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Um território quilombola na Bahia foi reconhecido pelo governo Lula em novembro de 2023
Um território quilombola na Bahia foi reconhecido pelo governo Lula em novembro de 2023.| Foto: Secom/PR

No primeiro ano do terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou 51 portarias de Reconhecimento de Territórios Quilombolas. Foram 290 mil hectares destinados a remanescentes de quilombos em apenas um ano. De acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a emissão de títulos atendeu cerca de mil famílias.

A criação de territórios quilombolas foi prevista na Constituição Federal de 1988, mas regulamentada somente em 2003, por meio do Decreto nº 4.887. Nele, foram definidos como remanescentes das comunidades dos quilombos, “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Ou seja, a partir de uma autodefinição, grupos que se identifiquem como negros com relação histórica com a escravidão, por exemplo, podem requerer áreas de terra no Brasil.

Além das 51 portarias, o Incra também emitiu 12 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs), e publicou uma portaria de reconhecimento dos limites de território quilombola em 2023. No entanto, nenhum território foi efetivamente titulado, que é a etapa final do processo. Atualmente, o Incra tem 1.807 processos de regularização de territórios quilombolas abertos, de acordo com levantamento divulgado no site oficial.

Os territórios quilombolas no Brasil somam atualmente cerca de 2,5 milhões de hectares, que correspondem a uma área um pouco menor que a do Estado de Alagoas. O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2022, mostrou que os quilombolas representam 0,65% da população brasileira. São 1,3 milhão de pessoas que se identificam como quilombola. Destaca-se ainda que apenas 4,3% da população quilombola reside em territórios já titulados no processo de regularização fundiária.

Apesar das portarias, houve apenas um decreto de território no Lula 3

A criação de territórios quilombolas tem sido utilizada como um dos marcos do primeiro ano do atual mandato de Lula. De fato, as 51 portarias de Reconhecimento de Territórios Quilombolas são um recorde. Antes desse marco, o maior número de portarias havia sido registrado em 2016, quando foram publicadas 22 portarias.

No que diz respeito aos decretos de territórios, uma das etapas que antecede a titulação aos quilombolas, houve apenas uma publicação no governo Lula 3. Trata-se do decreto que demarcou o território de Lagoa das Piranhas, em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, com área de 9950 hectares. Com a publicação do decreto, os próximos passos serão a avaliação dos imóveis, com a execução dos pagamentos das benfeitorias, desintrusão dos ocupantes não quilombolas com a desapropriação, para, por fim, demarcar e titular o território. Os moradores ficam, dessa forma, a um passo de alcançarem a titulação definitiva.

A publicação de um decreto para o território na Bahia está bem abaixo dos 30 decretos registrados em 2009. Até hoje, foram publicados apenas 90 decretos de territórios. O número de territórios totalmente titulados é menor ainda e soma apenas 19. Outros cerca de 30 territórios são apenas parcialmente titulados.

O governo Lula tem afirmado que a demarcação de territórios quilombolas foi totalmente paralisada durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No entanto, dados atualizados pelo próprio governo - obtidos pela Gazeta do Povo - demonstram que houve, entre 2019 e 2022, a elaboração de 30 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs), além da publicação de oito portarias de reconhecimento e um decreto de território quilombola. No que tange à elaboração de RTIDs, os números do atual governo ficam abaixo até mesmo dos registrados em 2021, durante o governo Bolsonaro. Em 2021 foram elaborados 13 RTID, enquanto em 2023, foram registrados 12 documentos semelhantes. Vale lembrar que Bolsonaro enfatizou, por diversas vezes, que não demarcaria nenhum território indígena ou quilombola em sua gestão.

Controvérsias sobre territórios quilombolas aproximam tema das questões indígenas 

O processo de criação de territórios quilombolas tem semelhanças com o de demarcação de terras indígenas no Brasil. Ambos os processos podem ser iniciados a partir da autodeclaração, como indígena ou quilombola, e as áreas a serem demarcadas passam por estudos para sua identificação e posterior delimitação.

Do mesmo modo, a demarcação de áreas indígenas e quilombolas são alvos de questionamentos na Justiça, e em especial no Supremo Tribunal Federal (STF). O motivo é que as terras, por vezes, estão em posse de outras pessoas, o que gera ações judiciais e causa insegurança jurídica aos proprietários de terras.

Em defesa da demarcação de territórios quilombolas, o Incra destaca que a “área trabalhada em favor das comunidades quilombolas não chega a 0,12% da extensão territorial do país”. “É difícil imaginar que tão pequena porção do território nacional destinado a um único segmento seja capaz de atrapalhar o desenvolvimento de qualquer país”, afirma o material informativo publicado pelo órgão.

A demarcação de áreas para quilombolas, no entanto, já foi alvo de questionamentos na CPI da Funai e do Incra, realizada entre 2016 e 2017, na Câmara dos Deputados. Na época, parlamentares apontaram possíveis fraudes no laudo antropológico do quilombo de Morro Alto, no Rio Grande do Sul. O caso envolve a disputa de terras entre cerca de 450 famílias de quilombolas e mais de 350 pequenos produtores rurais que vivem na área de mais de 4,5 mil hectares.

Entenda o processo de titulação de territórios quilombolas 

No processo de criação de territórios quilombolas, há pelo menos dois órgãos governamentais diretamente envolvidos: o Incra e a Fundação Cultural Palmares. O Incra é o órgão responsável pela demarcação e titulação das terras quilombolas no país. A Fundação Cultural Palmares, por sua vez, é responsável pela certificação das comunidades, feita após a autodefinição das mesmas, e pela manutenção e preservação do patrimônio cultural quilombola.

Até a efetiva titulação, os territórios quilombolas precisam passar por até seis etapas: autodefinição, elaboração do Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID); publicação do RTID, que ocorre por meio da publicação das portarias; reconhecimento, que se dá por meio de decretos; desapropriação e titulação.

Levantamento do Incra, ao qual a Gazeta do Povo teve acesso, mostra que há pelo menos 572 processos com algum tipo de andamento no órgão. A área total compreendida nesses processos é de mais de 2,5 milhões de hectares e visa atender mais de 40 mil famílias que se identificam como quilombolas.

De acordo com o Incra, a confecção do Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação é uma das etapas mais complexas do processo de titulação na esfera federal. Esse documento inclui o levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, ambientais, históricas, etnográficas e antropológicas, obtidas em campo, com a comunidade, e com instituições públicas e privadas.

Há ainda 1.807 processos de regularização de territórios quilombolas abertos no Incra. O Nordeste é a região com o maior número de processos abertos: são 1.023. O Sudeste é o segundo com 363 processos, seguido da região Sul, com 163 processos abertos.

Neste contexto, o Censo 2022 mostrou que o Nordeste concentra 68% da população quilombola, seguido pelo Sudeste (14%), Norte (12,5%), Centro-Oeste (3,5%) e finalmente o Sul, com 2%. Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pará e Pernambuco, nesta ordem, são os estados com mais pessoas quilombolas, com 76,5% do total populacional. Já no Rio Grande do Sul, a população quilombola corresponde a 0,16% dos residentes no estado. Com exceção do Acre, Roraima e Distrito Federal, os demais estados brasileiros possuem quilombos.

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