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A direita precisa parar de cantar sob a partitura da esquerda: o cuidado com as pautas e as palavras
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O simples uso de uma palavra – “empoderamento” – pelo pré-candidato a presidente do Partido Novo, João Amoedo, gerou muita confusão e debate nos meios liberais e conservadores. Mas será que é um caso realmente banal e desimportante? Ou será que ele representa um sintoma grave – o aprisionamento de boa parte da dita direita no universo criado e controlado pela esquerda?

Conversando com um amigo mineiro advogado e liberal, ele puxou da cartola uma excelente metáfora: a direita segue cantando sob a partitura da esquerda. Usamos as palavras que os esquerdistas criam ou distorcem, e insistimos nas pautas que só interessam a esses “progressistas”. Tudo casca de banana!

Quem realmente quer falar em “empoderamento” feminino, ou banheiro trans, ou ideologia de gênero, num país com 13 milhões de desempregados, mais de 60 mil assassinatos por ano, metade da população sem saneamento básico e por aí vai?

Mas como a esquerda controla boa parte da mídia, acaba impondo essa pauta que só é do interesse do Projaquistão, da GNT People, e não do povo de carne e osso, do trabalhador comum, do seu José e da dona Maria. Estamos fazendo o jogo dos esquerdistas ao não sermos capazes de romper com esses grilhões em forma de palavras e pautas.

Dou tanta importância às palavras que, em Esquerda Caviar, incluí um grande capítulo só sobre isso, mostrando o duplipensar esquerdista, a manipulação que fazem de conceitos importantes, o que por si só já afeta nosso raciocínio e debates. Segue o capítulo na íntegra, para deixar mais clara a mensagem de que precisamos reagir e evitar a partitura imposta pela esquerda:

Antes de mergulhar nas bandeiras politicamente corretas da esquerda caviar e em seus ícones, faz-se necessário explicar um pouco melhor a estratégia de obliteração da linguagem de que se vale. Não há socialismo moderno sem uma “novilíngua” orwelliana.

Confúcio teria feito um alerta importante: “Quando as palavras perdem seu significado, as pessoas perdem sua liberdade”. O uso adequado das palavras é essencial para a compreensão da realidade. Sem isso, entramos em um pântano perigoso. Se o que é dito não tem sentido claro, então o cinismo acaba corroendo tudo.

A linguagem “serve para que os homens se entendam e se aproximem”, escreveu Mário Vargas Llosa. Por isso mesmo, aqueles que desejam inviabilizar o pensamento límpido costumam escolher como principal alvo os conceitos das palavras. Os manipuladores deturpam a linguagem para lançar uma nuvem de poeira no raciocínio de suas vítimas.         

Em sua clássica distopia 1984, George Orwell chamou de duplipensar a “capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas”. O objetivo das autoridades seria a destruição do pensamento independente: “O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força.

Para Orwell, uma linguagem com regras aceitas e mutuamente compreendidas era condição indispensável a uma democracia aberta. Karl Popper era outro que defendia como um dever de todo intelectual “o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa”. E foi além: “Quem não pode falar de modo simples e claro deve calar-se e continuar trabalhando até que possa fazê-lo”.

Para Isaiah Berlin, a meta da filosofia é sempre “ajudar os homens na compreensão de si mesmos e assim operar na claridade, e não loucamente, no escuro”. Em seu livro A força das ideias, Berlin resume:

Uma retórica pretensiosa, uma obscuridade ou imprecisão deliberada ou compulsiva, uma arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes ou desorientadoras a teorias científicas ou filosóficas (na melhor das hipóteses) mal compreendidas ou a nomes famosos, é um expediente antigo, mas no presente particularmente predominante, para ocultar a pobreza de pensamento ou a confusão, e às vezes perigosamente próximo da vigarice.           

Muitos intelectuais da esquerda caviar tentam criar a impressão de profundidade, mesmo quando dizem algo mais raso que um pires. A Escola de Frankfurt ora vem à mente. Karl Popper, em O mito do contexto, chega a analisar trechos desses pensadores obscuros, e conclui sobre um deles:

É por razões deste teor que acho tão difícil discutir qualquer problema sério com o professor Habernas. Tenho certeza de que é perfeitamente sincero. Mas penso que não sabe como colocar as coisas de modo simples, claro e modesto, em vez de um modo impressionante. A maior parte do que diz parece-me trivial. O resto parece-me errado.

Outro Karl, o Kraus, também atacou esse tipo de postura: “Uma aparência de profundidade surge com frequência pelo fato de uma cabeça rasa ser ao mesmo tempo uma cabeça confusa”. Alguém aí pensou em Gilberto Gil? Roger Scruton, em The Uses of Pessimism, bate no mesmo ponto, mostrando como isso pode ser também uma tática deliberada:

Professores de ciências humanas aprenderam com seus mentores franceses que há uma forma de escrever que sempre será considerada “profunda”, contanto que ela seja (a) subversiva e (b) ininteligível. Enquanto um texto puder ser lido, de alguma forma, contra o status quo da cultura e da sociedade ocidentais, minando a sua pretensão de autoridade ou verdade, não importa que ele seja sem sentido. Pelo contrário, isso é apenas uma prova de que o seu argumento opera em um nível de profundidade que faz com que ele seja imune às críticas.

Alan Sokal adotou uma estratégia para desmascarar vários desses intelectuais. Mandou para uma famosa revista um artigo com título complexo, e trechos bem obscuros. Seu texto não só foi aceito, como gerou bastante reação positiva. Qual não foi a surpresa geral quando o autor confessou tratar-se de um emaranhado de frases soltas e sem sentido?

Sokal aprofundou então o tema em seu livro Imposturas intelectuais, que, segundo o próprio autor, “trata da mistificação, da linguagem deliberadamente obscura, dos pensamentos confusos e do emprego incorreto dos conceitos científicos”. São desmontadas certas táticas, como o uso de terminologia científica ou pseudocientífica sem dar a atenção ao seu real significado, ou a ostentação de erudição superficial, que recorre a termos técnicos fora de contexto, para impressionar.

A deturpação dos termos também costuma ser uma típica estratégia da esquerda caviar. Várias palavras importantes perderam seu significado com o tempo. Democracia é um bom exemplo. Basta lembrar que as ditaduras socialistas se diziam “repúblicas democráticas”, ou que, para o ex-presidente Lula, havia “excesso de democracia” na Venezuela de Chávez.

O cineasta Cacá Diegues, ilustre membro de nossa esquerda caviar, escreveu em sua coluna do jornal O Globo, logo após a morte de Chávez: “Nenhum caudilho populista, apenas inescrupuloso ou demente, se interessaria tanto por seu povo, sobretudo pelos mais pobres. Nem seria tão amado por ele, como Chávez foi”.

Ora bolas, com tantos bilhões de petrodólares usados para comprar as massas, é claro que os mais pobres iriam retribuir esse “amor”. Na verdade, é uma reverência religiosa digna de um santo! Só não podemos chamar isso de democracia republicana, tampouco atribuir o fenômeno ao interesse genuíno do caudilho pelo povo.

Claro que democracia não pode ser a simples tirania de uma maioria manipulada. Pressupõe certas instituições sólidas, pesos e contrapesos, limites ao poder do próprio governo. A mais básica dessas instituições é a liberdade de imprensa, tão ameaçada atualmente. O “controle social” almejado por alguns não passa de um disfarce para a velha censura.

Outro conceito bastante deturpado é justamente o de “social”, termo vago que acabou perdendo totalmente seu sentido objetivo. “Social” passou a ser uma palavra mágica, que cria automaticamente uma finalidade desejável. Por isso é uma das palavras mais repetidas pela esquerda caviar.

Qualquer meio para esse “nobre” fim passa a ser justificável. “Tudo pelo social!”, clamam os autointitulados “progressistas”, que no fundo lutam sempre contra o verdadeiro progresso, fruto do capitalismo liberal que abominam.

Hayek chegou a realizar um estudo com várias expressões terminadas em “social”. Sua conclusão foi a de que o termo se tornou extremamente confuso, servindo mais para prejudicar a compreensão do que para elucidar. Função social da propriedade? Responsabilidade social? Economia social?

Quando alguém fala em “movimentos sociais”, por exemplo, o que isso quer dizer na prática? Em inúmeros casos, tais movimentos abusam das leis e praticam atos violentos. O MST invade propriedades privadas, alegando lutar pela “justiça social” contra o “imperialismo ianque” (e depois os invasores lancham no McDonald’s, porque ninguém é de ferro). Basta usar a palavra mágica que todo tipo de crime parece liberado.

Se os tiranos de esquerda abusam do termo democracia, tentam, por outro lado, associar a liberdade de mercado à ditadura. Vivemos sob uma “ditadura do mercado”, anacronismo total, já que mercado é justamente poder escolher entre diferentes alternativas.

Eis que o consumidor, que possui infindáveis bandas de música para selecionar, inúmeros canais de televisão ou diversas marcas de cerveja para escolher, vive, segundo a esquerda caviar, em uma “ditadura”, pois é “forçado” a consumir produtos americanos. Na verdade, tratam-se de opções voluntárias mesmo, para desespero dos autoritários que adorariam impor suas preferências.

No Brasil, o PT, adorado por muitos da esquerda caviar, é mestre na adoção de um novo dicionário revolucionário. Até chegou a distribuir uma cartilha com o “linguajar correto”. É assim que os crimes mais abjetos de seus membros viram apenas “malfeitos”, fatos relevantes contra o partido expostos pela mídia viram “factóides”, toda a imprensa independente que resta vira “golpista”, aqueles que defendem o império das leis viram “moralistas udenistas”, baderneiros e vândalos viram “ativistas”, e por aí vai.           

Outro exemplo de mau uso da linguagem recai sobre o termo “contribuinte”, eufemismo que se refere aos pagadores de impostos. Como já diz o nome, imposto não é voluntário. Não somos felizes contribuintes que entregamos rindo quase a metade de nossa renda ao governo. Pagamos impostos porque aceitamos que o estado é um “mal necessário”.

A esquerda caviar pode tentar nos convencer de que pagar quase a metade do que ganhamos é comprar “cidadania”, mas veremos que eles, na prática, não parecem valorizar tanto assim essa ideia. Sempre que podem, lutam para reduzir seus impostos, ou até mesmo para receber polpudas verbas estatais, obtidas dos nossos impostos.

Os americanos usam a expressão correta tax payer (pagador de impostos). Eles falam também “fazer dinheiro”, e não “ganhar dinheiro”, como nós. “Ganhar” dá a entender que o salário é um presente, um maná, uma espécie de direito divino, e não a contraparte de uma troca voluntária entre patrão e empregado.

Palavras fazem diferença. Alguém poderia escrever um tratado inteiro só sobre o uso de uma palavrinha no jornalismo moderno, ligando isso à novilíngua orwelliana e a todas as mudanças que isso acarretou na imprensa. Trata-se do termo “suspeito”. Entendo a cautela dos jornalistas, a importância da presunção de inocência, do devido processo legal. Mas existem casos chocantes, como o de um ataque a um policial ocorrido em Londres em maio de 2013.

O sujeito fotografado e estampado nos jornais era o assassino confesso, estava com a arma do crime numa mão, com o sangue da vítima escorrendo da outra, gravou um vídeo explicando os motivos do assassinato, mas os jornais utilizaram “suspeito” para descrevê-lo! Talvez o fato de ser negro e muçulmano tenha contribuído para o excesso de cautela. É por essas e outras que o petista com dólares na cueca é “suspeito” de corrupção, José Dirceu é “suspeito” de ter comandado um ataque à democracia e eu sou um “suspeito” defensor do liberalismo!

Tal como “suspeito”, a palavra “suposto” costuma servir ao mesmo interesse, o de suspender qualquer julgamento, especialmente quando para proteger uma visão de esquerda. Um cético solipsista poderia demandar a seguinte manchete: “O suposto assassino da suposta organização terrorista do suposto Islã, supostamente esfaqueou o suposto policial londrino, supostamente morto”.

Os eufemismos para “proteger” as minorias também são marca registrada da esquerda caviar. A nossa época parece tomada por essa mania de apelar a eufemismos para não magoar almas sensíveis. A terminologia politicamente correta está bastante associada ao tema dessa obra, e uma boa definição encontra-se no livro The Cynic’s Dictionary, de Rick Bayan:

Eufemismos inadvertidamente hilariantes criados e impostos por comitês de acadêmicos sem senso de humor, tendo como propósito não ofender nenhum grupo social, a não ser o dos que acreditam em liberdade de expressão.

Os baixinhos como eu, do alto de meus incríveis 1,70m, devem ser chamados agora de “verticalmente prejudicados”. Caberiam até cotas, pois há estatísticas mostrando que os mais altos ganham mais, na média. Os negros são afrodescendentes, mesmo que descendam de um holandês que há tempos não encontra mais um parente africano em sua árvore genealógica.

Eis mais um bom exemplo: o filme As sessões, já citado, retrata a vida real de uma “terapeuta sexual”, papel de Helen Hunt, que ajuda uma vítima de pólio a vencer barreiras emocionais até conseguir fazer sexo. Uma história linda e comovente, sem dúvida. Há apenas um detalhe: a “terapeuta”, que deu entrevista afirmando ter feito sexo com mais de novecentos clientes (e que até se casou com um deles), não se considera uma prostituta (aliás, o termo politicamente correto é “profissional do sexo”, para não ofender os mais sensíveis).

Caberia perguntar: quando foi que a mulher que cobra para fazer sexo deixou de ser chamada de puta? Ora bolas! Trata-se da “profissão” mais antiga do mundo, e eis que agora recebe uma embalagem nobre? Eu devia estar dormindo quando isso ocorreu, pois não consigo ver diferença.

O leitor discorda? Então, sugiro um teste: se sua filha fosse uma terapeuta, estaria tudo bem para você? E se ela fosse uma prostituta? A coisa já complicou, certo? Agora responda: em qual dessas duas “profissões” você acha que a “terapeuta sexual”, que recebe dinheiro em troca de sexo, enquadra-se melhor? Pois é.

Não podemos ser “preconceituosos”, porém. Prostituição é “apenas” um ofício como outro qualquer, desde que a minha filha fique bem longe disso. A esquerda caviar adora pregar uma coisa e fazer outra. Na família dos outros é refresco. E no bairro também!

Quando surgiram boatos de que um puteiro, digo, uma casa de massagem abriria no Leblon, o metro quadrado mais caro do Brasil e uma espécie de habitat natural da esquerda caviar, os moradores logo se mobilizaram para impedir a empreitada. Prostituição, sim, é coisa linda, mas não no meu quintal, cara-pálida!

Palavras e expressões fazem diferença na cultura de um povo. Mas mesmo os americanos não ficaram livres das manipulações de conceitos. A esquerda lá foi tão eficiente que usurpou até mesmo o termo “liberal”, que passou a ser associado a políticas claramente antiliberais, que pregam sempre maior intervenção estatal na vida dos indivíduos.

O líder do Partido Socialista americano, Norman M. Thomas, em um discurso de campanha em 1948, declarou que o povo americano jamais adotaria o sistema socialista de forma consciente. Mas, sob o nome “liberalismo”, encamparia cada fragmento do programa socialista até que um dia a nação seria socialista sem saber como aconteceu. Quando vemos que Obama se diz um “liberal”, temos de reconhecer a capacidade profética do líder socialista.

No Brasil, o termo perdeu totalmente seu sentido, e nossos males sempre foram jogados na conta do tal “neoliberalismo”. Porém, como disse Roberto Campos, o “Brasil está tão distante do liberalismo – novo ou velho – como o planeta Terra da constelação da Ursa Maior!” Só mesmo no Brasil que um partido de esquerda como o PSDB pode ser rotulado de neoliberal.

Recentemente, talvez por perceber os ventos de mudança e o declínio da esquerda, chamuscada pelo desgaste no poder, parte da imprensa começou a tentar criar no país a mesma dicotomia entre liberal e conservador existente nos Estados Unidos. A Folha, quando fez uma reportagem sobre uma pesquisa que mostrava que o brasileiro é conservador, colocou a bandeira do desarmamento como coisa de liberal. Não! Desarmar inocentes não é uma bandeira liberal, até porque os liberais respeitam o direito individual de legítima defesa.

Mas a esquerda caviar adora rótulos sem sentido. Enquanto posa de moderada, costuma atacar seus oponentes como “extremistas”. O primeiro passo daqueles que pretendem confundir os indivíduos com seus vagos termos é jogar tudo no mesmo saco, chamando o conjunto todo de “extremismo” e pregando um “caminho do meio”. A técnica é conhecida.

Se alguém escutar uma pessoa afirmando ser igualmente contrária à peste bubônica, ao estupro e aos sermões de sua sogra, não restará dúvida de que o objeto do seu verdadeiro ódio seja a sogra, e eliminá-la parecerá o real objetivo de sua colocação. Afinal, não seria razoável considerar como males iguais as três coisas, por mais chato que fosse o sermão da sogra.

Da mesma maneira, quando alguém repete que condena igualmente o comunismo, o nazismo e o capitalismo, não resta dúvida de que o alvo verdadeiro seja o capitalismo. O comunismo carrega nas costas algo como 100 milhões de defuntos, enquanto o nazismo tantos outros milhões. Ambos são totalitários, depositam no estado todo o poder, partem para fins coletivistas, transformando os indivíduos em meios sacrificáveis, e incitam o ódio do preconceito, seja de classe ou de raça.

Em outras palavras, tanto o comunismo como o nazismo, similares em inúmeros aspectos, são absolutamente opostos ao capitalismo liberal, que prega a liberdade individual, entendendo que cada indivíduo é um fim em si. Enquanto o comunismo e o nazismo trouxeram apenas desgraça, miséria, terror e morte, o capitalismo trouxe o progresso para os povos e retirou centenas de milhões da pobreza, o estado natural da humanidade.

Mas os “moderados” jogam tudo no mesmo saco, sem separar o joio do trigo, e alegam que são “neutros” ou isentos de ideologias, com o único intuito de obliterar o verdadeiro significado do termo “capitalismo” e manchá-lo com as más companhias. A tática deu certo, claro, pois vemos que os capitalistas morrem de medo de serem acusados de radicais só por defender o capitalismo, infinitamente superior aos demais. Ayn Rand tentou reagir a esse perigo: “A melhor prova do colapso de um movimento intelectual é o dia em que ele não tem nada mais a oferecer como um ideal último além da demanda por moderação”.

A esquerda caviar adora posar de “neutra”, de pragmática, como se somente os outros fossem ideológicos. O esquerdista alega que não há imparcialidade nos debates, assumindo que somente ele é imparcial. Como diz Jonah Goldberg em The Tyranny of Clichés, em alguns momentos o extremo estará 100% correto enquanto a posição centrista estará 100% errada. Até porque é preciso saber: centro em relação a quais extremos? Será que é bom ser centro entre a estupidez e a inteligência? Ou centro entre a canalhice e a integridade?

Alguém realmente acha, ainda mais agora, com o benefício do retrospecto, que a posição neutra na Guerra Fria era a mais adequada? Ficar equidistante entre URSS e Estados Unidos não era a postura correta. Claro que defender o lado americano, mesmo com seus defeitos, era defender o lado certo, o da liberdade e da democracia contra a tirania soviética. O professor de história em Yale, John Lewis Gaddis, em História da guerra fria, resume:

Ambas as ideologias que definiam aqueles dois mundos se destinavam a oferecer esperança: para isto, antes de mais nada, serve uma ideologia. Uma delas, no entanto, para funcionar veio a depender da instalação do medo. A outra não precisava deste recurso. Neste ponto está a assimetria ideológica fundamental da Guerra Fria.

Não é por acaso que o lado que precisou erguer um muro para impedir a saída do próprio povo foi o comunista (o outro, quando ergue muros, é apenas para impedir a entrada ilegal de imigrantes). A esquerda caviar, contudo, não aceita essa obviedade.

Renato Janine Ribeiro, por exemplo, em artigo no Valor, disse: “Há questões, como o confronto liberalismo-socialismo, que não são assunto de certo ou errado, mas de preferência”. Só se for de preferência entre 100 milhões de mortes e prosperidade com liberdade. Mas, para o intelectual, é tudo apenas questão de preferência, como escolher entre azul e amarelo. Quem ousaria falar em certo ou errado nessas questões? Só um radical, não é mesmo?

A estratégia pérfida dos relativistas é partir de um fato – todos os sistemas são imperfeitos – para concluir que não podemos, então, separar o joio do trigo. Besteira! Meu vizinho pode não ser perfeito, pode mentir para sua esposa, mas isso não faz dele um estuprador de crianças. Enxergar equivalência moral entre socialismo e capitalismo é simplesmente absurdo.

Para Jonah Goldberg, o “pragmatismo”, ele mesmo uma filosofia, acaba sendo um disfarce que os progressistas usam quando querem demonizar ideologias concorrentes. Todo progressista gosta de se vender como racional e pragmático, alguém acima dos debates ideológicos, livre da dicotomia entre esquerda e direita. Curiosamente, os que alegam não ter ideologia sempre são os mais ideológicos, e sempre em defesa de mais intervenção estatal. Em seu excelente livro Fascismo de esquerda, Goldberg explica em detalhes o malabarismo:

A ameaça peculiar representada pelas atuais religiões políticas de esquerda está, precisamente, em sua afirmação de que são livres de dogma. Em vez disso, professam ser campeãs da liberdade e do pragmatismo – que, a seu ver, são bens autoevidentes. Elas evitam preocupações “ideológicas”. Portanto, tornam impossível discutir suas ideias mais básicas e extremamente difícil expor as tentações totalitárias que residem em seus corações. Elas têm um dogma, mas o consideram fora de discussão. Em vez disso, nos forçam a argumentar com suas intenções, seus motivos, seus sentimentos.

Os esquerdistas estão certos porque “se preocupam”, ponto final. Transformam “compaixão” na palavra de ordem da política. Tornando paixão e ativismo medidas de virtude política e fazendo os motivos parecerem mais importantes que os fatos, a esquerda colocou a oposição refém de seu discurso. Além disso, em uma brilhante manobra retórica, conseguiram isso, em grande parte, sustentando que seus oponentes é que são os fascistas.

Uma palavra adorada pela esquerda caviar é tolerância. Gostam de acusar aqueles que não compartilham de sua postura negligente ou favorável a ideologias assassinas, como o comunismo, de “intolerantes”. O radical passa a ser então, numa espantosa inversão de valores, o anticomunista.

Note bem: se abomina abertamente o regime que trucidou dezenas de milhões de inocentes, você é “intolerante” e se acha o “dono da verdade”. Não são Stalin e seus acólitos os intolerantes, mas você, por apontar as coisas como são, colocando os pingos nos “is”, sem a covardia típica da esquerda caviar.

Como dizia Popper: “Não devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os intolerantes, se não corremos o risco de destruição de nós próprios e da própria atitude de tolerância”. Como tolerar pessoas que preferem mata-lo a rebater seus argumentos? Será que os “tolerantes” da esquerda caviar pensam que devemos tolerar os nazistas também, porque ninguém é “dono da verdade”?

A esquerda, aliás, gosta de acusar a direita capitalista de “nazista”, invertendo completamente os fatos. O nacional-socialismo tinha um programa coletivista com vários pontos em comum com a esquerda. Hitler estudou Marx e apreciava seus métodos, além de se considerar o grande realizador do marxismo.

Os nazistas e os bolcheviques chegaram a fechar um acordo de cooperação em 1939, o pacto Molotov-Ribbentrop. Eram parceiros até Hitler resolver rasgar o acordo. Ambos disputavam o mesmo tipo de alma. Seu ódio mútuo, posterior, pode ser explicado pelo “narcisismo das pequenas diferenças”, como diria Freud.

Enquanto o pacto entre Stalin e Hitler durou, as ordens para os comunistas do mundo todo, sob a tutela de Moscou, eram para não atacar os nazistas. Nos Estados Unidos, o Partido Comunista (CPUSA) tinha ordens expressas para poupar Hitler de ataques. Eles inclusive estimularam diversas campanhas pacifistas contra o seu governo, fazendo ataques histéricos aos alegados interesses petrolíferos de Rockfeller na subida de tom do governo Roosevelt.

Somente depois que Hitler ignorou o pacto e invadiu a Polônia foi que a propaganda antinazista começou, assim como a campanha pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra. O grupo American Peace Mobilization, que tinha o apoio financeiro de Fred Vanderbilt Field, até mudou de nome para American People’s Mobilization, preservando a sigla, mas alterando completamente seu significado. Os comunistas americanos tinham em Stalin sua prioridade, e não os interesses de seu próprio país.

O programa do Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialista que levou Hitler ao poder deixa claro as similaridades com o socialismo. Defendia, por exemplo, a “obrigação do governo de prover aos cidadãos oportunidades adequadas de emprego e vida”. Alertava que “as atividades dos indivíduos não podem se chocar com os interesses da comunidade, devendo ficar limitadas e confinadas ao objetivo do bem geral”. Demandava o “fim do poder dos interesses financeiros”, assim como a “divisão dos lucros pelas grandes empresas”.

Também pregava uma “reforma agrária para que os pobres tivessem terra para plantar”. Combatia o “espírito materialista” e afirmava ser possível uma recuperação do povo “somente através da colocação do bem comum à frente do bem individual”. Em um discurso proferido no dia do trabalho em 1927, Hitler disse:

Nós somos socialistas, nós somos inimigos do sistema econômico capitalista atual de exploração dos economicamente fracos, com seus salários injustos, com sua ultrajante avaliação de um ser humano de acordo com sua riqueza e propriedade ao invés de responsabilidade e comportamento, e nós estamos determinados a destruir esse sistema custe o que custar.

Conforme escreveu Alain Besançon em A infelicidade do século, comparando comunistas e nazistas, “eles pretendem ser filantrópicos, pois querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heroicos”. Mas o que os aproxima mais é que “ambos se dão o direito – e mesmo o dever – de matar, e o fazem com métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história”. O autor conclui:

O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.

Disso eu tenho dúvidas. Quem ainda pode desconhecer, em pleno século XXI, as atrocidades comunistas? De modo a não restar desculpas, para quem quiser se aprofundar mais na realidade do comunismo e em suas semelhanças com o nazismo, recomendo fortemente o documentário The Soviet Story, de 2008. É um material de primeira.

A revista britânica The Economist fez a seguinte resenha do filme: “The Soviet Story é o mais poderoso antídoto atual para a reparação do passado. O filme é emocionante, audaz e rigoroso. […] O objetivo principal do filme é mostrar a estreita conexão – filosófica, política e organizacional – entre os regimes nazista e soviético”.

Mas nada disso importa. Basta atacar o comunismo, combater os pilares da esquerda radical, para ser logo tachado de “fascista” ou “nazista”, como se fascistas, nazistas e comunistas fossem tão diferentes assim na prática, e como se nazistas e capitalistas liberais tivessem alguma semelhança.

No final da década de 1940, um termo foi cunhado e atirado diretamente nas artérias culturais dos Estado Unidos: “macartismo”. Era um termo pejorativo, sugerindo algo muito ruim, mas sem uma definição precisa. O seu significado alegado era: “acusações injustas, perseguições a vítimas inocentes”. Seu real significado era: “anticomunismo”.

Não vem ao caso julgar as ações do senador McCarthy, de cujo sobrenome o termo se originou, mas apenas mostrar que o uso dessa vaga palavra servia para intimidar e silenciar os debates públicos. Qualquer pessoa que apontasse as atrocidades comunistas era logo rotulado de “macartista”, com o intuito de desqualificá-lo e, assim, ignorar seus argumentos.

O anti-anticomunismo sempre consistiu numa tática útil ao comunismo, e a esquerda caviar sempre foi usada como inocente útil para esse papel. Quem critica o comunismo é atacado pela esquerda, que se diz contrária ao regime, mas aberta ao diálogo com todos. A estratégia é rotular de radical o anticomunista, em vez de o próprio comunista. Acusar as atrocidades do comunismo passa a ser paranoia. Sartre chegou a afirmar, em 1952, que “todo anticomunista é um cão!”

O sarcasmo era uma arma importante nesse plano. “Comunistas vão aparecer embaixo da sua cama”, ou “comunistas comem criancinhas”, essas e outras frases serviam para desqualificar o anticomunista como alguém que acredita em alienígenas. Ocorre que até mesmo isso foi verdade! Ou seja, comunistas de fato comeram crianças, ou pior, forçaram outros a fazê-lo. Como relata O livro negro do comunismo:

P’eng P’ai aproveitou a circunstância para por em vigor um regime de “terror democrático”: o povo inteiro era convidado a assistir aos julgamentos públicos dos “contra-revolucionários”, quase que invariavelmente condenados à morte; participava das execuções, gritando “mata, mata” aos Guardas Vermelhos que tratavam de cortar a vitima pedaço a pedaço, que por vezes cozinhavam e comiam, ou obrigavam a família do supliciado – que, ainda vivo, assistia a tudo – a comer; todos eram convidados para os banquetes em que se partilhava o coração ou o fígado do antigo proprietário, e para os comícios onde o orador discursava diante de uma fileira de estacas cada uma enfeitada com uma cabeça recentemente cortada.

Um relato para colocar inveja em Hannibal, convenhamos. O canibalismo não foi restrito ao comunismo chinês; seria repetido no Camboja de Pol Pot depois. Ocorreram vários casos de canibalismo famélico também, entre a própria população desesperada por comida, pois o comunismo ou não era capaz de produzir alimentos ou seus líderes deliberadamente usavam a fome como estratégia de poder (Lênin foi o primeiro a fazer isso). Em Stálin: a corte do czar vermelho, Simon Sebag Montefiore relata alguns desses casos:

A 14 de abril de 1937, o procurador-geral Vichinski escreveu ao premiê para informar sobre uma série de casos de canibalismo em Cheliabinsk, nos Urais, em que uma mulher comeu uma criança de quatro meses, outra comeu uma de oito anos com seu filho de treze, enquanto outra ainda consumiu seu bebê de três meses.

Há vários relatos de canibalismo na Coreia do Norte, onde pais comem seus próprios filhos desesperados com a fome. Existem outros casos, mas, como esse livro não foi patrocinado pelo fabricante do Plasil ou do Engov, vou poupar o estômago do leitor. Basta resumir que o canibalismo floresceu sob regimes comunistas, seja por atos conscientes de seus líderes, seja por desespero da população.

Mas, claro, se trouxer isso à tona em uma conversa, mesmo depois da abertura dos arquivos escondidos atrás da Cortina de Ferro, você será acusado de paranoico ou mentiroso. O anticomunismo não pega bem. O termo ficou protegido por uma aura de bondade, mesmo depois de todo o rastro de sangue que deixou. Enquanto a suástica desperta fúria, corretamente, a foice e o martelo ainda são usados para simbolizar partidos políticos oficiais!

Países que já sofreram na pele com esse regime não querem mais saber de partidos ostentando tal ideologia. A Hungria, seguindo outros países do leste europeu, vetou símbolos nazistas e comunistas. Não há por que proibir a suástica e permitir a foice com o martelo. Ambos representam regimes assassinos, totalitários, antidemocráticos.

Espero ter deixado bem clara a estratégia perigosa de duplipensar usada pela esquerda caviar. Todo liberal deve valorizar a linguagem, de preferência da forma mais objetiva e compreensível. Para Irving Babbitt, “o sofista e o demagogo florescem numa atmosfera de definições vagas e imprecisas”. Mário Vargas Llosa pensa que “chamar novamente o pão de pão e o vinho de vinho é indispensável, entre outras coisas, para que a liberdade de expressão faça sentido”.

Se desejarmos ser livres, precisamos antes resgatar a linguagem de seu cativeiro atual. Caso contrário, continuaremos reféns dos demagogos de plantão, que falam em “liberdade” enquanto expandem cada vez mais os tentáculos do Leviatã estatal.

Espero, ao resgatar esse capítulo todo do meu livro, que os liberais aprendam a lição. Não dá para falar em “empoderamento”, como não podemos chamar de “ocupação” uma invasão de propriedade por um grupo criminoso, que jamais deveria ser chamado de “movimento social”. Usar a expressão “justiça social”, aliás, jamais! E por aí vai. Vejam esse excelente vídeo do PragerU sobre o assunto:

É preciso resgatar a clareza da linguagem, pois a sua manipulação deliberada tem sido uma das mais importantes táticas esquerdistas nas últimas décadas, com efeitos nefastos para a sociedade. A direita precisa começar a cantar de acordo com a sua própria partitura, em vez de deixar a esquerda como maestro.

Rodrigo Constantino

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