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O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja reiniciar-se em agosto com reforma ministerial para incorporar o Centrão, lançamento de um programa de investimentos federais em infraestrutura (Novo PAC) e ações voltadas a angariar popularidade. Mesmo sendo decisão exclusiva do Banco Central (BC), o provável corte na taxa básica de juros no próximo dia 2 também será associado a esse desejo de nova fase, seguida de ainda mais frentes de gastos da máquina pública que já sinalizam para um déficit fiscal de R$ 150 bilhões em 2023, além de muitas viagens de Lula ao exterior.
Após sofrer duras derrotas no Congresso e ver reformas econômicas serem moldadas e conduzidas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e pelos aliados do deputado, o Planalto precisou ceder em favor do pragmatismo e de uma relação menos instável com o Legislativo, enquanto tenta mostrar-se no controle.
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo atestam, contudo, que Lula está construindo um modelo de governança que combina coalisão partidária com autonomia cada vez mais limitada. E o tal semipresidencialismo defendido por Lira pode se efetivar de forma silenciosa.
No arranjo acolhido por Lula, partidos de campo oposto ao dele, como PP e Republicanos, ocuparão sem constrangimento importantes espaços de poder na máquina de governo, embora resguardados pelos rótulos de “independentes” e “oposição responsável”.
As nomeações são uma exclusividade do presidente, mas as condições dadas para elas serão ditadas pelas legendas entrantes na coalisão. Para analistas de mercado, esse acordo eleva a previsibilidade política e o presidencialismo de governante esquerdista condicionado pelo humor de líderes de centro-direita terá o seu sucesso definido pelos indicadores da economia.
Os partidos que apoiaram ativamente a reeleição de Jair Bolsonaro (PL) vão trocar cargos por apoio ao governo sem foco programático, com negociação concentrada em votos na Câmara. Lula assegura que preservará postos do PT e aliados de esquerda na Esplanada, mas conversas dos articuladores do Planalto com o Centrão indicam que tudo é negociável. O PP indicou o líder na Câmara, André Fufuca (PP-MA), para assumir o lugar do ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias. A ministra do Esporte, Ana Moser, por sua vez, deverá sair para acomodar o deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE). Os aliados de Lira ainda querem Gilberto Occhi, ex-presidente da Caixa, de volta ao comando do banco, e o cargo de titular do Ministério do Desenvolvimento, hoje com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB).
Prazo para votar marco fiscal elevará a pressão por cargos
João Henrique Hummel Vieira, diretor da Action Relações Governamentais, enfatizou que as negociações entre o Executivo e o Legislativo têm o domínio de Arthur Lira. Ele explicou que, apesar da aprovação histórica da reforma tributária e de outras festejadas entregas do presidente da Câmara pouco antes do recesso parlamentar, a votação do arcabouço fiscal foi deixada para depois, mesmo sendo necessária ser aprovada até 31 de agosto. O mesmo suspense em torno de datas-limites envolve a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Esse cenário coloca “uma espada sobre a cabeça do governo”, uma vez que pairam questões sobre contrapartidas exigidas. Há discussões em torno de ministérios, cargos, pagamento de emendas parlamentares de 2022 e de empenho das emendas deste ano, mas o descumprimento de acordos pode gerar turbulências.
Em paralelo, o orçamento impositivo e a dificuldade do Executivo em intervir no Orçamento sem consultar o Congresso “abrem oportunidades para fortalecer a consolidação do semipresidencialismo”. “É natural surgir a questão de quem ganhará ou perderá no segundo semestre e se será possível encontrar equação que satisfaça a todos”, resumiu.
Eduardo Galvão, professor de relações institucionais do Ibmec-DF, acredita que Lula está apenas remodelando o modelo de coalisão, que já vinha passando por mudanças ao longo dos últimos anos, com avanços do Legislativo sobre o Executivo. Sob a liderança de Arthur Lira, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), atribuições típicas do chefe de governo acabaram sendo transferidas ao Legislativo, como distribuição de emendas parlamentares, gestão do orçamento e alocação de cargos conforme a base governista.
“Com Lula, tenta-se resgatar o papel do presidente da República como gestor da coalisão e da distribuição de cargos, além de buscar gestão compartilhada das verbas. A estratégia o permitiu acumular capital político para conduzir o próprio governo. Para tanto, criou mais ministérios, visando ampliar o espectro de negociação e reconquistar prerrogativas dentro do contexto da expansão de poderes do Legislativo”, explicou.
Freio de arrumação explicita anomalias do sistema político
Arthur Wittenberg, professor de relações governamentais do Ibmec-DF, entende que Lula dedicou os primeiros sete meses de seu mandato para se adaptar à realidade, o que consumiu grande energia tanto da Presidência quanto dos ministros palacianos.
“O esforço organizacional para lidar com 37 ministérios evoluiu para novos ajustes na máquina administrativa, incluindo nomeações de segundo escalão que já estão melhorando as condições de governabilidade”, observou. Para o especialista, a estratégia é facilitar a integração administrativa e política, superando a inércia pós-eleitoral, durante a qual Lula manteve espírito de campanha “mais intenso e duradouro do que o desejável”.
“Com a postura eleitoreira do presidente se atenuando, o governo entra evidentemente numa fase 2. Lula é, acima de tudo, pragmático. No início do mandato, havia dúvidas sobre a sua compreensão da mudança do quadro político, com um Congresso mais poderoso e de centro-direita. No entanto, agora percebe-se que ele não apenas entendeu exatamente a situação em que se encontra, como também se concentrará em construir consensos na área econômica, enquanto deixa as pautas de costumes para serem tratadas apenas pelos parlamentares governistas”, avaliou.
Para o cientista político André Felipe Rosa, a reforma ministerial em sete meses de governo revela a maior anomalia do presidencialismo no Brasil, que não tem relação como o parlamentarismo. “A sistemática que gira a engrenagem do sistema político é um ataque à democracia, que fica refém do corporativismo que domina o Congresso, que cobra aluguel do Executivo para aprovar suas propostas”, sublinhou. Com isso, Lula repete o que vários presidentes tiveram que fazer: lotear o governo com novos atores a todo momento, ou a cada votação importante no Parlamento.
Partidos acessam verbas sem compromisso com resultados
Mesmo com discurso raivoso contra adversários, Lula voltou a buscar composição com todos que quiserem vir para o governo. Os presidentes de partidos Ciro Nogueira (PP) e Marcos Pereira (Republicanos) liberaram os filiados de suas legendas para aceitar convites para comandar ministérios ou estatais. Esse “governismo independente” garante aos contemplados verbas de governo sem a contrapartida de buscar resultados.
Nessa estratégia de relançamento do governo, Lula conseguiu uma ajuda do seu maior rival político, Jair Bolsonaro (PL), que articulou uma tardia e fracassada reação contra a reforma tributária. A aprovação certa do texto acabou isolando o grupo mais fiel ao ex-presidente e ainda expondo o racha entre partidos de direita. Os presidentes das três legendas que eram a base partidária da coligação de Bolsonaro – PP, Republicanos e até mesmo o PL – expuseram o desgaste. Valdemar da Costa Neto (PL) liberou o partido para votar junto com o governo em troca de emendas.
A crise de identidade da oposição, cada vez mais restrita à parte do PL e ao Novo, deve se acentuar nas próximas semanas, com a posse de ministros do Republicanos e do PP. Além disso, os maiores obstáculos enfrentados pelo governo no Congresso durante o primeiro semestre vinham do grupo liderado por Arthur Lira, que deve adentrar a máquina de governo.
Essa crise, porém, vai além da oposição. Carlos Siqueira, presidente do PSB, cobra coerência de Lula na composição dos ministérios e alerta para a crescente "anomalia do sistema político", que está distorcendo a proposta de "frente ampla" em nome da governabilidade. Na realidade, os aliados da esquerda lutam para não ceder espaços.
Planalto mira Orçamento para poder influenciar mais nas eleições
Nos últimos meses, têm ocorrido trocas de recados e balões de ensaio, onde figuras como o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), falam em "novo ciclo", o ministro Flávio Dino (Justiça) fala em ajuste operacional para viabilizar o projeto do governo, e o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) menciona negociação produtiva para melhorar a relação com o parlamento. Lula, por sua vez, moderou o seu discurso em pontos de atrito com o parlamento, como a crítica de cunho ideológico ao agronegócio e a defesa da "democracia relativa" da Venezuela.
O Congresso se beneficia da falta de base sólida do governo e aumenta o custo do pedágio para o governo transitar sobre a gestão dos seus próprios recursos. O Planalto, por sua vez, quer manejar folgas do Orçamento tanto para atender demandas de políticos quanto para impulsionar seus planos voltados às eleições de 2024 e 2026.
Mas a governabilidade condicionada do presidencialismo coadjuvante pode tornar a Presidência da República disfuncional ou burocrática, mesmo que apresente como trunfo o fim dos impasses explícitos e das crises institucionais recorrentes.
Ao reorganizar o governo com ministros de legendas que apoiaram Bolsonaro no ano passado e sem o respaldo de uma negociação em torno de projeto comum para o país, o presidente explicita conveniências, rendições e interesses privados de políticos, com alto risco de ações antirrepublicanas.
Por espírito de sobrevivência, Lula mantém a perspectiva de comando centralizado do Executivo na sua figura, mas com amplas concessões para aliviar tensões cotidianas no trato com o Legislativo. Juntados para domar desconfianças mútuas, os Poderes buscam dominância a qualquer custo.