O problema é que a esquerda e o Judiciário no Brasil defendem a regulamentação como um tipo de censura direcionada não a proteger o cidadão, mas a calar adversários políticos — como ocorre na China e na Rússia — segundo a oposição ao governo e críticos de iniciativas como o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630), que também ficou conhecido como "PL da Censura", por cercear a oposição no uso das redes sociais.

Por isso, o governo tem tido dificuldade em pautar essa discussão no país e encontrado uma forte oposição à regulamentação das redes. “Se Lula conseguir que países como a França ou Estados Unidos apoiem suas ideias para essas diretrizes, ele ganha uma força política com esses países que, de certa forma, são respeitados pelos brasileiros”, avalia Fernandes.

Na avaliação do analista, caso encontre apoio em países europeus sobre o tema, o petista pode tentar contornar as acusações da oposição e promover uma campanha baseada na narrativa de que aprovar leis regulatórias para redes sociais e tecnologia é algo positivo.

Por outro lado, como a maioria dessas grandes empresas de tecnologia (como Google, Amazon, Facebook e Apple) não têm sede no Brasil, uma discussão no âmbito internacional pode impulsionar o avanço do debate. Os especialistas pontuam ainda que o fato dos países se reunirem para tratar o tema pode pressionar as empresas a pautarem diretrizes para uma autorregulamentação.

"Ao levar essa discussão para o bloco, fica evidente o interesse em pressionar as redes sociais, e as empresas que respondem por elas, para que se movimentem antes que seja aprovada uma legislação nacional ou um acordo internacional sobre o assunto", analisa Fernandes.

Algo parecido acontece com o mercado publicitário no Brasil, por exemplo. O ramo é autorregulado e pauta suas diretrizes conforme necessidades são apontadas pela sociedade e pelas autoridades. Esse formato pode ser positivo para as empresas que, ao apresentar uma proposta de autorregulamentação, não ficam sujeitas a seguir leis ou determinação de um governo.

No Brasil, a publicidade é regulada pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). O Conar é uma organização não governamental (ONG), financiado pelas agências de publicidade, empresas anunciantes e veículos de comunicação, que fiscaliza as questões éticas das propagandas publicitárias no Brasil.

Resta saber se o governo vai usar a exposição da liderança do G20 para tentar legitimar políticas internas questionáveis ou se adaptar a marcos regulatórios que vêm sendo discutidos com seriedade no exterior.

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