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Montaigne, um espírito moderado
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Nesta quarta, o nascimento de Michel de Montaigne completou 485 anos. Já fiz uma singela homenagem aqui, com foco na educação, mas como a data foi amplamente ignorada, creio que mereça uma homenagem extra. E como quinta é dia de coluna de Contardo Calligaris na Folha, o advogado psi dos libertinos, que culpa São Paulo pelos milênios de repressão aos nossos prazeres mundanos (que, segundo ele, trariam felicidade se fossem liberados sem freios), nada melhor do que falar de moderação, um dos valores mais caros a Montaigne.

Ler seus Ensaios é mergulhar na mente de alguém que busca justamente essa moderação acima de tudo. Trata-se de um pensador equilibrado, comedido, humilde, cauteloso e prudente, que descarta os extremos e desconfia dos radicalismos. No caso dos apetites carnais e da própria filosofia, sua resposta é a moderação, e tinha em destaque uma frase justamente de São Paulo em sua biblioteca, como veremos em breve.

Mesmo na busca pela justiça ele preferia a prudência. Fiat justitia, pereat mundus: a famosa ideia de que se deve fazer justiça, mesmo que o mundo pereça, não teria em Montaigne um fervoroso advogado. Estou ciente da famosa frase de Barry Goldwater, o senador republicano que constatou: “Extremismo na defesa da liberdade não é vício; moderação na busca por justiça não é virtude”. A frase é boa, e faz algum sentido teórico. O problema é a prática, sempre a prática…

Imbuídos de uma certeza fanática, os que não permitem qualquer espaço para dúvidas, ignorando nossa falibilidade, representam um perigo para a própria liberdade e a justiça. Mesmo o grande Thomas Jefferson, que recomendava que tínhamos não só o direito, como a obrigação de desobedecer uma lei injusta, acabou apoiando a Revolução Francesa sangrenta, que guilhotinava em nome da justiça e da igualdade.

Com o passar dos anos, e com muita leitura (inclusive dos Ensaios de Montaigne), fui deixando meu lado mais revolucionário para trás, e me tornando um liberal mais prudente, moderado, conservador. Os excessos podem ser prejudiciais, mesmo quando estamos seguros de que agimos do lado certo, direito. Eles podem nos cegar para outras questões, para dilemas morais, para aspectos diferentes dentro da complexidade da vida.

Portanto, resgato aqui alguns trechos do capítulo em que Montaigne fala sobre moderação, para que sirva de reflexão a todos, especialmente aos meus colegas libertários mais radicais, que agem como se tivessem descoberto a pedra filosofal, movidos apenas pela Razão, e que pensam que a justiça ou a liberdade devem ser plenas “no matter what”, ou seja, mesmo que as chamas desabem do céu e destruam tudo, inclusive a justiça e a liberdade:

Como se tivéssemos o tato infectado, corrompemos com nossa manipulação as coisas que por si mesmas são belas e boas. Podemos apreender a virtude de forma que ela se tornará viciosa, se a abraçarmos com um desejo demasiadamente ávido e violento. Os que dizem que na virtude nunca há excesso, porque já não há virtude se o excesso ali está, jogam com as palavras: “O sábio deve receber o nome de insensato, o justo o de injusto se eles forem longe demais, mesmo em seus esforços para atingir a virtude”. (Horácio)

A esse ponto de vista se ajusta a voz divina: “Não sejais mais sábios do que é preciso, mas sede sobriamente sábios” (São Paulo, Epístola aos Romanos)

Aprecio as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para com o bem, se não me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la.

O arqueiro que ultrapassa o alvo falha tanto como aquele que não o atinge. E meus olhos se turvam ao erguer-se de súbito para uma forte luz assim como ao baixar-se para a sombra. Cálicles diz em Platão que o extremo da filosofia é prejudicial e aconselha a não internar-se nela além dos limites da utilidade; que observada com moderação ela é agradável e vantajosa, mas que em excesso torna o homem selvagem e vicioso, desdenhoso das religiões e leis comuns, inimigo das relações sociais, inimigo das voluptuosidades humanas, incapaz de qualquer administração política e de auxiliar a outrem e de auxiliar a si mesmo, próprio para ser impunemente esbofeteado. Ele diz a verdade, pois em seu excesso ela escraviza nossa liberdade natural e, por uma importuna sutileza, desvia-nos do caminho belo e plano que a natureza nos traçou.

Em suma, não há voluptuosidade tão legítima que seu excesso e intemperança não nos sejam censuráveis. Mas, falando em sã consciência, não é o homem um animal infeliz? Mal está em seu poder, por sua condição natural, desfrutar de um único prazer total e puro, e ainda se empenha em diminuí-lo pelo raciocínio; não é suficientemente desgraçado se com arte e estudo não aumenta sua miséria: “Utilizamos nossa arte para aumentar a miséria de nossa fortuna”. (Propércio)

Aqueles que preferem ignorar os alertas, mergulhar de olhos vendados nos prazeres imoderados sem qualquer freio, dar vazão a seus apetites como se não houvesse amanhã, endossar algum conceito dogmático de justiça ou liberdade que não permite qualquer concessão ou realismo -, aqueles, enfim, que adotam postura fanática de que é “tudo ou nada” e que não importam as consequências de seus atos, pois agem em nome da única liberdade verdadeira, miram no paraíso, mas acabam invariavelmente no inferno – ou produzindo o inferno para os outros.

A arte da prudência, o exercício da moderação, a virtude da temperança: essas são todas lições muito importantes que nós, liberais, podemos e devemos aprender com os conservadores de boa estirpe, para que nossa luta por justiça e liberdade não se torne um caminho para o inferno libertino ou o Terror engendrado pelos fanáticos puristas.

“Todo o problema do mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre tão certos de si, mas os mais sábios estão cheios de dúvidas”, disse Bertrand Russell. Uma ideia que fora abordada por Yeats também, quando disse que aos melhores falta toda convicção, enquanto os piores estão repletos de intensidade apaixonada. Ambos já tinham sido antecipados por Montaigne, séculos antes.

Rodrigo Constantino

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