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O poder transformador da liberdade de iniciativa
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Por Vinícius Montgomery de Miranda, publicado pelo Instituto Liberal

Há séculos, filósofos, pensadores, políticos e governantes discutem o conceito de liberdade e o papel do Estado como poder moderador da vida em sociedade. De forma geral, a filosofia classifica a liberdade como o poder de autonomia do ser humano. Ou seja, o direito de agir conforme a própria vontade, sem depender dos outros. Para o filósofo Baruck Espinoza, ser livre significa agir de acordo com sua própria natureza. Para Immanuel Kant, a liberdade é o livre-arbítrio, isto é, a capacidade de escolha regida pela vontade racional do ser humano. Portanto, a liberdade não deveria ser cerceada pela existência das leis positivas impostas pelo aparato estatal, mas somente pela ética e pela moral que balizam o comportamento humano. A questão é que essa liberdade quase completamente ilimitada, existente apenas na teoria do estado natural, poderia levar a convivência social ao caos, conforme descrito por Thomas Hobbes na “guerra de todos contra todos”.

Para John Locke, nesse estado natural, anterior à formação da sociedade civil, as pessoas seriam submetidas somente à lei da natureza. Assim, cada indivíduo seria juiz de seus próprios atos, limitados apenas pela sua consciência. Essa autonomia arbitrária é que geraria a necessidade de regras para organizar os interesses conflitantes das pessoas. Hobbes acreditava que, no estado natural, os homens possuiriam um poder de violência ilimitado para conquistar aquilo que fosse desejado. Portanto, seria necessário um contrato social para garantir a ordem. Nesse contrato, os indivíduos reconhecem a autoridade de um regime político (o Estado), que criaria um conjunto de regras a que todos ficariam igualmente submetidos. Ou seja, com a existência do Estado, os indivíduos abrem mão da liberdade plena do estado natural para alcançar os benefícios da ordem política – ordem esta fundamental para o desenvolvimento econômico, pois, sem a estabilidade institucional trazida pelo contrato social e a formação do Estado, não há disposição para os investimentos, que resultam na produção de bens e no consequente conforto material da sociedade.

O problema é que, hoje, em muitas sociedades, pela falta das condições mínimas de formação de um poder político estável ou por influência das teorias marxistas, o poder estatal ultrapassa a finalidade de garantir o cumprimento do contrato social. Ele acaba se tornando um instrumento de grupos de interesses, que por desejar manter o poder, sufocam a liberdade de iniciativa – essencial para a geração de riquezas. Assim, pode-se inferir que é perfeitamente verossímil a existência de um Estado, desde que seus poderes sejam limitados. Caso contrário, a organização política dessa sociedade se aproxima do despotismo, tão comum em diversos países não desenvolvidos, na atualidade. Por isso, para John Stuart Mill, o único propósito para o qual o poder estatal pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro da sociedade civilizada, contra a sua vontade, é para prevenir dano a outros. Sobre si próprio, sobre seu próprio corpo e pensamento, o indivíduo deve ser soberano. De forma semelhante, na filosofia política de Locke, a existência de um Estado e seu poder coercitivo só faz sentido se o governo for consentido pelos governados. Nesse caso, a autoridade constituída deve respeitar o direito natural do ser humano à vida, à liberdade e à propriedade. Qualquer ação estatal além do direito que lhe foi concedido – de aplicar a coerção em vista do bem comum –, em favor de interesses particulares, invalida a razão da existência do Estado. A tirania entra em cena e fica legitimado o direito de revolução de seus cidadãos.

Contudo, o equilíbrio entre o respeito ao direito natural de cada cidadão e a atuação estatal coerente com os princípios que norteiam sua existência não tem sido facilmente alcançado. O estado democrático de direito, que fundamenta a estabilidade e instiga o desenvolvimento econômico, só se faz presente nas nações cujos poderes estatais – executivo, legislativo e judiciário – são distintos e mutuamente limitados. A prevalência de qualquer desses poderes sobre os demais e a ação estatal que interfere em favor de grupos ou de agentes econômicos redunda em um ambiente institucional desfavorável aos negócios, e, portanto, compatível com a estagnação econômica. É exatamente por isso que o economista Milton Friedman afirma que não existe nenhuma política pública ou ação do governo que tenha tanto impacto positivo para o bem-estar de uma sociedade que a promoção da liberdade. Quando o Estado cresce além do necessário para exercer sua função de coesão social, ainda que seja com o utópico e inatingível propósito de garantir a igualdade entre os homens, a sociedade, gradualmente, começa a retroceder ao estágio da selvageria.

Murray Rothbard coloca com muita propriedade que o entusiasmo pela igualdade, próprio do pensamento marxista, é anti-humano, pois tende a reprimir o desenvolvimento da personalidade e da diversidade individual, indispensáveis ao surgimento do talento, do gênio, da variedade e do poder de raciocínio. Na atmosfera de coerção, típica das nações que usam o Estado para alcançar a igualdade a qualquer custo, nem a razão, nem a criatividade funcionam a contento. A simples observação da realização humana, sob seus diversos aspectos, permite confirmar a solidez desse pensamento de Rothbard. Por exemplo, é muito raro encontrar um caso sequer de talento nas ciências, nas artes, nos esportes, na música ou no desenvolvimento de produtos que tenha surgido em um país de governo totalitário. A ausência de liberdade gera tensões e preocupações que praticamente anulam a capacidade única do ser humano de modificar o ambiente à sua volta. Por outro lado, nos países livres do ambiente coercitivo, há uma variedade virtualmente infinita de interesses e talentos individuais que permitem o aumento da especialização e da divisão do trabalho, ingredientes básicos para a inovação, para o aumento da produtividade e para a multiplicação da prosperidade.

O leitor que tiver a oportunidade de assistir ao filme Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer, sobre a trajetória do astro do rock´n´roll, Freddie Mercury, e da banda Queen, poderá perceber como um ambiente de liberdade individual é capaz de transformar a realidade, gerar riqueza e multiplicá-la. Se o mesmo Mercury (Farrokh Bulsara), com seu talento extraordinário, estivesse na Tanzânia (país onde nasceu) ou em qualquer outro país onde a liberdade e a diversidade são restritas em nome da igualdade, muito provavelmente o mundo não teria conhecido seu enorme sucesso. Como Rothbard, muito propriamente, colocou, o credo da igualdade e uniformidade é um credo de morte e destruição. Torna estéril a engenhosidade humana. Limita o potencial produtivo de indivíduos e organizações. Rechaça a prosperidade. Não é à toa que países ricos em recursos naturais como Cuba e Venezuela definham, enquanto outros muito menos dotados dessa riqueza, como Hong Kong, Cingapura e Japão, propiciam um padrão de vida muito acima da média aos seus cidadãos.

Muitos se perguntam: qual o segredo desses países que conseguiram escapar da armadilha da renda média para se tornar desenvolvidos? No caso de Cingapura, o que explica tamanha riqueza são os mesmos fatores que motivaram a evolução de qualquer outra grande economia: segurança jurídica, respeito à propriedade privada, alta produtividade da mão de obra, baixa carga tributária, livre comércio, nenhuma restrição aos investimentos estrangeiros, pouca burocracia, estabilidade monetária, facilidade de empreender e uma legislação enxuta, confiável e estável. Ou seja, tudo o que a escola austríaca de economia tem estudado e recomendado há décadas, talvez séculos. Ainda assim, questões intrigantes permanecem no ar: se os fatores que permitem o salto econômico são tão conhecidos, por que muitas nações insistem em outro caminho? Por que até hoje o Brasil rejeita a aplicação da receita liberal?

A primeira batalha a vencer ocorre no campo das ideias. Não é fácil mudar uma cultura secular de dependência estatal. Ainda que a realidade mostre que todas as experiências de um Estado forte na condução das diretrizes econômicas de um país fracassaram, sempre há resistência quanto à mudança de direção. O corporativismo da burocracia estatal, por exemplo, impede qualquer plano de redução e de modificação da máquina do Estado que signifique maior eficiência. Por trás da defesa do direito adquirido repelem a implantação da meritocracia e da avaliação de desempenho que não seja pró-forma. O mesmo corporativismo impede um choque de credibilidade no judiciário, que continua, no mínimo, insensível à diferença de tratamento dispensado pela justiça ao réu comum e ao que tem foro privilegiado, ou ainda, àquele que consegue pagar bons advogados. Isso sem contar os arroubos do poder judiciário ao usurpar a função do poder legislativo e até reinterpretar a Constituição conforme lhe convém. Não surpreende, portanto, que o Brasil tenha uma posição ruim na classificação de efetividade da justiça quando comparado aos seus pares internacionais.

O fato é que todo aparato estatal tem uma tendência natural de se tornar incontrolável. Primeiro porque, por mais organizada e ativa que seja uma sociedade, ela não é páreo para a força corporativa do Estado que, no fundo, é que define as próprias regras de funcionamento e de sustentação econômica. Segundo porque a burocracia estatal não sente as dores do cidadão comum que é espoliado pelo Estado, na forma de tributação, sem sofrer concorrência de competidores mais eficientes, nem ser cobrado de forma direta pelo cidadão que o suporta. Como afirma Jeffery Tucker, o Estado, aqui e em qualquer lugar, sempre se intromete na atividade empreendedora com regulamentações intrusivas que impedem a competição e que esfriam o ímpeto de inovação. Ele estrangula a liberdade de parcerias e combinações sobre as quais não teria controle e com isso faz aumentar o custo da atividade produtiva, além de restringir o espectro de alternativas à mercê do consumidor final. Com tantos obstáculos e burocracias criados pelo Estado brasileiro, é natural que a produtividade da economia fique inerte por décadas. Sem dúvidas, todos perdem.

Outro problema causado pela hipertrofia do Estado brasileiro são suas relações promíscuas com os grupos empresariais. Esse capitalismo de compadrio que encontra eco no movimento globalista internacional injeta doses adicionais de coletivismo e centralismo no ambiente empresarial, ergue barreiras protecionistas, trava o mecanismo de destruição criativa e por fim, acaba por impor ao consumidor final produtos mais caros e obsoletos quando comparados aos acessíveis nos países de economia mais liberal. Tudo isso sem contar que aumenta sobremaneira a possibilidade de corrupção de agentes públicos, de desperdício e desvio de recursos escassos, além da acomodação e obsolescência da indústria nacional, que segue protegida do embate contra os competidores globais.

Para arrematar o elenco de problemas resultantes do Estado gigante, sem esgotá-los, não é possível lograr estabilidade monetária com uma máquina estatal perdulária. Superabundam exemplos de repartições, empresas públicas e estruturas de poder – câmaras municipais e estaduais, legislativo federal, tribunais, autarquias e outros – ineficientes, de estrutura suntuosa e com folhas salariais exorbitantes, mesmo se comparadas às dos países mais ricos do mundo. Portanto, mesmo com uma das maiores cargas tributárias do planeta e serviços de baixa qualidade entregues ao cidadão, o resultado fiscal fica muito aquém do equilíbrio necessário, drenando riquezas do setor produtivo. A máquina estatal encharcada de lideranças ideológicas, com mentalidade anticapitalista, quase sempre trabalha para expandir o escopo do poder público, sem se importar com a fatura espetada nas costas do cidadão. Logo, no Brasil, assim como em muitos países onde não se mantém uma vigilância persistente e vigorosa contra a expansão estatal, a liberdade é asfixiada, confirmando as palavras de Thomas Jefferson: “o curso da história mostra que quando o governo cresce, a liberdade diminui”. O detalhe é que não há registro de expansão da prosperidade onde a liberdade é refreada, o que significa que fica muito difícil alcançar o estágio de país desenvolvido com o Estado grande.

Dessa forma, é possível dizer que a janela de oportunidade que se abre ao país com o resultado das eleições de 2018, é singular. Talvez na história recente da República nunca tenha havido cenário tão favorável para limitar a ganância da máquina pública. A equipe ministerial, o staff da pasta econômica e a disposição presidencial, até aqui, apontam na direção correta de mais liberdade e menos Estado. A grande batalha, entretanto, será travada no Congresso Nacional, onde a Constituição pode ser reformada. Assim, é imprescindível que o novo governo saiba se comunicar corretamente com a sociedade, apontando as dificuldades no caminho e as barreiras a serem ultrapassadas. Se tudo correr bem, apesar da polarizaçãopolítica que isso costuma gerar; talvez daqui a alguns meses será possível dizer que o Brasil adentrou a antessala do grupo de países desenvolvidos.

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