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Nem Marx era marxista! Ou: Piketty defende o capitalismo de livre mercado?
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Marx

Reza a lenda que o próprio Marx desabafou que não era um marxista. Compreende-se: o barbudo, que passou a odiar o capitalismo por não conseguir produzir capital, defendeu ideias estapafúrdias, mas perto de seus seguidores mais fanáticos era um gênio!

O mesmo vale para Keynes. Em geral, considero suas crenças econômicas completamente equivocadas, mas nem dá para comparar o pensador britânico com aqueles que se dizem keynesianos atualmente. Paul Krugman mesmo faria Keynes ruborizar de vergonha, creio eu. O que dizer de nossos “keynesianos de quermesse” (expressão de Alexandre Schwartsman), defensores do desenvolvimentismo?

Foi justamente por conta desse risco que Hayek chegou a rejeitar a ideia de ter uma legião de seguidores “hayekianos”. E, justiça seja feita, o fenômeno não é exclusividade da esquerda mesmo. Vejo hoje muitos seguidores de Ludwig von Mises que representam ideias e posturas bastante antagônicas ao que defendeu o grande economista austríaco, um liberal convicto da importância tanto da democracia como do papel do estado em preservar a ordem e a propriedade.

O mundo das ideias tem dessas coisas. Somos responsáveis pelo que escrevemos, mas não temos como controlar o que vão fazer disso, que interpretação vão ter, e qual uso equivocado vão dar a nossas palavras, muitas vezes distorcidas. Marx era terrível, Keynes errou muito, mas ambos eram, sem dúvida, bem melhores do que aqueles que falaram em seu nome depois.

Tudo isso veio à mente após a leitura do artigo de Delfim Netto na Folha hoje. Com base na entrevista nas páginas amarelas da Veja desta semana, o economista defende que Thomas Piketty, o francês que virou sensação das esquerdas, não tem a ver com a imagem que essas esquerdas radicais fizeram dele. No fundo, como o homem deixa claro, ele seria um defensor do capitalismo de livre mercado:

As conclusões do livro de Piketty foram equivocadas e apressadamente apropriadas como mais um manifesto anticapitalista, o que não passa de uma imensa tolice. Ele disse na entrevista: “Eu acredito no capitalismo, no livre mercado e na propriedade privada, não apenas como origem de eficácia e crescimento, mas também como elemento de liberdade individual. Sou muito positivo com relação a isso. Mas vejo que há um risco se não mostrarmos que existem meios de repartir os ganhos da globalização de forma mais equilibrada. Para que o processo virtuoso do capitalismo continue, é preciso que todos se beneficiem. Caso contrário, surgem tentações como as que assombram a Europa de hoje”.

Será mesmo que Piketty é um capitalista liberal? Que Piketty não é um marxista ferrenho, como os marxistas tupiniquins o enxergam, não tenho dúvida. Mas confesso não comprar essa coisa de “sou capitalista, acredito no livre mercado, mas… quero apenas reformá-lo completamente, salvá-lo, impedir suas injustiças e, by the way, taxar em até 80% os mais ricos”. Papo para boi dormir. Até porque a mensagem que realmente fica de seu livro enorme, que quase ninguém vai ler, é justamente a proposta de mais impostos sobre os ricos.

Respeito quem crê que as desigualdades inerentes aos seres humanos, em qualquer regime econômico, possam representar uma ameaça à democracia e ao próprio capitalismo. Discordo, mas respeito, pois há alguma lógica nisso, partindo-se da premissa de que há, na natureza humana, a inveja em potencial.

Mas, em primeiro lugar, há que se ser sincero aqui: então a ideia é combater a desigualdade exacerbada não porque isso é o mais “justo”, e sim porque isso é, do ponto de vista pragmático, necessário para conter a inveja das massas, que colocaria em risco a democracia. Gosto de colocar os pingos nos is e falar em linguagem clara e objetiva, sempre.

Em segundo lugar, há controvérsias se isso é mesmo necessário e, caso seja, se o governo é capaz de realizar tal objetivo com suas intervenções. Normalmente, elas agravam as desigualdades, gerando privilégios, criando uma casta de burocratas e políticos poderosos, de “amigos do rei” favorecidos, etc. Além disso, alguns países bem mais desiguais, medido pelo índice de Gini, são mais livres e prósperos do que outros países menos desiguais. A desigualdade é mesmo tão relevante assim? Mas aceito que é um bom e legítimo debate democrático.

Às vezes, porém, ao fazer concessões demais aos inimigos do capitalismo, esses pensadores “capitalistas” acabam confundidos com marxistas, e dão respaldo às suas teses arcaicas. Ok, devemos evitar o radicalismo e o extremismo. Mas calma lá! Então propor imposto de 80% (oitenta por cento!) sobre os mais ricos não é algo… deveras radical?! Sei, o radicalismo rejeitado é sempre o dos liberais. O dos esquerdistas é chamado de “moderação”. Assim não dá!

Piketty pode não ser um marxista típico. Mas nós, defensores do capitalismo de livre mercado, não fazemos questão alguma de tê-lo entre nós. Podem ficar com ele, meus caros asseclas marxistas!

PS: Delfim Netto aproveita e ilustra um absurdo e revoltante caso de doutrinação ideológica em nossas escolas. É realmente chocante:

Por exemplo, como se define “capitalismo” nos exemplares do livro “Nova História Crítica”, 8ª série, 2007, distribuído pelo MEC nos anos de 2005/07, excluído da lista em 2008, depois de protestos no Congresso Nacional?

Nele, “Terras, minas e empresas são propriedade privada. As decisões econômicas são tomadas pela burguesia, que busca o lucro pessoal. Para ampliar as vendas no mercado consumidor, há um esforço em fazer produtos modernos”. E o socialismo? Nele “terras minas e empresas pertencem à coletividade. As decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando o bem-estar social. Os produtores são os próprios consumidores. Tudo é feito com honestidade (sic!) para agradar a toda a população. Não há riscos. As diferenças sociais são pequenas. Ampla liberdade democrática para os trabalhadores”.

Somos informados que na felicíssima URSS, onde havia abundância e apoio ao regime, este dissolveu-se em 1991 sob pressão “de uma intelligentsia (os profissionais com curso superior) que tinham inveja da próspera classe média que existia. Queriam ter dois ou três carros importados na garagem de um casarão. Frequentar bons restaurantes, comprar aparelhagens eletrônicas sofisticadas, roupas de marcas famosas, joias”.

Rodrigo Constantino

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