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Enviado especial do clima dos EUA, John Kerry, se encontra como a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.
Enviado especial do clima dos EUA, John Kerry, se encontra como a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.| Foto: EFE

O enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry, se reuniu com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e disse que a Amazônia é um tesouro extraordinário que pertence a todos. A visita dele ao Brasil nesta semana e a afinidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a agenda climática internacional vêm despertando temores entre opositores do governo em relação à soberania do Brasil.

O receio da oposição é que o governo Lula esteja colaborando com o que parte da oposição acredita ser uma articulação internacional para negar ao Brasil a possibilidade de desenvolver a Amazônia de forma sustentável.

"A Amazônia é um teste para toda a nossa humanidade", disse o americano. Ele disse que seu encontro com Marina mostra a renovação do compromisso de preservação "desse tesouro extraordinário que pertence a todos".

Marina disse que o governo Lula tem compromisso de zerar o desmatamento na região até 2030, mas disse a Kerry que a Amazônia pertence ao Brasil. "Entendemos o caráter que a Amazônia tem sobre o equilíbrio do planeta, mas temos a clareza da soberania sobre esse território", afirmou em entrevista coletiva nesta terça-feira (28). Kerry estava ao seu lado e assentiu com a cabeça.

Agenda dos EUA atrela Amazônia às mudanças climáticas globais

Kerry também tocou em um ponto muito sensível à oposição brasileira. Ele disse que se a Amazônia não for protegida, "não conseguiremos manter a temperatura do mundo desta maneira". Críticos dessa posição americana argumentam que as emissões de carbono das grandes potências por meio de combustíveis fósseis pesam muito mais na deterioração da temperatura global do que o carbono liberado em queimadas ocorridas na floresta brasileira.

A discussão acontece num contexto em que lideranças globais tentam chegar a um acordo parar reduzir emissões de carbono na atmosfera e assim evitar uma elevação superior a 1,5ºC.

O temor de opositores ao governo Lula não é de uma ação militar estrangeira na região. Mas sim de uma série de ofensivas nas áreas política, jurídica e financeira, - por parte de países como EUA e França - para supostamente tentar frear o desenvolvimento amazônico. O argumento para isso seria a suposta preservação ambiental.

Uma das ações criticadas é a doação de recursos americanos e europeus para organizações não-governamentais atuarem no norte do país na área de conservação ambiental, por meio do Fundo Amazônia. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro vetou essas ações argumentando que doações deveriam ser geridas pelo governo e não por ONGs internacionais sem muito controle.

Já o vice-presidente de Lula, Geraldo Alckmin (PSB), diz que o Fundo Amazônia é uma forma de preservar o meio ambiente e lutar contra a mudança climática. Segundo ele, a desconfiança em relação às ONGs não é justificada, pois o fundo é gerido pelo BNDES e passa por processos de auditoria nacionais e internacionais.

Setores agropecuário e de mineração dos EUA não querem concorrência, diz deputado

O governo federal tem o objetivo de demarcar 13 terras indígenas na região da Amazônia Legal. Além disso, as sinalizações de Kerry de que os EUA estão dispostos a doar recursos para a preservação ambiental ligaram o sinal de alerta na oposição sobre o alinhamento entre as agendas ambiental de Lula e do presidente norte-americano, Joe Biden.

Kerry não revelou qual seria a quantia doada. Ele afirmou que seu partido tenta aprovar um orçamento de US$ 4,5 bilhões (R$ 23 bilhões) na Câmara e US$ 9 bilhões (R$ 47 bilhões) no Senado. Mas disse que a "luta" pela aprovação será dura no Congresso americano. Ele também não foi claro se esses recursos iriam total ou parcialmente para o Fundo Amazônia. Deu a entender que o apoio financeiro ao Brasil viria em parte dessa verba, de compra de créditos de carbono e por meio de empréstimos de bancos de desenvolvimento.

Já o deputado federal Joaquim Passarinho (PL-PA) criticou essa parceria. "Os Estados Unidos não são uma criança, não se metem só para ajudar. Quando se metem é porque têm interesse", comenta.

Passarinho diz que a doação pode estar associada aos interesses protecionistas do agronegócio e do setor extrativista norte-americano. Ele afirma não descartar a hipótese de que a narrativa ambientalista construa condições de travar o progresso econômico na região. "O custo Brasil [de transporte de produtos] pelo Amazonas e pelo Pará é muito menor e acaba abrindo um canal de desenvolvimento e progresso naquela região. Em qualquer exportação para os Estados Unidos via porto de Barbacena [no Pará] ganhamos cinco a seis dias de navegação. E logicamente é muito mais fácil frear isso pela teoria ambientalista", pondera.

Deputada quer fazer debate sobre fundo com sociedade

A deputada federal Sílvia Waiãpi (PL-AP) reforça as preocupações ao lançar suspeitas sobre o resgate de recursos para o Fundo Amazônia. "A reativação sem orientação [do fundo] não condiz com o que se espera em política pública. Estamos abrindo espaço para outros países adentrar e manifestar seus interesses na própria soberania do país", comenta.

Única indígena conservadora do Congresso, Sílvia defende um melhor debate sobre o Fundo Amazônia junto à sociedade para não atender "interesses internacionais". "Os que custearão o fundo irão querer determinar o futuro de um povo que já sofre pelo isolamento e pela segregação. Os interesses internacionais têm estado acima da dignidade do povo do norte, sejam eles indígenas, quilombolas, homens e mulheres da floresta, ribeirinhos e urbanos", diz.

Oposição reforça suspeita sobre Fundo Amazônia e destinação a ONGs

O Fundo Amazônia foi descontinuado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) após Noruega e Alemanha, principais doadores, rejeitarem mudanças no modelo de gestão dos recursos. O então governo defendia a participação e gestão direta sobre os recursos, bem como a destinação das verbas para as políticas públicas então desenvolvidas. Sob o governo Lula, ele voltou a ser gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

Até 2020, cerca de 61% dos recursos do fundo eram destinados à União, aos estados e municípios. Os outros 39% atendiam a organizações não-governamentais (ONGs), sendo 1% enviados a programas internacionais. O fundo já recebeu R$ 3,3 bilhões em doações, e, no total, acumula R$ 5,4 bilhões, com R$ 1,8 bilhão já contratados, informou em fevereiro o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante.

O deputado Joaquim Passarinho diz desconfiar que a oferta dos EUA de aportes para o fundo atende apenas as ONGs que, no entendimento dele, carecem de uma fiscalização segura e confiável. "As ONGs chegam no BNDES, apresentam seus projetos, aprovam e acabou. Inventam projetos que não sustentam nada, nem meia dúzia de famílias. Até hoje não vi um modelo dessas ONGs que servisse em larga escala", diz.

Deputado diz que ONGs deveriam ser mais fiscalizadas na Amazônia

Em sua crítica às instituições do terceiro setor, Passarinho cita o suposto envolvimento de brigadistas de incêndio ligados a uma ONG em Alter do Chão, distrito de Santarém (PA), que foram acusados de queimar a floresta para conseguir doações. O caso ocorreu em 2019 e foi citado por Bolsonaro para lançar suspeitas sobre as ONGs em um momento que seu governo era acusado pelas queimadas na região amazônica.

Em agosto de 2020, a Polícia Federal (PF) propôs o arquivamento das queimadas em Alter do Chão após concluir que não era possível identificar os autores. Os suspeitos cumpriram medidas cautelares, que foram revogadas em dezembro.

O senador Plínio Valério (PSDB-AM), outro integrante da oposição ao governo, defendeu ao longo da última legislatura a instauração de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para examinar a forma como são liberadas os recursos do Fundo Amazônia para as ONGs e como as verbas foram utilizadas até então, bem como o desmatamento e as queimadas na região. O colegiado não foi instalado e o requerimento foi para o arquivo.

Já Alckmin defendeu o Fundo Amazônia após o encontro com Kerry. "Ele é auditado, é um fundo privado, gerido pelo BNDES, com auditoria nacional e internacional. Já abriu os primeiros projetos", disse. Segundo ele, há projetos na "área humanitária", para políticas públicas de renda e para atendimento a comunidades indígenas e aos povos Yanomamis. Também há projetos para o combate à desnutrição, ao desmatamento e a "organizações criminosas".

O americano teve encontros diplomáticos no Brasil entre segunda-feira (27) e terça-feira (28).

Ricardo Salles rechaça narrativa climática e cobra recursos dos EUA

A agenda climática defendida por Kerry é rechaçada pelo deputado federal Ricardo Salles (PL-SP). Ex-ministro do Meio Ambiente na gestão Bolsonaro, ele destaca que os países ricos são os principais emissores de gases de efeito estufa e considera que as nações mais desenvolvidas usam de narrativas para desviar o foco sobre o uso de combustíveis fósseis para alardear sobre o desmatamento.

"Em vez de discutir os danos ambientais que eles mesmos causam ao planeta com seus combustíveis fósseis, eles só querem tratar de desmatamento na Amazônia para desviar o foco. O Brasil não pode aceitar essa narrativa, tem que apontar e questionar os problemas deles e, principalmente, cobrar os recursos que já temos direito por tudo que fazemos e fizemos", comenta.

A fala de Salles sobre recursos diz respeito às reivindicações do governo Bolsonaro de recursos amparados pelos critérios previstos no Acordo de Paris, que, em 2015, previu a destinação de US$ 100 bilhões por ano, a partir de 2020, para países em desenvolvimento que propuserem projetos de compensação dos efeitos das mudanças climáticas. As doações já podem ser feitas no âmbito do que prevê o artigo 5.º do Acordo de Paris, e poderiam financiar as ações e programas da agenda climática do Planalto.

Trata-se da chamada política de créditos de carbono, onde um país ou empresa paga por ações de conservação de terceiras partes para compensar suas emissões de poluentes ou ações de desmatamento. Kerry afirmou para Marina que os EUA têm intenção de direcionar apoio econômico para o Brasil por meio de créditos de carbono, mas não deu um número concreto.

Governo Bolsonaro vetou verbas para ONGs

O governo Bolsonaro sustentava que o Brasil tinha reconhecida uma redução superior a 9 bilhões de toneladas de carbono emitidas. Os EUA são um dos países com quem a antiga gestão negociou um volume que, se transferidos, esses recursos seriam destinados a políticas ambientais de combate ao desmatamento e redução de emissões de carbono. A ideia era que o dinheiro promovesse o pagamento por serviços ambientais, de modo a remunerar quem preservasse florestas.

O governo Bolsonaro teve diferentes reuniões com o próprio Kerry, que, em 2021, por exemplo, apresentou uma proposta de US$ 150 mil ao Brasil. A proposta foi rejeitada pelo então ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que negociava com os EUA uma doação de US$ 1 bilhão. O real problema da oferta de Kerry, porém, não era o valor oferecido, ainda que representasse 0,01% do valor pretendido. O empecilho era que a doação não seria feita ao governo, mas para fundos de investimento de capital de risco possivelmente intermediados pelo BNDES.

Salles disse ainda, que os créditos de carbono gerados pelo Brasil nos últimos 15 anos sob as rubricas do Protocolo de Kyoto, da Convenção do Clima, do Acordo de Paris e do sistema REDD+ (conceito de carbono de floresta nativa gerado a partir da redução de emissões de desmatamento e degradação) renderiam US$ 300 bilhões ao mercado brasileiro.

Salles diz que EUA não cumpriram promessa

"Mas tudo que eles [países ricos] oferecem são promessas, empréstimos e linhas ínfimas perto desses valores. Importante lembrar que Biden prometeu na sua campanha que daria US$ 20 bilhões à Amazônia e, até agora, nada!" critica o ex-ministro e integrante da bancada de oposição a Lula.

Um crédito de carbono é uma espécie de "moeda" que um país ganha ao reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa. Uma nação pode vender esses créditos para empresas ou países que não conseguem reduzir suas emissões e que, por isso, não atingem suas metas – ou seja, um país ou empresa "compensa" suas emissões pagando para quem preserva em outra nação, cumprindo seus compromissos ambientais. A ideia é que, mesmo poluindo, eles estarão compensando ao preservar em outra localidade.

Contudo, os processos de quantificação e verificação da efetividade dos programas de conservação destinados ao mercado de créditos de carbono ainda não foram padronizados mundialmente. Muitos deles são foco de polêmicas em diversos países. Por isso, não é tão simples para um país ou empresa sair comprando créditos de carbono no mercado.

Oposição vai debater oportunamente a política ambiental no Congresso

A oposição a Lula promete não ficar à margem da definição da política ambiental brasileira e provocar debates com o governo. Salles entende que não está clara a estratégia da gestão Lula para política de créditos de carbono, por exemplo, e vai analisar como proceder as discussões na Câmara. "Uma vez montadas as comissões vamos avaliar quem, quando e para que chamar", destaca em resposta à hipótese de requerimentos de audiência pública ou de convite e até convocação a membros do governo.

O deputado Joaquim Passarinho reforça as críticas de que a retórica ambientalista atrasa o debate do desenvolvimento sustentável na Amazônia. Mas entende que o atual Congresso mais conservador contribui para um debate mais profundo organizado pela oposição a Lula, a exemplo da possibilidade de ampliar a exploração em áreas já "antropizadas”, ou seja, já degradadas por ação humana.

Lei brasileira prevê preservação de 80% da vegetação em fazendas

Mesmo em áreas degradadas, Passarinho explica que os agricultores e pecuaristas precisam preservar 80% da vegetação e podem dispor de apenas 20% do terreno para atividades econômicas. "Não defendo a destruição da floresta, mas não deveria ser 80/20 [em áreas antropizadas]. Deveria ser 100% de [preservação] onde temos floresta preservada, ou seja, desmatamento zero, porém permitir entre 50% e 60% de produção em áreas antropizadas. Aí, começamos a induzir o cara que quer investir ali nessas áreas, e não nas áreas preservadas", destaca.

O conceito defendido por Passarinho tem por intuito assegurar um desenvolvimento sustentável legalizado na região Amazônia Legal. "Não posso dizer ao amazônico que ele não pode ter uma saúde e educação boa, que ele vai ter que viver no submundo pois ninguém quer que ele corte uma árvore, e ninguém paga por ele por isso?", comenta. "Podemos provar que a árvore 'em pé' pode ter mais valor do que ela 'deitada'", acrescenta.

A deputada Sílvia Waiãpi endossa o discurso da oposição. "Inexiste uma política pública sem levar em conta o que o homem da floresta precisa", comenta.

Ela também se dispõe a debater o avanço do desenvolvimento na Amazônia. Diz entender que não há "efetivamente" um interesse do governo em solucionar pautas ambientais. Segundo ela, os parlamentares da Amazônia brasileira, "que são os verdadeiros representantes do povo do Norte". sequer foram ouvidos. "Pautas que não são discutidas e difundidas entre os representantes dos povos no parlamento não possuem o condão de progresso", comenta.

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