• Carregando...
Cármen Lúcia é a relatora das resoluções neste ano, que deverão ser aprovadas no plenário do TSE, sob a presidência de Alexandre de Moraes
Cármen Lúcia é a relatora das resoluções neste ano, que deverão ser aprovadas no plenário do TSE, sob a presidência de Alexandre de Moraes| Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE

Sob o comando do ministro Alexandre de Moraes, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apresentou, em janeiro, as minutas de resoluções que vão reger as campanhas para prefeito e vereador nas eleições municipais deste ano. Se em 2022, a Corte se notabilizou pela censura e tratamento duro a quem propagava o que os ministros classificam como “fake news”, neste ano a proposta é de rigor ainda maior, o que já acendeu um alerta vermelho entre observadores e analistas preocupados com a liberdade de expressão de candidatos e eleitores, essencial no momento de escolha democrática de governantes e representantes políticos.

Entre as novidades propostas pela Corte neste ano, está a ampliação do poder de polícia para remoção de postagens nas redes sociais, permitindo que os milhares de juízes eleitorais que fiscalizam as campanhas de todo o país estejam aptos a retirar da internet a propaganda que “veicular desinformação que comprometa a integridade do processo eleitoral”.

A regra proposta é que, nesses casos, os magistrados fiquem vinculados às decisões do próprio TSE sobre o tema, podendo assim excluir “conteúdos idênticos”. Na prática, os juízes estarão autorizados a remover do ambiente online tudo o que os ministros considerarem falso.

Em 2022, por iniciativa de Moraes, o TSE já havia ampliado seu próprio poder de polícia, nas eleições presidenciais, ao aprovar uma resolução que possibilitava aos ministros remover, de ofício (por iniciativa própria, sem provocação externa de candidatos ou partidos), “a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”.

Isso foi aplicado não apenas para textos, áudios ou vídeos que questionassem a confiabilidade das urnas eletrônicas, mas também para aquilo que os ministros consideraram falso sobre candidatos. Foi assim, por exemplo, que a Corte censurou conteúdos que associavam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou o PT à corrupção ou ao crime organizado, à agenda LGBT ou a regimes ditatoriais de esquerda com perseguição política e religiosa – caso da Nicarágua.

A nova resolução ainda não foi aprovada. Precisará passar por aprovação no plenário do TSE, o que deve ocorrer ainda em março. A publicação das minutas, no entanto, já despertou preocupações nas plataformas e em ativistas que defendem a liberdade de expressão.

Numa audiência pública para discutir as novas regras propostas, no fim de janeiro, advogados e representantes desses segmentos sugeriram que a Corte trouxesse ao menos mais clareza sobre o que será proibido na campanha ou seja mais branda, especialmente com eleitores.

As sugestões que as empresas e entidades civis fizeram serão estudadas pela equipe técnica do TSE, para serem incorporadas ou não – a relatora das resoluções é a ministra Cármen Lúcia.

O Facebook pediu que, nas decisões para remover conteúdos “idênticos” àqueles julgados irregulares, os juízes mencionem o precedente do TSE classificando-os como “desinformação”. “Apenas propõe-se que se facilite a supervisão do poder de polícia pelos milhares de juízes eleitorais. Aumenta a segurança jurídica e possibilita o contraditório pelos candidatos afetados”, disse na audiência o advogado da empresa, Rodrigo Ruf Martins.

De forma semelhante, a ONG Artigo 19, que defende a liberdade de expressão, pediu que essas decisões do TSE sejam públicas – em 2022, perfis de candidatos foram suspensos sem que eles soubessem o motivo. O representante da entidade, Andre Galego Boselli, afirmou na audiência que a publicação facilitaria “o acompanhamento pela sociedade, pela academia, pela imprensa das restrições eventualmente impostas à liberdade de expressão”.

O Instituto Vero, que reúne pesquisadores e criadores de conteúdo, chamou a atenção para a possibilidade de a regra acabar retirando do ar vídeos que repliquem parte do conteúdo proibido, mas com finalidade de comentá-lo, denunciá-lo ou tratá-lo com ironia. “A polissemia, quando a gente chega na realidade de aplicação desse termo, é muito grande”, disse o diretor-executivo da ONG Caio Cesar Vieira Machado. “Sugerimos uma definição muito clara sobre os critérios de similaridade, então abarcando o que é crítica, o que é sarcasmo, e como isso vai ser aferido em escala, que é o grande desafio”, recomendou. Ele alertou que, se essa tarefa fosse deixada a cargo das plataformas, as ferramentas de inteligência artificial para remoção de conteúdos semelhantes apresentam um “potencial de sobrerremoção muito grande”. A acurácia não é de 100% e o grau de arbitrariedade é grande, segundo ele.

Combate às 'deepfakes' pode penalizar edições de vídeo com IA

Na minuta de resolução sobre a propaganda eleitoral, o TSE apresentou novas regras para tentar conter o uso de inteligência artificial para a disseminação de conteúdo falso. A grande preocupação é com as chamadas “deepfakes” – vídeos, imagens ou áudios hiper-realistas que mostram uma pessoa falando ou fazendo algo que, na realidade, não disseram ou realizaram.

Para combater esse tipo de falsidade, o TSE quer que toda propaganda eleitoral que utilize “conteúdo fabricado ou manipulado, em parte ou integralmente, por meio do uso de tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial”, seja acompanhada de informação explícita e destacada da manipulação, bem como da tecnologia utilizada.

Caso essa identificação não ocorra, além da remoção do conteúdo, o responsável poderá ser enquadrado no crime eleitoral de “divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”, cuja pena é dois meses a um ano de detenção, além de multa. O risco é punir edições de vídeo que usem programas que automatizem ou facilitem esse processo só pelo fato de isso não estar informado e destacado na peça.

A minuta de resolução ressalva que a punição não seria aplicada nos casos em que a edição do conteúdo seja feita para melhorar a qualidade da imagem ou do som. Ainda assim, a regra proposta deixou especialistas preocupados com a severidade do tratamento ao tema.

O representante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Bruno de Souza, criticou o texto. “A academia entende que essa criminalização da conduta em não dar transparência de que aquele conteúdo é IA [inteligência artificial] talvez seja um pouco demais. Principalmente se a gente tem na própria legislação situações semelhantes. O impulsionamento, quando não é transparecido, a esfera de sanção é a cível-eleitoral, não a criminal”, disse, referindo-se à regra que pune só com multa propagandas eleitorais destacadas ou distribuídas nas plataformas mediante pagamento que não estejam assim identificadas.

Outro problema apontado por participantes da audiência é a falta de clareza de quem será responsabilizado pela não identificação do conteúdo produzido com inteligência artificial. As empresas de tecnologia e associações ligadas ao setor defendem que esse dever não recaia sobre elas, mas sobre quem criou aquele conteúdo.

“Para que a regra alcance sua finalidade primeira, qual seja, o acesso à informação adequada para os eleitores, é necessário que aqueles que possuem as maiores e mais precisas informações sobre que tipo de tecnologia empregada assuma o protagonismo na identificação do conteúdo. O uso de tecnologias cada vez mais refinadas torna necessária a identificação de conteúdo manipulado ou fabricado um grande desafio, não só para cidadãos e autoridades, mas como também para as plataformas”, disse a representante do YouTube, Alana Rizzo.

A Associação Lawgorithm de Pesquisa em Inteligência Artificial defendeu o mesmo, chamando a atenção para o uso legítimo de ferramentas tecnológicas para criação de conteúdo audiovisual.

“A preocupação do Lawgorithm está em apenas evitar que o eleitor identifique todo e qualquer uso de inteligência artificial como manipulação fraudulenta ou deepfake. Existem diversos usos legítimos para manipular áudios e vídeos, seja para melhorar a fluidez do discurso, trazer um cenário de fundo, um visual empático para um candidato ou mesmo aproveitar uma gravação em vídeo para produzir diversos conteúdos com outras falas, voltadas para diferentes audiências. Isso faz com que haja redução dos custos de campanha, o que equilibra a disputa entre candidatos que tenham menor acesso a financiamento. Pode contribuir para o processo democrático. Usos legítimos vão além dos ajustes de imagem e som”, disse o representante da entidade, Juliano Maranhão.

O Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris) foi além: defendeu não só que criadores identifiquem se determinado conteúdo é ou não eleitoral, e se tem ou não inteligência artificial, mas só o façam aqueles que pagam para impulsioná-los.

“A obrigação de informar o caráter político-eleitoral do conteúdo deve ser dever do responsável pelo conteúdo para não estender uma obrigação de monitoramento proativo e categorização proativa aos provedores de aplicação”, disse a representante da entidade, Paloma do Carmo. “Sugerimos que apenas os conteúdos político-eleitoral e de propaganda eleitoral impulsionado estejam sob a égide da obrigação de transparência. Nós consideramos que esse tipo de conteúdo é revestido de uma camada a mais de profissionalização e de fato interesse eleitoral em impactar o pleito”, completou depois.

As empresas de tecnologia se opõem à ideia de que sejam responsáveis pela identificação de conteúdo eleitoral e com uso de inteligência artificial pelo risco de serem punidas se falharem nessa tarefa. A preocupação é com a quantidade grande de produção independente de propaganda, oficial ou não, em favor ou contra candidatos. Caso se tornem responsáveis por isso, elas poderiam acabar fazendo remoções em massa, por precaução, para evitar sanções. Mesmo conteúdos lícitos e legítimos seriam retirados, prejudicando o debate eleitoral.

Poder às agências de checagem parceiras

Outro ponto perigoso da minuta de resolução é o poder conferido às agências de checagem. O texto permite ao TSE fechar acordos de cooperação com essas empresas. A classificação que elas fizerem, de “forma independente”, poderá ser usada “como parâmetro para aferição de violação ao dever de cuidado”. Esse trecho faz parte de um dispositivo que permite à Justiça Eleitoral remover “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”.

Na prática, a minuta permite que o TSE e os juízes eleitorais retirem do ar o que essas agências considerarem falso. Como já mostrou a Gazeta do Povo, o problema é que essas empresas também podem errar na avaliação de conteúdo e classificá-los como falsos ou enganosos com base em viés ideológico ou político.

Outra inovação da minuta é a permissão para que as remoções de conteúdo na internet ultrapassem o período da campanha e da própria eleição. Até o pleito de 2022, a regra era que encerrado o processo eleitoral, as ações para retirada de propaganda online perdiam objeto, permitindo então que postagens, vídeos e textos censurados voltassem ao ar. A nova resolução do TSE propõe que “a realização do pleito não acarreta a perda de objeto dos procedimentos em que se apure anonimato ou manifestação abusiva na propaganda eleitoral na internet, inclusive a disseminação de fake news tendente a atingir a honra de candidata ou candidato”. Na prática, o conteúdo permanecerá vetado pelo tempo que a Justiça Eleitoral definir que seja.

Desacreditar urnas levará à cassação e inelegibilidade

Numa minuta de resolução que define ilícitos eleitorais, o TSE ainda incorporou a recente jurisprudência que condena discursos que colocam em dúvida a integridade das urnas eletrônicas. Mesmo quem dissemine esse tipo de conteúdo por aplicativos de mensagens estará sujeito à cassação de mandato, no caso de políticos eleitos, e também à inelegibilidade, pena que expulsará das disputas eleitores que um dia quiserem se candidatar.

“A utilização da internet, inclusive serviços de mensageria, para difundir informações falsas ou descontextualizadas a respeito do sistema eletrônico de votação e da Justiça Eleitoral pode configurar uso indevido dos meios de comunicação e, a depender das circunstâncias do caso, abuso dos poderes político e econômico”, diz a minuta do TSE.

A divulgação de mentiras contra candidatos por WhatsApp ou Telegram também será considerado um abuso passível de levar à cassação e inelegibilidade. “O uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, com desinformação, falsidades, inverdades ou montagens, em prejuízo de adversária(o) ou em benefício de candidata(o), pode configurar abuso do poder econômico ou uso indevido dos meios de comunicação social”, diz outra regra da proposta de resolução.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]