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Direito de criticar em xeque

STF volta ao tema da liberdade de expressão em processos envolvendo autoridades

Alexandre de Moraes (ao centro) e Flávio Dino (à dir.) têm, nos últimos anos, relativizado a imunidade parlamentar (Foto: Luccas Zappalá/STF)

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O Supremo Tribunal Federal (STF) voltará a discutir, nesta quarta-feira (7), o tema da liberdade de expressão, em dois julgamentos. No primeiro, os ministros vão decidir se é constitucional uma regra do Código de Processo Penal que aumenta em um terço a pena para os crimes de injúria, calúnia e difamação, se forem cometidos contra funcionário público ou contra os presidentes do Senado, da Câmara ou do próprio STF.

O Partido Progressista pediu o fim dessa agravante sob o argumento de que ela traz um cerceamento excessivo à liberdade de expressão, porque inibe uma de suas principais finalidades: a crítica dos cidadãos a agentes públicos e a poderosos. O partido diz que, nesses casos, os crimes contra a honra deveriam ter penas menores, e não maiores, uma vez que servidores devem estar mais sujeitos a críticas que outros cidadãos.

No segundo julgamento, a questão também será discutida, mas por outro ângulo. Os ministros vão ouvir as sustentações orais numa ação sobre a possibilidade de o Estado ter de pagar indenização a pessoas ofendidas – no caso, um juiz – por discursos de parlamentares – um deputado estadual, no processo que será julgado.

Estará em jogo, de um lado, a imunidade parlamentar, segundo a qual deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (artigo 53 da Constituição) e de outro, um preceito da administração pública segundo a qual órgãos públicos “responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (parágrafo 6º do artigo 37).

Nesta segunda ação, o caso concreto a ser julgado baseia o debate. Ele envolve um juiz que processou um deputado estadual por danos morais, exigindo dele uma alta indenização, porque o parlamentar, na tribuna da Assembleia Legislativa, insinuou que o magistrado fez uma “maracutaia” com um prefeito do interior.

Em novembro de 2000, num longo discurso no plenário do Legislativo do Ceará, o então deputado João Alfredo, do PT, narrou um “verdadeiro descalabro” envolvendo o então juiz de Canindé (CE) Hortêncio Augusto Pires Nogueira. Segundo o petista, o magistrado teria processado o município, cobrando indenização de R$ 900 mil, porque o então presidente da Câmara dos Vereadores o denunciou, junto a órgãos de controle do Judiciário, por supostas irregularidades em sua atuação como juiz.

Segundo João Alfredo, o então prefeito da cidade e o juiz fizeram um acordo para encerrar o processo, pelo qual o magistrado teria recebido R$ 174 mil de indenização. O deputado criticou o acordo, sobretudo porque os funcionários do município estariam, à época, sem receber salário havia três meses e o mesmo juiz estaria se negando a julgar uma ação do Ministério Público para garantir o pagamento a eles.

Um tempo depois, a Câmara dos Vereadores de Canindé decidiu afastar o então prefeito, Ximenes Filho, por falta de repasse de recursos. Ato contínuo, Hortêncio teria, então, segundo Alfredo, mandado prender 15 vereadores da cidade.

“O grave é de quem tem a missão constitucional de fazer a justiça, de cumprir o que está na Lei, é quem está justamente descumprindo a Lei, é quem está se locupletando com os cofres do Município, é quem está impedindo inclusive que os salários dos professores sejam pagos, atrasados há 3 meses, para embolsar quase 175 mil reais sem Imposto de Renda, isso é que é o grave, muito mais do que tudo que já foi feito. Se pelo menos tivesse justiça, quem roubou estava preso. Mas quando quem faz é o próprio juiz, vai-se apelar para quem? Para o Bispo?”, discursou João Alfredo.

O deputado defendeu uma CPI para investigar o Judiciário local. Por causa de suas falas, Hortêncio acabou processando o estado do Ceará, de forma semelhante ao que havia feito contra o município de Canindé, cobrando indenização por danos morais. É exatamente a legalidade dessa estratégia – de processar o Estado em razão de manifestações críticas, supostamente ofensivas, de parlamentares – que o STF começará a julgar nesta quarta.

“De um lado, a imputação de responsabilidade civil objetiva ao Estado por opiniões, palavras e votos de parlamentares parece reforçar a ideia de igualdade na repartição de encargos sociais. Por outro lado, o reconhecimento desse dever estatal de indenizar por conduta protegida por imunidade material pode constranger a atuação política e o próprio princípio democrático. Dessa forma, a harmonização entre o dever de reparação civil objetiva do Estado e a garantia de imunidade material para o exercício de mandato parlamentar é matéria de evidente repercussão geral”, resumiu o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao analisar a questão, em 2017.

Na época, a Corte decidiu dar repercussão geral ao caso, para que a decisão que for tomada sirva de parâmetro para todos os outros casos semelhantes. Em síntese, o STF vai decidir se cabe a alguém pedir indenização ao Estado por manifestações ofensivas de parlamentares. Se isso for permitido, ainda é possível que, após pagar a indenização, o Estado cobre o valor do parlamentar – é o que a regra da Constituição chama de “direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ao analisarem a questão, os ministros também vão decidir se Hortêncio merece ou não a indenização. Na primeira instância, outro juiz mandou o estado do Ceará pagar a ele 50 vezes o seu salário. Na segunda instância, o Tribunal de Justiça reduziu o valor para R$ 200 mil. O governo cearense recorreu ao STF, pedindo para não pagar nada, alegando que as falas de João Alfredo estão protegidas pela imunidade parlamentar.

A questão interessou o Senado Federal. Em manifestação enviada ao STF, advogados legislativos citaram juristas estrangeiros que argumentam que a imunidade parlamentar serve justamente para proteger os representantes do povo contra arbítrios dos outros poderes, inclusive do Judiciário, quando são criticados.

“A tese da repercussão geral, ao pretender responsabilizar objetivamente o Estado por atos relacionados à imunidade parlamentar, e sem qualquer delimitação aos casos de dolo ou fraude, pretende não apenas atribuir situação de responsabilização mais gravosa à atividade legislativa, bem como tornar ilícito o discurso político, cujo cerne está na liberdade de expressão e opinião de todos os cidadãos, mas, em razão do cargo eletivo, vê-se qualificado pelo poder-dever de representação dos interesses dos representados com total liberdade e independentemente de posicionamentos e interesses dissonantes”, argumentou a advocacia do Senado.

A discussão representa um dedo na ferida para o STF. Nos últimos anos, a Corte tem paulatinamente restringido a imunidade parlamentar. Tradicionalmente, essa prerrogativa sempre gozou no STF de grande deferência. A jurisprudência da Corte admitia limitá-la basicamente em duas situações: quando ofensas ou calúnias proferidas por congressistas não eram verbalizadas dentro do Parlamento ou, quando externadas fora desse ambiente, não guardavam relação com o mandato.

Em 2022, porém, uma restrição maior acabou aparecendo: mesmo quando ligadas ao exercício das funções parlamentares, declarações dirigidas contra a cúpula do Judiciário, seus membros e também contra a Justiça Eleitoral, passaram a ser criminalizadas.

Dois casos ilustram essa tendência: a condenação do deputado Daniel Silveira, por ofensas e supostas ameaças aos ministros do STF, em abril de 2022 e a cassação do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR), em 2021, em razão de acusações contra urnas eletrônicas nas eleições de 2018 – a perda do mandato foi aprovada em 2021 pelo Tribunal Superior Eleitoral e mantida em 2023 pelo STF.

No fim do ano passado, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) foi indiciado pela Polícia Federal, em inquérito conduzido pelo ministro Flávio Dino, por criticar, na tribuna, o delegado da PF Fábio Shor, acusando-o de produzir “relatórios fraudulentos” para prender e incriminar Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Neste mês, o mesmo Flávio Dino cobrou do líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), explicações sobre um suposto plano, noticiado na imprensa, de retirar verbas de emendas parlamentares de deputados que não apoiassem a anistia para os condenados do 8 de janeiro de 2023.

Sóstenes se recusou a dar explicações, dizendo-se amparado pela imunidade parlamentar. Dino, então, disse que a imunidade não o isenta de dar explicações ao STF, porque, no caso das emendas, há “possíveis crimes contra o patrimônio público”.

O mesmo artigo da Constituição que diz que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, também diz que eles “não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”.

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