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A filosofía no lixo: os restos de nossa cultura
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Se tem um autor que merecia ser traduzido no Brasil, este é Theodore Dalrymple. Cada livro seu que leio é um deleite, pela elegância dos argumentos, sem deixar de lado sua robustez. O médico britânico tem a coragem de remar contra a maré do relativismo moderno, não aceita ser pautado pelo politicamente correto, e desmonta as principais bandeiras progressistas.

Em Litter: The Remains of Our Culture [menos de $ 5 na versão kindle], Dalrymple foi buscar literalmente no lixo as reflexões sobre a decadência da cultura ocidental, especialmente a britânica. Ele jamais poderia esperar que o povo britânico pudesse transformar a terra nativa em uma enorme lata de lixo. Mas foi justamente isso que aconteceu.

Não bastasse o hábito alimentar em si, de comer cada vez mais “junk food” – o que até encontra uma explicação evolutiva, pois a biologia cria uma predisposição aos alimentos mais gordurosos ou doces, de rápida satisfação – os britânicos têm usado as próprias ruas do país como lata de lixo para todo essa porcaria disfarçada de comida (constatar que essa alimentação, se diária, é ruim, não é o mesmo que abraçar o paternalismo estatal da esquerda).

Outro fator importante, que afeta de maneira desproporcional as famílias mais pobres: poucas crianças ainda comem à mesa com familiares em refeições regulares. Uma pesquisa recente apontou que 36% das crianças inglesas jamais comem o jantar junto com seus familiares. Perdem a fundamental lição de convívio social. Esquecem ou não aprendem que comer não é apenas um ato biológico, mas social, que impõe autocontrole e respeito aos demais.

Dalrymple foi buscar no romantismo parte da explicação para este fenômeno. Os típicos egocêntricos de hoje podem jamais ter lido a literatura romântica, mas a absorveram por osmose social. Está em nosso zeitgeist. Para estes, a liberdade é o mesmo que atender a seus desejos e apetites, sempre que vêm à tona. Tudo aquilo que inibe a expressão dos próprios desejos é visto como tirania.

A forma mais rápida de ter paz com crianças é lhes dar tudo que pedem e desejam. Educar dá trabalho, exige o uso constante de “não”, o que gera reações desagradáveis muitas vezes. Deixadas à própria sorte, as crianças vão escolher comidas gordurosas ou doces. O gosto pela variedade raramente é inato; precisa ser adquirido.

Na era moderna, a autoridade é transferida dos pais para os filhos. São eles que decidem muitas coisas. Como resultado, as crianças passam a crer que seus caprichos são leis. Crianças mimadas não toleram bem os limites da realidade ou das leis externas. O conflito é inevitável.

A criança criada assim acaba se tornando hedonista e egoísta, para quem todas as frustrações em satisfazer seus apetites são fruto de injustiças exercidas por forças exógenas. Quando ela não consegue o que quer, torna-se agressiva e violenta, culpando os outros por tudo. Fecha-se em seu mundinho particular, com seus fones de ouvido, e ignora tudo em volta, inclusive o espaço público.

O fenômeno é abrangente. Como Dalrymple reconhece, a sujeira toda nas ruas não pode ser um ato isolado, de alguns poucos. É um “trabalho” de muitos. Condenar a porcaria em locais públicos, portanto, significa criticar uma parcela substancial da população, incluindo os mais pobres.

A era da “democracia” politicamente correta não permite isso. Precisa encontrar bodes expiatórios, fatores externos que justifiquem essas atitudes. Apontar para os próprios porcalhões como responsáveis fere a “sensibilidade” de muita gente, inclusive da elite.

Na era moderna, sugerir que pessoas comuns podem se comportar de forma condenável por sua própria volição é ser visto como Inimigo do Povo. Assim, não precisamos refletir sobre o comportamento dessas pessoas. Basta pensarmos que são vítimas de algo além de seu desvio de caráter.

Parte do problema, para Dalrymple, está no culto da espontaneidade e da autenticidade. Com pitadas de Rousseau e sua visão de Bom Selvagem, acreditando-se que os homens são naturalmente bons, seus impulsos imediatos serão vistos como legítimos.

Na era do sentimentalismo, as pessoas justificam quaisquer atos condenáveis sob o manto das emoções. O criminoso que pichou a estátua de Carlos Drummond de Andrade em Copacabana se justificou alegando sofrer de depressão. O porco está apenas “expressando” suas emoções.

Os tempos vitorianos em que demonstrar fortes emoções em público era visto como fraqueza de caráter, falta de autocontrole e barbárie, ficaram enterrados em um passado longínquo. Hoje, quanto mais histeria em público, mais “autêntica” é a pessoa.

Perder o autocontrole individualmente tem seus riscos, claro. Mas perdê-lo em manada, em movimentos de massa, com milhares de cúmplices, garante uma imunidade ao descontrolado. Um bêbado sozinho vomitando pelas ruas pode ser preso, mas não milhares de bêbados fazendo o mesmo. Há segurança nos grandes números.

Após certo tempo, a porcaria se torna um hábito. As pessoas jogam lixos nas ruas como as vacas defecam no pasto. É algo que vem naturalmente, sem reflexão consciente. O visual emporcalhado passa a ser parte do cotidiano, e poucas pessoas sequer notam. Já se acostumaram com o lixo.

Outros, mais atentos, reparam na porcaria, mas têm medo de apontar diretamente os culpados. Com muitos dos porcalhões sendo também pessoas violentas, há o risco de reclamar por um resto de comida jogado no chão e ser agredido. Não vale a pena morrer ou apanhar por conta disso. Os mártires enaltecidos atualmente são apenas aqueles que morrem pelas causas ruins.

Há, ainda, um clima de rebeldia por parte dos mais jovens. Não querem se conformar com o “sistema”, e não se dão conta de que há conformismo nesse “não-conformismo” padronizado. Fora isso, existe tanta podridão mesmo no sistema, na democracia moderna, que surge a questão: por que seguir as normas? O próprio conceito de “bem público” perde sentido. A corrupção moral é a pior de todas.

Não é a redução do estado que está por trás disso, mas seu avanço, para áreas completamente dissociadas do propósito do bem público. Isso acaba alimentando um niilismo social, esse tipo de postura de jogar lixo nas ruas e não dar a mínima para o entorno.

O estado paternalista moderno retirou do indivíduo a responsabilidade de várias funções básicas na vida, invadindo cada vez mais a esfera particular. Em troca, “pede” o pagamento de pesados impostos – sem muita margem para negociação. O sujeito paga os impostos e pronto, sente-se livre para fazer o que der na telha, sem nenhum tipo de responsabilidade ou preocupação com os demais. “Paguei meus impostos, logo, posso jogar o que desejar no chão e o governo que limpe”.

Para piorar, o governo não consegue executar direito essa que é uma de suas funções básicas. Com cada vez mais mão de obra educada em busca de cargos públicos estáveis e com altos salários, e com restrições orçamentarias apesar dos crescentes impostos, o governo acaba priorizando funções menos úteis (sociólogos? burocratas?) em detrimento dos lixeiros. As autoridades não levam tão a sério as atividades básicas do cotidiano, como recolher o lixo, pois estão mergulhadas demais em causas mais nobres, como salvar o planeta ou criar um novo mundo.

Claro que quando faltar autocontrole individual e responsabilidade, sobrará controle externo. Justamente o que os governantes querem. O Reino Unido possui a maior quantidade de câmeras de vigilância per capita do mundo! Por dia, cada um é filmado dezenas de vezes, em um verdadeiro “Big Brother”. O resultado, apesar das aparências, costuma ser ineficaz para fazer cumprir as leis.

Quando o ato virtuoso depende apenas da aplicação de leis, sem dúvida ele será menos comum do que quando está incutido na própria educação e cultura. A punição para os desvios é fundamental, e a longo prazo acaba tendo inclusive efeito na própria cultura. Mas contar só com a punição não basta, ainda que ela seja crucial, como demonstra o caso de Cingapura.

Exatamente para evitar um estado policial e vigilante desse jeito, o ideal seria absorver culturalmente os hábitos virtuosos. Dalrymple reconhece que argumentos lógicos e racionais, no fundo, não são capazes de sensibilizar os porcalhões. Sua experiência mesmo diz que é preciso algo mais. Sua grande aversão ao lixo nas ruas vem de sua mãe.  Simples assim.

Não lhe passa pela cabeça jogar lixo no chão, pois assim foi educado por sua mãe, com rigor. “O bom comportamento é tanto uma questão de preconceito e hábito como de raciocínio”, explica. Concordo com ele. Também fui educado rigorosamente acerca do absurdo que é jogar porcaria nas ruas. Minha revolta com os porcos também vem do berço. Em parte, estou imune ao relativismo estético e moral por conta disso. Sei que é errado jogar lixo, e não preciso de câmeras ou fiscais para agir corretamente.

Eis o que precisamos para combater a crescente porcaria pública: incutir nas crianças que lixo é lixo, e que é simplesmente errado jogá-lo no chão. Para isso existem as latas e sacos de lixo. Se o desespero de Dalrymple no Reino Unido é grande, imaginem o meu no Brasil, país em que “mijões” pululam por aí e muitos acham que as vias públicas são depósitos de lixo para seus restos de comida.

É hora de limpar essa porcaria toda. O lixo, como sabem os autores de livros policiais, diz muito sobre a pessoa. E o lixo nas ruas diz muito sobre a cultura, ou o que restou dela…

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