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O problema do purismo maniqueísta é que não permite zonas cinzentas realistas: qualquer arranhão é uma rachadura fatal
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Como escrever textos realistas sobre corrupção no clima criado pelos excessos absurdos da era petista e o avanço esperançoso da Lava Jato? Qualquer tentativa de moderação no afã jacobino será vista como uma tentativa de passar a mão na cabeça de corruptos, de demonstrar conivência com bandidos. Ou você abraça in toto os justiceiros puristas, ou você está do lado deles, dos safados que roubam o povo todos os dias. “Não temos bandido preferido”, bradam os honestos, com razão. O risco é não fazer mais distinção entre crimes e abandonar completamente qualquer pragmatismo realista.

Tentei alertar várias vezes para o perigo dessa postura purista. Entendo, claro, sua evidente utilidade durante a campanha. Robespierre vai varrer a corrupção do mapa! Vassourinha mágica, caça aos marajás, tolerância zero com malfeitores. Até subir em caminhão de grevista e ali enxergar um George Washington libertador está valendo (mas não creio que hoje essa turma apoiasse nova greve dos caminhoneiros). Era hora de vender o peixe, e o peixe precisa ser uma barracuda afiada no combate aos bagres oportunistas, aos baiacus que ficam beliscando o erário em pequenas mordidas quase imperceptíveis.

Mas se há o dia do pombo, é importante lembrar que haverá o dia da estátua. Esse dia invariavelmente chega, especialmente para quem flerta com o poder. O poderoso sempre será vitrine. E eis o problema, meus caros: quem se vendeu como incorruptível não pode permitir qualquer arranhão nessa imagem, pois ele logo abriria uma cratera, uma rachadura potencialmente fatal. Se há apenas o preto e o branco, numa visão bem maniqueísta, não resta espaço para as zonas cinzentas, mais realistas.

E o grande mal que essa narrativa causa é justamente a mistura de todo tipo de malfeito e crime. Se só existem nós, os puros, e eles, os corruptos, então não há mais gradações entre os imperfeitos: um serial killer e um ladrão de galinhas são ambos “criminosos”, ou “corruptos”. Se, nesse contexto, você tentar mostrar que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa, diferente, você poderá ser confundido com um advogado de bandidos, com um defensor de criminosos, com um… cúmplice do serial killer!

É esse o pior legado da campanha purista e jacobina dos seguidores de Jair Bolsonaro. E agora, que há suspeitas de movimentação financeira duvidosa na família, como fica essa narrativa? Qual o impacto em toda a campanha de combate à corrupção, culminando na escolha do juiz Sergio Moro para liderar a missão, se ficar comprovado que motorista é, na verdade, laranja, e que o andar de cima se apropriava de parte do salário dos funcionários? Merval Pereira comenta o assunto em sua coluna de hoje:

À boca pequena sabe-se, sem que tenha sido investigado e comprovado ainda, que parlamentares de maneira geral, com raras exceções, e em todos os níveis de representação, costumam, e não é de hoje, cobrar um pedagio de seus funcionários.

Como os salários nesses casos são muito acima do mercado de trabalho – outra disfunção do Legislativo – os funcionários não se incomodam de dar uma parcela para quem os contrata. Mas é um procedimento completamente ilegal, como é ilegal a utilização de Caixa 2 para financiamento de campanhas eleitorais, mas todo mundo fazia, ou faz, como está revelando a Operação Lava-Jato. Inclusive o deputado Onix Lorenzonni, futuro Chefe do Gabinete Civil, que admitiu o uso de Caixa 2.

Nesse caso, a suspeita é que o motorista Fabricio servia de “laranja” para a família Bolsonaro, recebendo em sua conta a percentagem de cada um dos funcionários de Flávio. Este deveria ser um caso simples de ser desmentido.

Mas como até agora, passados vários dias da denúncia, o motorista não apareceu para dar uma explicação crível para tamanha movimentação financeira – R$ 600 mil recebidos e saídos de sua conta -, fica cada vez mais difícil acreditar que nada de errado tenha acontecido.

[…] Bolsonaro se elegeu, entre outras coisas, por apresentar-se como um combatente contra a corrupção. O convite a Moro para integrar seu ministério teve o sentido de reafirmar simbolicamente essa luta, e por isso foi aprovado pela opinião pública. Não se pode ser Catão com os outros sem ser Catão consigo mesmo. 

O futuro governo nem começou e já precisa lidar com esse potencial escândalo. E, conhecendo nossa esquerda e nossos jornalistas, isso será explorado até o limite, de forma um tanto exagerada, um “estardalhaço”, como definiu Onix Lorenzoni. O pior é que os safados vão usar isso, se feder mais, como prova de que “são todos iguais”, ou seja, aproveitando a inexistência do cinza que os próprios jacobinos puristas ajudaram a eliminar, vão comparar um esqueminha comum na política ao mensalão e petrolão do PT, que não diferem “apenas” em magnitude, mas também em essência.

Os tucanos eram corruptos? Na maioria dos casos, achamos que sim. Hoje mesmo a Polícia Federal faz apreensões na casa de Aécio Neves, suspeito de vários crimes. Mas o PSDB nunca teve o DNA autoritário e totalitário, ao contrário do PT. Quantos artigos tive que escrever, porém, para lembrar que jogar na mesma vala podre os dois partidos era um erro, pois poupava o PT de uma crítica bem mais relevante: sua natureza revolucionária criminosa que pretendia transformar o Brasil numa Venezuela? Vários bolsonaristas não curtiam tais artigos, tidos como frouxos no combate aos corruptos. Não aceitavam textos que elogiavam o governo razoável de Michel Temer também, pois, afinal, ele era “um deles”.

Talvez lembrem desses textos com mais simpatia agora. Vamos resgatar o cinza? Vamos reconhecer que certos malfeitos e determinados crimes graves não são equivalentes? Vamos abolir de vez a expectativa de encontrar incorruptíveis na política? Como o universo dos incorruptíveis é imaginário e, portanto, nulo, conclui-se que o universo dos corruptos abrange a totalidade dos homens. Exceto, naturalmente, os próprios incorruptíveis, ou aqueles que nisso acreditam. Esses costumam ser as verdadeiras ameaças, pelo tom fanático que, via de regra, acabará revelando o hipócrita.

A família Bolsonaro deve explicações. Não podemos compactuar com qualquer tipo de deslize, ainda mais de quem tanto se espera nessa seara. Mas será mais saudável para a democracia se deixarmos de lado a crença ingênua, alimentada pela própria campanha deles, de que temos no poder santos em busca da purificação plena do sistema podre. Mais realismo não fará mal a ninguém. Estourar essa bolha jacobina pode ser até algo positivo para o próximo governo.

Rodrigo Constantino

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