“Democracia deve ser algo mais que dois lobos e uma ovelha votando no que ter para o jantar.” (James Bovard)
O inglês Arthur Seldon foi um dos fundadores do Institute of Economic Affairs, “think tank” que contribuiu bastante para a divulgação das idéias liberais na Inglaterra. O esforço do instituto ajudou na mudança de mentalidade que possibilitou as bem sucedidas reformas da era Thatcher. Seldon estudou na London School of Economics, e foi bastante influenciado por Hayek, que foi seu professor. Em O Dilema da Democracia, Seldon expõe os problemas criados pelo excesso de governo na era democrática, concluindo que o governo “para”, “do” e “pelo” povo fracassou, necessitando de reformas urgentes. Seu foco é no caso inglês, mas os argumentos são válidos para qualquer país. A seguir veremos os principais pontos do autor.
Para Seldon, a autoridade política vem sufocando o processo de aprendizado do indivíduo devido ao excesso de governo. Esse aprendizado ocorre pela experiência ao se arriscar no que lhe é desconhecido, e para tanto se faz necessário o “Estado de direito”. Se este não garantir a liberdade para fugir do excesso de governo, o governo pelo povo, que é a essência da democracia, será exercido por outros meios. Em resumo, Seldon explica seu ponto: “Se a democracia não permitir livremente o uso de melhores alternativas fora do Estado, sua habilidade funcional e a autoridade moral para administrar o restante dos serviços públicos indispensáveis irão diminuir”. Nesse caso, a sociedade ficaria exposta à desordem, justamente o oposto da intenção na criação do Estado.
O livre mercado não pode funcionar se seu mecanismo essencial for reprimido, ou seja, se sua capacidade de oferecer uma variedade de condições for obstruída. O Estado tem sido cada vez mais ganancioso em suas demandas por uma grande parcela dos ganhos das pessoas, avançando sobre a liberdade individual de forma violenta. O erro que persiste, possibilitando ainda este tipo de abuso, é “a suposição de que os indivíduos escolhidos para serem servidores públicos foram transformados em benfeitores públicos”. Ou seja, a presunção de que os homens do setor público funcionam com base em motivações distintas dos demais, a premissa de que são especialmente sábios e reprimem seus próprios interesses, pensando apenas no benefício alheio. Essa falha de raciocínio permitiu o crescimento do governo, e a “interminável necessidade de aumentar a receita do Estado vem enfraquecendo a confiança e o respeito mútuo entre o governo e o povo, que é a base da democracia”.
Com o excesso de governo, as pessoas passam a buscar rotas de fuga, tentando respirar no ar rarefeito criado artificialmente pela asfixia estatal. A informalidade, todo tipo de sonegação de imposto, até mesmo o retorno do escambo, são meios usados para esta fuga. O risco para a democracia é de que ela perca o respeito da população, e isso está bastante evidente no caso da América Latina. Arthur Seldon coloca na redução progressiva do poder do governo na vida econômica diária a melhor esperança para evitar a desilusão total com a democracia. Ele chega a ser bastante objetivo em relação ao proposto: “A redução necessária na sua apropriação de renda nacional é dos atuais 40% para cerca de 20%”. Além disso, é preciso também impostos mais simples e regulamentação mais compreensível dos negócios. Não há como negar que a democracia acabou gerando uma excessiva interferência do governo nas liberdades individuais. Melhor seria reconhecer suas falhas e partir para as soluções.
Seldon reforça o alerta que muitos outros pensadores fizeram, de que a democracia pode acabar levando a uma tirania da maioria. Ele diz: “O fracasso da ‘democracia’ está evidente, principalmente no abuso do princípio da maioria”. O poder da maioria acaba sendo a fonte da regra arbitrária na democracia. Algumas pessoas são mais representadas que outras, ignorando o princípio de igualdade perante a lei. Grupos se organizam e conquistam privilégios do governo. Os produtores, mais poderosos e organizados que os consumidores, usam seus lobistas para obter subsídios e vários outros tipos de protecionismo, prejudicando os indivíduos enquanto consumidores e pagadores de impostos.
O livre mercado, ao contrário, permite que as pessoas expressem suas decisões diretamente e com mais poder do que na via política. Essa diferença entre o meio econômico e político fica mais clara quando Seldon afirma que a escolha do povo não é entre políticos santos e empresários pecadores, mas sim entre políticos que não podem ser facilmente desmascarados e empresários que se desmascaram uns aos outros e podem ser substituídos com uma perda administrável.
A ignorância a respeito do custo e do preço dos serviços públicos ofertados pelo governo prejudica muito uma análise mais objetiva por parte dos indivíduos. Muitos serviços aparecem disfarçados como “gratuitos”, enquanto nada daquilo que o governo pode dar cai do céu; tudo tem antes que ser tirado do próprio povo. Essa destruição do conhecimento sobre os preços reais induz à irresponsabilidade. Todos passam a demandar inúmeros serviços públicos ignorando seus verdadeiros custos, ou acreditando que outros irão arcar com eles. Fora isso, o pensamento político é inevitavelmente de curto prazo, atendendo ao mandato dos eleitos. O resultado é uma gastança cada vez mais irresponsável por parte do governo, jogando a fatura sempre para frente. Mas a conta precisa ser paga um dia, e isso se dá inexoravelmente à custa do povo.
Como não poderia deixar de ser, Seldon prega a descentralização do poder, além de sua drástica redução. Ele diz: “A forma de democracia que melhor reflete os desejos das pessoas descentraliza as decisões sempre que possível a favor de indivíduos ou grupos particulares”. Há que se ter em mente que os mercados são imperfeitos, já que trabalham com pessoas imperfeitas, mas que a “correção” do governo quase sempre piora a situação. Afinal, os membros do governo também são homens imperfeitos – talvez os mais imperfeitos de todos. A evidência histórica, segundo Seldon, “mostra que as imperfeições do governo estão mais enraizadas e são menos remediáveis do que as imperfeições do mercado”. Quem é brasileiro não pode duvidar disso.
Além disso, ocorre um efeito moral perverso pela usurpação da autoridade da família pelo Estado paternalista. Como exemplo, Seldon menciona que “a caridade coletiva politizada através de impostos diminuiu não só o instinto de caridade para socorrer os necessitados como também enfraqueceu a auto-ajuda financeira da família”. Seldon considera o veredicto da pesquisa histórica inevitável: “Foi o próprio Estado que criou a necessidade política do Estado de bem-estar”. A iniciativa privada foi inibida, e muitos passaram a achar que era necessário criar mais e mais “bem-estar” público. O Estado criou o pretexto para sua própria expansão, e agora seu fracasso ficou evidente. Basta questionar se nos países com pesado welfare state a dependência do Estado vem caindo ou aumentando. Não é por acaso que praticamente todos eles falam em reformas, eufemismo para evitar o termo mais direto, o fracasso.
Na conclusão do livro, Seldon demonstra otimismo em relação ao futuro, pois acredita que os mecanismos criados pelo mercado acabarão forçando a necessária redução do tamanho do Estado. Um dos exemplos mais empolgantes para o autor é o da Internet, que vem revolucionando o mundo e se mostrando uma grande adversária do gigantismo estatal. Seldon acaba prevendo, então, algo bem otimista: “O poder que resta ao governo vem a ser a capacidade dos políticos de reconhecerem o enfraquecimento de sua influência”. E diz mais: “Em breve o povo entenderá cada vez mais que o crescimento do Estado ao longo das décadas foi desnecessário”. Diante deste prognóstico, resta dizer somente uma palavra: Amém!
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.