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Direita brucutu: quando reacionários recalcados se passam por conservadores
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As redes sociais deram voz aos idiotas de todos os tipos, perfis e ideologias. Andando em bando ou no anonimato, eles se sentem confortáveis para disseminar seu ódio, extravasar seu recalque, transformar sua mediocridade pessoal em arma contra todos aqueles que se mostram superiores, independentes, com autoconfiança.

Anos de petismo produziram um sentimento, compreensível, de revolta profunda, alimentando um desejo de vingança. No encontro entre as redes sociais e esse sentimento difuso, criou-se o fenômeno do bolsolavismo, uma “direita” que se define basicamente por aquilo que odeia, a esquerda. Não há desejo de construção, mas sim de destruição. E como se parecem, nos métodos, com aquilo que pretendem destruir!

Ao perceber isso, muitos liberais e conservadores foram se afastando do governo Bolsonaro. Afinal, trata-se de um pacote: para levar Guedes é preciso levar também essa gente que baba de ódio e quer guerra permanente contra os inimigos – todos aqueles que não aderem totalmente ao bando. O governo Bolsonaro, porém, não é sua militância olavete nas redes sociais. Mas quem conhece essa turma tem calafrios só de imaginar sua crescente influência no governo.

O receio com o autoritarismo, portanto, é legítimo. Não é “fascismo imaginário”, como alguns alegam. É projeção desse grupo se alastrando e tomando conta do todo, inclusive jogando para escanteio aqueles mais moderados e pragmáticos que insistem em lutar pelo país em meio aos boçais. Eles se acham “machões”, mas não passam de brutamontes truculentos sem qualquer noção do que seja conservadorismo.

E é por isso que, em Confissões de um ex-libertário, livro em que dissequei minha mudança como liberal para um viés mais conservador, fiz questão de terminar com um capítulo que separava o joio do trigo, ou seja, tratava com o devido respeito o conservadorismo, mas deixando claro que ele jamais será sinônimo de reacionarismo autoritário. Eis o capítulo na íntegra:

Conservador sim, reacionário não!

O economista austríaco Hayek, como já vimos, defendia uma “ordem espontânea” que respeitava tradições e agia com cautela diante das abstrações racionais. Por conta basicamente dessa abordagem, Hayek foi “acusado” por muitos liberais de ser um conservador (hoje muito libertário radical o acusa de ser um socialista). As regiões de interseção eram tantas que ele, de fato, viu-se obrigado a esclarecer as coisas, e acrescentou um texto em seu livro Os fundamentos da liberdade explicando por que não era um conservador.

Trata-se, em minha opinião, de um afastamento do neoconservadorismo tipicamente americano, mas não do conservadorismo burkiano em si. Hayek acreditava que o liberal devia manter um otimismo em relação ao futuro, descartar o medo excessivo com mudanças e apostar na liberdade. Ele não era um reacionário. Mas tampouco os conservadores da linhagem iluminista britânica o eram. Nem de perto. O próprio Burke era um liberal Whig, não um Tory. Ele não queria evitar mudanças, mas adotar a prudência ao defendê-las.

Se Hayek teve de explicar que não era um conservador, talvez confundindo o conceito com o de reacionário, eu me vejo forçado, neste livro, a deixar claro que também não sou um reacionário e que o conservadorismo que vejo como saudável para os liberais clássicos não tem nada a ver com a postura saudosista, moralista e autoritária de muitos à direita. Acho que os liberais deveriam se afastar do libertarianismo radical de hoje, mas sem encostar demais no lado reacionário da direita. Reagir a tudo que não presta, tudo bem. Mas se tornar um idealizador do passado, isso não!

Repito aqui o desabafo feito por Baltasar Gracián, que poderia ser escrito hoje por muitos conservadores desiludidos com a era moderna, mas que foi escrito no século XVII: “Muitos valores vieram a parecer antiquados: falar a verdade, manter a palavra. Os bons parecem pertencer aos velhos tempos, embora sejam sempre queridos. Se é que ainda há alguns, são raros, e nunca são imitados. Que triste época esta, quando a virtude é rara e a maldade está no cotidiano.”

O livro A mente naufragada, de Mark Lilla, trata justamente desse viés reacionário em certos pensadores, no caso focando mais em Eric Voegelin e Leo Strauss. Segue uma resenha que escrevi dele em minha coluna na revista IstoÉ, cujo título foi “A política da nostalgia”, pois considero importante fazer a distinção entre essas duas posturas dentro do que se chama direita:

Existem dois grupos ideológicos que podem ser igualmente perigosos para a democracia liberal. O primeiro é o dos revolucionários utópicos, que pretendem criar um “novo mundo” e um “novo homem”. Eles idealizam o futuro e não se importam com os meios para atingir tão “nobre” fim. Foi essa mentalidade que esteve por trás da Revolução Francesa, da bolchevique e de tantos outros nefastos experimentos socialistas. No Brasil, o PT e suas linhas auxiliares, como o PSOL e a Rede, representam essa visão de extrema esquerda.

Do outro lado estão aqueles que também não suportam o presente imperfeito, as necessárias contemporizações de uma democracia, mas em vez de idealizar o futuro preferem idealizar o passado. Sonham com o resgate de uma “era de ouro” perdida, em que tudo era infinitamente melhor, até mesmo perfeito. Para retornar a esse paraíso, não medem esforços, adotam métodos igualmente autoritários e estão dispostos a eliminar os adversários no processo, tratados como inimigos mortais se desviarem uma vírgula de sua cartilha. São os reacionários.

Em The Shipwrecked Mind, Mark Lilla traça o perfil dessa postura reacionária, dissecando alguns pensadores relevantes da extrema direita. Sua marca principal é o profundo desgosto para com a vida moderna, vista como decadente e perto de um Apocalipse. A redenção precisa vir de uma volta ao passado, e o medo de uma iminente catástrofe alimenta essa postura. O reacionário acredita no determinismo e acha que descobriu as leis da História, sendo cada evento ruim utilizado como prova irrefutável de que vivemos num mundo pervertido, prestes a sofrer um enorme castigo se não resgatar urgentemente o modelo imaginado de eras passadas.

A nostalgia pode ser uma poderosa arma política. Pode ser um motivador ainda mais poderoso do que a esperança, explorada pelos revolucionários. A esperança pode trazer decepção, mas a nostalgia é incontestável. Ela adota um pensamento mágico para a História, e o sofredor da modernidade encontra refúgio nessa magia, na ilusão de que existiu um Éden e que é possível resgatá-lo.

É fácil descartar o reacionário como um paranoico, um sujeito amedrontado que necessita crer em alguma conspiração para destruir o mundo e que sonha, portanto, com o retorno a um tempo idealizado. Mas muitas vezes seu sentimento, ainda que exacerbado, aponta para problemas reais da era moderna. A degradação de valores morais, por exemplo, é um fato, assim como a questão do multiculturalismo ameaçando a soberania nacional. O ponto é que o reacionário não apenas reage a tais aspectos; ele exagera tanto no perigo que o futuro nos guarda, quanto nas vantagens desse período anterior romantizado. E é aí que o tiro sai pela culatra.

João Pereira Coutinho, resenhando o mesmo livro de Lilla em sua coluna na Folha, concluiu: “O conservadorismo é uma ideologia de imperfeição humana, não de arrogância epistemológica. É uma ideologia que procura preservar o que é válido no presente recorrendo aos instrumentos tangíveis desse presente – e não a fantasias sobre o passado.” Em 2014, resenhando justamente um livro de Coutinho sobre o conservadorismo, escrevi em minha coluna no Globo:

Para começo de conversa, o conservadorismo é reativo, ou seja, ele nasce para combater ameaças revolucionárias provenientes de utopias paridas por pensadores que amam a abstrata Humanidade, mas não se importam muito com o próximo. Burke escreveu suas clássicas reflexões justamente para reagir à Revolução Francesa, e fez alertas antes de ela descambar para o sangrento terror de Robespierre.

Ao preferir o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o conservador tende a ser cético com mudanças muito radicais, especialmente aquelas derivadas de utopias, com propostas para uma “solução final” para os complexos problemas da vida em sociedade.

Mas não são apenas os revolucionários que representam uma ameaça. Os reacionários são igualmente perigosos. São “revolucionários do avesso”, que desdenham da mesma forma do presente e sonham com uma utopia, só que existente no passado idealizado e romantizado.

Tanto os revolucionários como os reacionários acreditam em um mundo harmonioso, estático, “onde os homens, porque dotados de uma natureza fixa e inalterável, desejam necessariamente as mesmas coisas”. Ambos demonstram desprezo pela realidade e acabam se mostrando intolerantes, dispostos a meios condenáveis para atingir seu sonho de perfeição.

Isso não quer dizer, naturalmente, que o conservador será contrário a qualquer mudança. Ele apenas adota postura mais prudente, assume conduta mais moderada, respeitando as tradições que sobreviveram aos “testes do tempo”. Ele será favorável a reformas que possam ajudar no processo de evolução continuada da sociedade, mas sempre levando em conta nossas limitações e imperfeições. Isso exige maior cautela e humildade, assim como respeito aos aspectos circunstanciais do momento.

Os “engenheiros sociais”, que pretendem remodelar nossas almas, criar um mundo novo do zero ou regressar a um inexistente, terão no conservadorismo um obstáculo. Tendo o homem um intelecto limitado, o conservador irá alertar para as consequências não planejadas ou intencionais, reforçando sempre aquilo que nós não conhecemos. Prudência é a palavra-chave aqui.

“Um conservador entende que a realidade é sempre mais complexa, e mais diversa, que a simplificação apaziguadora das cartilhas ideológicas”, escreve Coutinho. Alguns valores básicos, ou “primários”, terão de ser sempre respeitados, se quisermos preservar a civilização. Mas, fora isso, deverá haver tolerância e respeito para com a diversidade. Os “progressistas” falam em pluralidade, mas se mostram, na prática, os mais intolerantes com divergências; os conservadores praticam a verdadeira tolerância, dentro dos limites necessários para a sobrevivência da própria civilização e da tolerância.

Respeitar tradições, o legado dos que vieram antes de nós, e também se preocupar em preservar e deixar um legado positivo para os que ainda virão, tudo isso é parte da mentalidade conservadora, que reconhece que somos parte dessa “herança coletiva”. O estadista jamais irá encarar a sociedade como uma tela em branco na qual pode pintar o que lhe aprouver. Terá responsabilidade por saber que fazemos parte de um processo interminável e que devemos respeito aos mortos e aos que estão para nascer.

Por fim, nem todos os conservadores admiram a “sociedade comercial”, juntando-se aos esquerdistas nos ataques ao capitalismo. Coutinho busca em Thatcher, e no próprio Burke, uma visão alternativa, que reconcilia o conservadorismo com o livre mercado, uma “ordem espontânea” que preserva as liberdades individuais. A defesa conservadora do capitalismo é mais ética do que utilitarista: precisamos respeitar as escolhas dos indivíduos, possíveis apenas em um ambiente de trocas voluntárias.

O conservador pode estar preocupado com o andamento da sociedade, com os excessos da era moderna, mas ele olha para frente, busca, com cautela, resgatar valores morais eventualmente perdidos para contribuir com o avanço da humanidade. Ele quer a evolução, mas sem cortar completamente o elo com o passado. Ele quer construir em cima de um arcabouço e um padrão existentes. Já o reacionário quer regressar a um tempo perdido, que ele idealiza, e lá permanecer, imóvel. Seria algo como a pulsão de morte de que falava Freud, o retorno ao útero materno, a situação de conforto alienado por não ter mais de enfrentar a realidade imperfeita do mundo.

E, para tanto, ele está disposto a adotar métodos muito semelhantes aos dos revolucionários utópicos, pois enxerga no indivíduo apenas um meio para seus “nobres” fins. Por isso tantos reacionários são autoritários, desonestos, atacam as democracias liberais com o mesmo ódio dos socialistas. Inclusive muitos vieram do socialismo. Saíram da extrema esquerda para a extrema direita sem parar no liberalismo ou mesmo no conservadorismo. São muitas vezes como os inimigos que dizem odiar, mas de sinal trocado. Tiveram um “despertar” e por isso abandonaram o radicalismo de esquerda, mas mantiveram os métodos, a essência totalitária. Precisam destruir o inimigo, ou seja, aquilo que os seduziu antes. São apenas anticomunistas, mas não pró-liberdade. Bruno Garschagen, num texto publicado na Gazeta do Povo, comentou sobre esses jacobinos da “nova direita”:

Por terem despertado para a política num momento de turbilhão de salitre e breu petista (obrigado, William Blake), os antissocialistas foram treinados pela própria esquerda. Por isso, reagem reproduzindo vocabulário, comportamentos, maneirismos, insultos e a mentalidade daqueles que acusam de serem inimigos. E posicionam-se contrários a qualquer tema que a esquerda converta em pauta. Se o socialista é favorável, o antissocialista é contra. Um exemplo? Cuidar do meio ambiente é tolice porque coisa de esquerdista.

Os antissocialistas insurgem-se contra os socialistas como opositores úteis, como contrários que se complementam. Há, de fato, aquilo que René Girard definiu como desejo mimético (desejo de imitação). Na ânsia de conquistar os espaços de poder hoje ocupados pelos inimigos, colaboram para instaurar a rivalidade e a violência que dizem combater. Não defendo que se combata com flores quem usa tanques de guerra, com carinho quem agride. Defendo que a reação seja vigorosa e virtuosa – sem um vício de origem que a macule. É, sim, possível, só que exige mais labor e inteligência.

O próprio mote do “nós contra eles”, bordão de dissociação extraído do texto “A Nossa Moral e a Deles”, de Leon Trotski, foi estabelecido na discussão política pelo PT desde o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva e depois assimilado e transformado em hino de guerra pelos antissocialistas. Ambos os lados politizam a vida em sociedade, um por ideologia, outro por imitação, e pretendem purificar a sociedade dos adversários na busca por um mundo idealizado.

[…]

Quando os antissocialistas mimetizam a mentalidade e a ação política do inimigo, tornam-se o espelho da perfídia. Quando advogam a purificação do Brasil do socialismo usando os mesmos instrumentos dos socialistas, reduzem a virtude do combate necessário à estatura moral e ideológica de seus oponentes. Convertem-se, assim, nos novos milenaristas, nos jacobinos da “nova direita”.

Os métodos importam. Os liberais e os conservadores compartilham de um princípio comum: os seus fins não justificam quaisquer meios. Seria a morte do que defendem, do próprio liberalismo ou do conservadorismo, se as práticas adotadas fossem similares às de seus adversários. Hayek, em O caminho da servidão, apontou para essa semelhança de espírito entre os diferentes grupos totalitários, todos eles com o inimigo comum: o liberal clássico. Diz o austríaco:

É verdade que na Alemanha, antes de 1933, e na Itália, antes de 1922, comunistas e nazistas ou fascistas entravam mais frequentemente em conflito entre si do que com os outros partidos. Disputavam o apoio de pessoas da mesma mentalidade e voltavam uns aos outros o ódio que se tem aos hereges. No entanto, seu modo de agir demonstrava quão semelhantes são, de fato. Para ambos, o verdadeiro inimigo, o homem com o qual nada tinham em comum e ao qual não poderiam esperar convencer, era o liberal da velha escola. Enquanto o nazista para o comunista, o comunista para o nazista, e para ambos o socialista, são recrutas em potencial, terreno propício à sua pregação – embora se tenham deixado levar por falsos profetas – eles sabem que é impossível qualquer tipo de entendimento com os que realmente acreditam na liberdade individual.

Os aspectos fundamentais da ideologia nazista não diferem daqueles geralmente aceitos pelas demais ideologias estatizantes e coletivistas. O controle da economia deve ser estatal. O lucro é visto com enorme desdém. O planejamento centralizado é uma panaceia para os males econômicos. As importações são encaradas como uma invasão estrangeira negativa. O individualismo deve ser duramente combatido em prol do coletivismo.

Eis o arcabouço ideológico que possibilitou a conquista do poder pelos nazistas, que derrubaram os concorrentes estatizantes porque estavam dispostos a defender até as últimas consequências essa mentalidade. Os pilares do nacional-socialismo foram erguidos sobre a mentalidade estatizante da época. A idolatria ao Estado e a desconfiança em relação ao livre comércio sustentaram os dogmas nazistas. Nem liberais nem conservadores legítimos aceitaram ou aceitariam compactuar com isso. Já muitos reacionários foram seduzidos por Hitler, como no caso famoso de Carl Schmitt.

O liberal clássico entende que a liberdade não sobrevive num vácuo de valores morais, e por isso se afasta dos libertários radicais, podendo se aproximar dos conservadores. Mas o resgate de valores morais não pode ser sinônimo de moralismo puritano imposto pelo Estado, em nome de uma sociedade “perfeita”. O desconforto com certas tendências e modismos da era moderna é natural e justificável, mas isso não pode se transformar em ódio à modernidade e idealização do passado. As tecnologias geram rupturas comportamentais que nem sempre serão positivas, mas nem por isso devemos atacar o progresso material.

O liberal, em suma, pode flertar com o conservadorismo, especialmente se entender que as circunstâncias atuais clamam por um regresso em certas medidas, por uma reação saudável aos exageros modernos, já que o pêndulo extrapolou mesmo. Mas ele deve manter uma razoável distância do reacionarismo, pois este é certamente inimigo da liberdade e do progresso que o liberalismo traz.

E todos aqueles que se imaginam na era medieval, desejando o retorno no tempo, não só se esquecem de todo o conforto e da saúde que só o capitalismo liberal fornece na era moderna, como se imaginam nobres cavaleiros ou senhores feudais, nunca o pobre plebeu faminto e miserável. Assim é fácil…

Rodrigo Constantino

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