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O impulso prometeico: engenharia genética e a arrogância humana
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Adoro ler livros que forçam uma reflexão profunda e balançam nossas convicções estabelecidas, mesmo que não concordemos com tudo. Assim são os livros de Michael Sandel, professor de filosofia em Harvard e na Sorbonne, em Paris.

Tanto Justiça como O que o dinheiro não compra são leituras que provocam nossa mente com questões instigantes e apresentam inúmeros argumentos contra e a favor de suas teses. Não poderia ser diferente com o livro Contra a perfeição, sua contribuição valorosa ao debate sobre a ética na era da engenharia genética.

As novas descobertas da genética levantam delicadas questões éticas, e Sandel lida com várias delas, sempre com muita honestidade intelectual ao levar em conta os pontos de vista contrários ao que defende.

Saímos da leitura com uma convicção fortalecida: aquele que tem uma resposta pronta e simples para tais temas complexos muito provavelmente está equivocado. Não seriam dilemas éticos se fosse o caso. O assunto exige, portanto, certa dose de humildade.

E preservar essa característica humana é um dos objetivos do autor, receoso justamente que a arrogância prometeica destrua nossa capacidade de aceitar o imprevisto e conviver com as diferenças. Os novos poderes conquistados nos tornariam mais próximos das máquinas?

Os avanços da ciência oferecem promessas de um lado e riscos do outro. Talvez a grande diferença entre o liberal e o conservador seja a postura de otimismo ou pessimismo diante de tais riscos. O futuro incerto perante tantas aberturas de novas possibilidades produz uma grande cautela naqueles com perfil mais conservador.

Para Sandel, as novas possibilidades de “melhoramento genético” podem nos levar a um mundo bastante diferente em que certas virtudes atuais se percam. Uma coisa é investir na busca da cura de certas doenças, outra, bem diferente, é tentar “programar” inúmeras características dos filhos ou modificar várias nossas mesmo, mexendo na memória, nos músculos, tudo de maneira artificial.

Nem sempre será fácil traçar uma linha divisória. Mas há claramente o risco de cada vez mais os pais gastarem fortunas para alterar características em filhos perfeitamente saudáveis, apenas para moldá-los mais de acordo com seus próprios desejos. Isso não é livre de efeitos morais na sociedade.

O filme de ficção Gattaca, de 1997, retrata um futuro sombrio no qual os pais rotineiramente testam embriões para determinar sexo, altura, inteligência e saúde dos filhos. Comentei rapidamente sobre ele aqui, quando questionava a eugenia e o hedonismo exacerbado do filósofo Peter Singer. Há algo de perturbador nessa prática hipotética de programarmos tanto nossos filhos. Mas o quê?

Para Sandel, parte da resposta estaria na perda da dignidade humana, da “diminuição da importância da pessoa melhorada no feito que ela realiza”. Esse não é o principal problema para o filósofo, entretanto. Mais relevante seria “a aspiração prometeica de remodelar a natureza, incluindo a natureza humana, para servir a nossos propósitos e satisfazer nossos desejos”.

É esse impulso ao domínio completo que tanto incomoda Sandel. Para ele, isso poderia destruir “a valorização do caráter de dádiva que existe nas potências e conquistas humanas”. Não é preciso aderir a uma metafísica religiosa para valorizar esse aspecto de nossas vidas, que nos impõe maior humildade diante dos imprevistos.

O autor usa alguns exemplos dos esportes e das artes para mostrar como tendemos a valorizar o mérito e o esforço humanos quando limitados pelos obstáculos naturais. O espírito esportivo se perde quando há auxílios exógenos que transformam por completo os dons naturais exigidos do atleta.

No limite, ninguém acharia graça ou reverenciaria um corredor que vencesse o Bolt usando patins com propulsão de foguete. A integridade do esporte estaria perdida. Apesar de uma região cinzenta do que pode ser considerado melhoramento artificial legítimo, o fato é que além de certo limite se deixa de honrar as excelências cruciais para o esporte e de recompensar as habilidades dos melhores jogadores.

Outro ponto importante para Sandel diz respeito ao amor incondicional aos nossos filhos, que estaria em xeque em um mundo onde tudo fosse programável. “Valorizar os filhos como dádivas é aceitá-los como são, e não vê-los como objetos projetados por nós, ou produtos de nossa vontade, ou instrumentos de nossa ambição”, diz.

Lutar e se esforçar para garantir o melhor ambiente e a melhor educação para os filhos é, sem dúvida, louvável. Mas quando o investimento na educação em prol do futuro dos filhos deixa de ser isso e passa a ser pura eugenia? Sandel crê que “o impulso de banir a contingência e dominar o mistério do nascimento apequena os pais projetistas e corrompe a experiência da paternidade enquanto prática social governada por preceitos de amor incondicional”.

Além disso, Sandel teme que a explosão da responsabilidade gerada pela possibilidade de cada pai “programar” seus filhos tende a diminuir nossa solidariedade para com os menos afortunados. Afinal, haveria menos espaço para o acaso nesse mundo, e pais com filhos com Síndrome de Down, por exemplo, seriam vistos (ou já são) como “culpados” por tal condição, uma vez que poderiam ter evitado esse destino.

O impulso prometeico talvez tenha sido fundamental para nos trazer até aqui, com evidentes conquistas contra os limites da natureza. A questão é se o pêndulo pode exagerar para o outro lado. Afinal, a sábia mitologia grega não oferece um destino feliz para Prometeu. Um pouco de cautela e humildade fariam bem aos homens arrogantes de hoje, que não enxergam nada entre suas vontades e suas ações, não aceitam certas limitações impostas pela natureza. Concluo com uma sugestão de Sandel:

Em vez de empregar nossos novos conhecimentos genéticos para endireitar “a madeira torta da humanidade”, deveríamos fazer o possível para criar arranjos políticos e sociais mais tolerantes com as dádivas e limitações dos seres humanos imperfeitos.

Rodrigo Constantino

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