“Na teoria, não há diferença entre teoria e prática; na prática, há.” – Jan van de Snepscheut
O presidente Donald Trump fez um discurso de estadista nesta terça ao Congresso, mudando de tom e postura, mas sem abandonar a essência de sua mensagem patriótica. Ele foi eleito pelos americanos, para governar para os americanos, e por isso deve colocar os interesses americanos em primeiro lugar. Tudo certo até aqui para quem não aderiu ao discurso “globalista” da esquerda.
Mas surge uma questão legítima: como atingir tal objetivo? Quais os melhores meios para esse nobre fim? É aqui que divergências legítimas entre liberais clássicos e alguns conservadores nacionalistas começam. Será que o “Buy American” e o “Hire American” defendidos por Trump fazem mesmo sentido? Será que a distinção que ele faz entre “free trade”, que diz defender, e “fair trade”, que seria necessário para garantir o “free trade”, é pura semântica, ou esconderia uma retórica protecionista?
Um bom debate. Eu mesmo já escrevi na Gazeta do Povo que o protecionismo comercial é o calcanhar de Aquiles de Trump. Sou liberal, e não caio facilmente nessa de “comércio justo” em vez de “comércio livre”. Quem leu Adam Smith e Bastiat entende bem o perigo dessa confusão. Mesmo quando um governo de outro país adota práticas comerciais “desleais”, como subsídios, tarifas e manipulação na taxa de câmbio, isso não necessariamente é ruim para os consumidores do nosso país, e uma retaliação com medidas igualmente protecionistas do nosso lado pode muito bem piorar as coisas. Falo melhor disso num texto antigo com base em Bastiat:
Muitos alegam que o livre comércio tem que ser recíproco para ser benéfico. Bastiat afirma que pessoas com tal mentalidade são protecionistas em princípio, mesmo que não reconheçam, e são apenas mais inconsistentes que os protecionistas puros, que são por sua vez mais inconsistentes que os defensores da abolição completa de produtos estrangeiros. Para provar seu argumento, ele utiliza uma fábula de duas cidades, Stulta e Puera, que construíram uma grande estrada as conectando. Após o término da construção, Stulta teria reclamado que os produtos de Puera estavam inundando o seu mercado, e criou o cargo assalariado de encarregados pela obstrução do tráfego dos importados. Logo em seguida, Puera fez o mesmo, e o resultado era mutuamente perverso.
Até que um homem velho de Puera, suspeito até de receber pagamento secreto de Stulta, disse que os obstáculos criados por Stulta eram maléficos a Puera, o que era uma pena. E que os obstáculos criados pela própria Puera também eram maléficos, novamente uma pena. Completou que não havia nada que pudessem fazer quanto ao primeiro problema, mas que poderiam solucionar a outra parte, criada por eles mesmos. Houve forte reação, e o acusaram de sonhador, utópico e até “entreguista”. Alegaram que seria mais difícil ir que vir pela estrada, ou seja, exportar que importar. Isso colocaria Puera em desvantagem em relação à Stulta, como as cidades na beira dos rios estão em desvantagem frente às montanhosas, já que é mais complicado subir que descer.
Só que uma voz disse que as cidades na beira dos rios prosperaram mais que as montanhosas, causando alvoroço. No entanto, era um fato histórico! Infelizmente, para o povo de Puera, decidiram que tais cidades tinham prosperado contra as regras, e optaram pela manutenção dos obstáculos, em nome da “independência nacional” e da proteção da indústria doméstica contra a competição “selvagem”. E os consumidores continuaram sendo sacrificados para o benefício de alguns produtores privilegiados, como sempre ocorre nas medidas protecionistas.
Amigos meus liberais entendem bem essa lógica econômica. É o caso de Hélio Beltrão, que fez esse comentário após o discurso de Trump:
Fair trade? Este rotulozinho maroto para praticar protecionismo, ou melhor favoritismo ou destruicionismo, estilo Brasil (desde os cepalistas, por sinal)? Trump se inspira na política econômica de Abraham Lincoln, que sabemos que não era o seu forte. Se o Congresso Americano permitir esta insanidade, estará condenando os Estados Unidos à estagnação bem como condenando sua tradição de comércio ao lixo.
E Bernardo Santoro, ex-presidente do Instituto Liberal, que também ficou incomodado com essa parte da boa fala do presidente americano:
O discurso do Presidente Trump foi muito bom. Político e humano ao mesmo tempo. No entanto, uma coisa ainda me incomoda muito, e esse discurso avançou nessa agenda incômoda… Ele está criando uma narrativa onde a expressão “free trade” (livre-comércio) se torna adversária (ainda que não antagônica) da expressão “fair trade” (comércio justo ou equânime). Em vídeo famoso dos últimos dias, onde a Le Pen tritura a Merkel e o Hollande, ela usa um termo pior ainda, “protecionismo inteligente”, o que é basicamente uma expressão sem sentido, pois não existe inteligência no protecionismo. Fico muito preocupado em ver até onde o fair trade do Presidente Trump se afastará do free trade que, para mim, sempre será o único e verdadeiro comércio com equidade.
Dito isso, darei o benefício da dúvida a Trump. Primeiro, pois “compro” seu governo pelo pacote completo, pelo “big picture”, pelo que pode representar essa guinada à direita após oito anos de esquerdismo medíocre. O resgate da moral dos americanos, dos “espíritos animais”, por mais keynesiano que isso pareça (assim como outros aspectos de sua agenda, como o pesado investimento em infraestrutura), pode fazer algum sentido nesse momento.
Segundo, e como corolário disso, porque entendo que Trump não é um idiota, e que tem real simpatia pelo livre mercado, o que pode ser detectado em seus discursos, sua vida e seus livros. Logo, penso que ele esteja adotando deliberadamente esse viés mercantilista por uma questão bem concreta e conjuntural: ele quer enfraquecer a China no tabuleiro de poder mundial. Sua decisão é geopolítica muito mais do que econômica.
Para analisar isso, será preciso ir para além da economia. E eis o grande desafio: liberais tendem a priorizar a economia, mais do que a cultura ou a política. A famosa frase do assessor de Bill Clinton, “é a economia, estúpido!”, virou uma verdade inquestionável para muitos de nós. Mas será mesmo assim? Há vários momentos históricos importantes em que isso não foi verdade, em que grandes acontecimentos culturais ou políticos ajudaram a moldar – para o bem ou para o mal – o destino de nações. Economia definitivamente não é tudo.
E Trump decidiu comprar uma briga com o establishment global que representa os interesses das elites poderosas, não da população em geral. Vemos isso na questão ambiental, na questão da imprensa, no aspecto cultural das “minorias” e do politicamente correto, e na questão econômica também. O mundo de Davos é seu alvo, e os liberais sabem que faz tempo que essa turma deixou de defender realmente o livre comércio.
A China não pode ser tida como ícone do capitalismo e da globalização, pois ainda é dominada por um regime ditatorial comunista, com uma agenda claramente imperialista. Esse parece ser o alvo de Trump em sua fala de “fair trade”. Ou seja, ele pode muito bem saber que há um custo econômico a ser pago por essa visão mercantilista, mas mesmo assim está disposto a pagá-lo pelos benefícios intangíveis ou de longo prazo se for capaz de enfraquecer a China no jogo de poder global.
A América, que sem dúvida representa melhor os valores liberais, voltaria a ser o farol do mundo, a liderança inconteste no planeta, e isso seria bom. Ronald Reagan, não vamos esquecer, também adotou medidas criticadas pelos liberais, pois expandiram os gastos públicos, especialmente com segurança, como também quer fazer Trump. Mas como ignorar que isso teve total ligação com a queda do Muro de Berlim e do império soviético? E isso não foi fantástico?
Portanto, mesmo entendendo os riscos do discurso protecionista e mercantilista de Trump, estou disposto a apostar que o “homem laranja” sabe o que está fazendo, e que os resultados poderão ser muito bons, em linhas gerais. Go, Trump! Make America Great Again!
Rodrigo Constantino