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Al Pacino como Shylock e Jeremy Irons como Antonio
Al Pacino como Shylock e Jeremy Irons como Antonio| Foto:

O respeitado professor de Direito Constitucional Joaquim Falcão escreveu um texto fundamental hoje no GLOBO. Ele mete o dedo no vespeiro do momento: até onde vai o “devido processo legal” como pilar da segurança jurídica e quando ele se transforma em pretexto para impunidade?

Todo liberal clássico deve lutar pelo “império das leis”, justamente porque sabe dos riscos do arbítrio dos homens. O mesmo vale para conservadores. Mas o perigo é cair no extremo do “ultra-legalismo”, da letra da lei no detalhe, deixando de lado o espírito da lei. Entre o governo estrito da lei e o arbítrio do homem deve haver algum meio termo.

É um dilema, sem dúvida, pois sempre que se permite uma brecha há o risco de dela sair uma fissura grande o suficiente para romper com todo o arcabouço legal. Apelar para o bom senso como resposta não vai satisfazer os mais puristas. Eles querem algum critério objetivo, uma resposta única, absoluta. Mas ela não existe no mundo real.

Falcão usa um caso antigo de memória para fazer seu ponto: um traficante preso com cerca de 30 quilos de cocaína, e a alegação da defesa de que ocorrera alguma ofensa ao princípio de devido processo legal. In dubio pro reu. O traficante seria solto, o debate ocorria no Supremo. Até que um ministro perguntou: “E a cocaína?” O que fazer com aquela droga toda apreendida? Devolver ao traficante? Falcão diz:

A analogia é inevitável. O que fazer com a corrupção? Devolvê-la aos corruptos? O que se faz com as provas provadas? Com os dólares do apartamento do ex-ministro Geddel Vieira? Com a mala de dinheiro de Rocha Loures? Com as contas não declaradas da Suíça? Com ilícitos recursos já devolvidos? Com as confissões confessadas? Perícias confirmadas? A quem devolver? À sociedade?

Em uma conclusão que sempre me remete ao Mercador de Veneza de Shakespeare, Falcão diz: “O excesso do devido processo legal é uma doença. Inchaço. Patologia. É o processualismo”. Shylock tem direito à sua libra de carne de Antonio, está no contrato e lhe recusar isso seria trazer insegurança jurídica para o importante centro comercial. Detalhes, letra da lei. Ok, pode tirar então seu naco de carne, mas nada de deixar uma só gota de sangue cair, pois nada sobre sangue consta no contrato!

O que Shylock queria não era justiça, não era preservar o contrato, era vingança. Antonio oferecera bem mais do que devia segundo o contrato, mas nada removeu Shylock do seu obstinado desejo de cortar Antonio. No final ele acabou vítima do mesmo veneno: se vale estritamente o que está escrito e nada mais importa, então ele não pode executar o contrato, pois não pensou em todas as possibilidades.

Falcão explica: “Este processualismo tem efeito reverso. É como o muito receitar de antibióticos. O corpo cria defesas. De tantos incidentes processuais, a corrupção cria também defesas. Longe viver sem o devido processo legal e o pleno direito de defesa. Ao contrário. Mas seu inchaço não nos leva à saúde da democracia. […] Este processualismo não defende a sociedade. São rituais de impunidades e desigualdades judiciais”.

Com tantos ritos e regras, tantas esferas jurídicas e recursos, embargos e agravos, um verdadeiro labirinto é criado para garantir a impunidade dos ricos e poderosos, que podem pagar milhões a seus advogados tarimbados. Isso não é garantia do devido processo legal, mas esquema para proteger corruptos influentes.

Os “garantistas” fanáticos parecem mais preocupados com a vírgula da lei do que com seu espírito, e por mais que tentem posar de protetores do império das leis, estão no fundo protegendo bandidos de colarinho branco. É preciso tomar cuidado com os excessos. Eles normalmente matam o bom senso.

Rodrigo Constantino

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