• Carregando...
Reunião do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro
Reunião do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro, em Nova York.| Foto: EFE/Ángel Colmenares

Parlamentares brasileiros de oposição disseram ter sido alertados por fontes israelenses que um rascunho de texto sugerido pelo Itamaraty para ser usado como base para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a guerra de Israel tem ao menos um ponto que pode favorecer a estratégia do Hamas. Ele diz respeito à ordem das Forças de Defesa de Israel para que civis abandonem a área norte da Faixa de Gaza.

A Gazeta do Povo teve acesso a duas versões de rascunho de resolução recebidas por dois deputados federais da oposição na Câmara dos Deputados. Eles pediram para não serem identificados pela gravidade do assunto. Afirmaram, porém, que os documentos foram vazados por diplomatas israelenses interessados em denunciar um suposto lobby brasileiro que pode favorecer o Hamas.

Uma dos documentos é chamado de "rascunho zero" e a outra é uma versão posterior a esse rascunho. Em ambas, há uma advertência determinando que autoridades israelenses revoguem imediatamente a ordem para que a população civil palestina abandone toda a região norte da Faixa de Gaza. O rascunho zero, supostamente proposto pelo Brasil, diz:

O Conselho de Segurança: 4. Exorta as autoridades israelenses a revogarem imediatamente a sua ordem de que os civis e o pessoal da ONU evacuem todas as zonas de Gaza a norte do Wadi Gaza e se mudem para o sul de Gaza.

A versão posterior tem alterações mínimas que não mudam o sentido do texto.

O objetivo de Israel com a ordem seria evitar que membros da população civil sejam mortos ou feridos, já que suas forças estariam planejando lançar uma ofensiva terrestre para tomar a Cidade de Gaza, usada pelo Hamas para controlar todo o território da Faixa de Gaza.

Isso ocorre porque os terroristas do Hamas vêm usando a população civil como escudo humano contra os ataques de Israel. Segundo analistas, mortes de crianças e mulheres palestinas servem duplamente aos interesses do Hamas: como meio de recrutar palestinos em busca de vingança e como ferramenta na guerra midiática para diminuir a liberdade de ação das tropas de Israel.

A ordem de evacuação da população também é uma forma de se contrapor à prática do Hamas de misturar seus quartéis-generais e locais de armazenamento de armas com instalações civis, incluindo hospitais, escolas e creches, o que é em si um crime de guerra.

Assim, a possível oposição da ONU à retirada dos civis do campo de batalha por meio da resolução do Conselho de Segurança tem potencial para prejudicar a estratégia militar israelense.

Aviso prévio está previsto nas Convenções de Genebra

O "Protocolo Adicional I", de 1977, às Convenções de Genebra, de 1949, que dão base ao Direito Internacional Humanitário (Direito dos Conflitos), diz que "no caso de um ataque que possa afetar a população civil, deverá ser feito um aviso, em tempo útil e por meios eficazes, a menos que as circunstâncias o não permitam".

Israel não assinou o protocolo, mas a previsão de emitir um alerta antecipado também existe no Direito Humanitário Consuetudinário, cuja fonte são os costumes aplicáveis às guerras, segundo o coronel Carlos Cinelli, professor de Direito Internacional Humanitário da PUC-Minas e da Escola Superior de Defesa.

O artigo 49 das Convenções de Genebra diz que as transferências forçadas de populações são proibidas, a menos que a "segurança da população ou imperiosas razões militares o exigirem", diz o texto do tratado.

Segundo Cinelli, sem todas as informações do campo de batalha não é possível afirmar com certeza em qual caso a ordem de Israel para a saída dos civis do norte da Faixa de Gaza se aplica.

"Mas, em tese, caso possamos assumir que Israel age de boa fé, e considerando que um massivo ataque israelense à região é iminente, esses dispositivos das normas humanitárias possivelmente serão utilizados para justificar juridicamente determinadas decisões refletidas no terreno".

Israel ampliou o prazo para o deslocamento de civis

O secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, reconheceu os atos de terror praticados pelo Hamas, mas também deu declarações públicas criticando a ordem israelense para deslocar a população do norte de Gaza. "Mover mais de um milhão de pessoas através de uma área de guerra densamente populada para um lugar sem comida, água e acomodações, quando todo o território está sob cerco, é muito perigoso e, em alguns casos, simplesmente impossível", afirmou.

A fala dele não levou em conta que a permanência dos civis em uma área que tem potencial para se tornar um campo de batalha traz em si um grande risco. As declarações, aliadas ao posicionamento de países como Arábia Saudita e China, podem ter feito Israel ampliar o prazo dado para a população civil deixar a área antes da ofensiva terrestre.

Já autoridades palestinas dizem temer que a população não seja mais autorizada a retornar à região. Elas denunciam a atividade de sítio, que é não permitir a entrada de bens essenciais no território - ação que é considerada um crime de guerra.

O Brasil tem poder para influenciar a decisão da ONU?

O Brasil ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU no mês de outubro. Nessa condição, convocou na semana passada uma reunião de emergência e agora pode tentar influenciar nas negociações diplomáticas que podem levar à adoção de uma resolução do Conselho de Segurança sobre a guerra em Israel. As negociações sobre a resolução devem se estender ao longo da semana.

O que os diplomatas brasileiros podem fazer é sugerir um texto para a resolução. Mas o país não tem peso diplomático para forçar qualquer linha de ação. Ao todo, 12 países devem votar. Para ser aprovado, o texto tem que ter apoio de 9 nações e não ser vetado por nenhum membro permanente (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia ou China). Sabe-se que a Rússia prepara seu próprio texto à revelia dos outros países.

Por isso, é pouco provável que o texto proposto pelo Brasil seja a versão final da resolução. Mas o rascunho evidenciaria a posição brasileira de não apoiar Israel, segundo os parlamentares ouvidos pela reportagem da Gazeta do Povo.

Texto de resolução chama Hamas de terrorista, diferente de posição prévia do Brasil

A primeira versão do rascunho da resolução trazia a seguinte redação (que também não sofreu grandes alterações na segunda):

O Conselho de Segurança 1. Condena veementemente os ataques terroristas do Hamas ocorridos em Israel a partir de 7 de outubro de 2023 e a tomada de reféns civis.

Ou seja, as ações do Hamas são diretamente caracterizadas como terrorismo no texto. Essa é uma designação que o governo brasileiro vinha tentando evitar por não considerar o Hamas uma organização terrorista, diferente do que fazem Estados Unidos e países europeus. Não está claro o motivo de ela ter sido incluída no texto pelo Itamaraty.

O rascunho traz ainda um apelo pela "libertação imediata e incondicional de todos os reféns civis". A interpretação inicial é que essa seria uma afirmação de apoio a Israel. Porém, apenas Estados constituídos são afetados politicamente por esse tipo de declaração. Organizações não estatais como o Hamas não têm sua liberdade de ação diminuída por conta de pressão política.

Em outras palavras, um grupo terrorista como o Hamas dificilmente libertaria os reféns apenas porque a ONU solicitou. Já um Estado como Israel tem que considerar seriamente o peso político de uma resolução do Conselho de Segurança e pode até reverter a ordem de evacuação do norte da Faixa de Gaza.

Rascunho traz propostas razoáveis de pausas na guerra e corredores humanitários

Outro ponto do rascunho vai contra a estratégia de Israel ao propor a implementação de pausas no combate e o estabelecimento de corredores humanitários para permitir a entrada de itens básicos de sobrevivência na Faixa de Gaza.

Se a resolução for adotada com essa redação, a iniciativa brasileira também seria uma vitória política para o Hamas, que vem criticando o sítio israelense à Faixa de Gaza e o não estabelecimento de corredores humanitários para tirar a população civil de Gaza para Israel e para permitir a entrada de medicamentos e itens básicos de sobrevivência.

Mas pausas e corredores humanitários são essenciais para a sobrevivência de civis e estão de acordo com o Direito Internacional Humanitário. Também são medidas apoiadas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Assim, Israel precisa permitir a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e determinar rotas e horários específicos, como vem fazendo, para que a população civil consiga chegar a áreas mais seguras.

De forma similar, o rascunho exige ainda o fim de todas as medidas que resultem na privação dos civis de bens indispensáveis à sua sobrevivência, incluindo eletricidade, água, combustível, alimentos e material médico.

O Itamaraty foi contatado, mas não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem da Gazeta do Povo sobre os rascunhos que seriam apresentados à ONU, até a publicação desta matéria.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]