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É tema recorrente por aqui, eu sei, mas é que sua importância jamais pode ser subestimada. É o tema também, de certa forma, do meu Esquerda Caviar, dos livros excelentes de Theodore Dalrymple e de Coming Apart, de Charles Murray. É, ainda, o pilar filosófico do clássico O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aron, e a conclusão do magistral Os Intelectuais, de Paul Johnson. Falo da mania que parte da elite tem de, vivendo numa bolha, alienada e profundamente incomodada com a realidade, colocar as ideias acima das pessoas.

Para essa turma, são os fatos que precisam se adequar aos seus anseios ideológicos, e não o contrário. Eles precisam das utopias como um viciado precisa da droga. Foi exatamente a analogia que Luiz Felipe Pondé fez em sua coluna de hoje, tendo como pano de fundo a “Primavera Árabe” (alguém lembra dela?). As rebeliões na região encantaram os “especialistas”, mas poucos estavam dispostos a fazer análises frias e isentas, calcadas em fatos. Diz Pondé:

Recentemente, o mundo inteligentinho ficou estarrecido porque a maior parte dos egípcios está feliz com a ditadura do presidente Sissi. Esse comportamento da maioria dos egípcios parece uma heresia para muitos de nós, quando devia, na verdade, soar como a coisa mais normal do mundo.

Onde estão os “especialistas” que em 2011 afirmavam existir uma Primavera Árabe em curso? Foram acometidos pelo mesmo tipo de cegueira que acomete os religiosos fanáticos em geral: negam a realidade para afirmar um mundo que só existe nas suas cabeças e nos livros escritos em meio a queijos e vinhos.

E quando tudo que falaram não aconteceu, com a cara mais limpa do mundo, fingem que não disseram besteiras. Os profissionais da utopia de hoje são como gente que vende crack para os desgraçados.

As pessoas querem casa, comida e lazer. E dane-se o resto. A soberania popular, na sua intimidade invisível aos olhos de quem é cego, é exatamente essa. Se as pessoas conseguem andar na rua sem serem mortas (como estava acontecendo no Egito), elas fazem qualquer negócio. Minha tese é que aqueles que escreveram sobre “a utopia da Primavera Árabe” têm poucos compromissos com a vida real.

Acho que Pondé forçou a barra para fazer seu ponto ao afirmar que as pessoas querem casa, comida e lazer, e ponto. O homem deseja mais do que pão para sua vida. Mas entendo o recado, e com ele concordo: a imensa maioria do que a elite intelectual chama de “povo”, como se falasse em seu nome, não quer muito saber de questões metafísicas complexas ou de teorias bonitinhas sobre “vontade geral” e “soberania popular”, desde que tenha comida em casa e segurança.

A pauta dessa elite não poderia ser mais divergente do que aquela do povo. Enquanto um telespectador do GNT poderia jurar que legalizar drogas e aborto e praticar poliamor são as bandeiras mais importantes do mundo em nome da liberdade, o povo quer “apenas” melhores transportes, menos inflação e chegar em casa sem ser assaltado ou sem sua filha ser estuprada pelo traficante da comunidade. O “GNT people” fala aos seus, não ao povo de verdade.

É curioso contrastar a coluna de Pondé com o artigo de Jaime Pinsky, professor da Unicamp, publicado no mesmo jornal. Ele reclama da “morte” das utopias, que teria tornado o mundo mais consumista e inculto. E ataca as redes sociais e a tecnologia, como se fossem as culpadas por esse suposto estado lamentável da humanidade:

Já no século 21 as utopias parecem coisas de um passado remoto. Mesmo não gostando do mundo como está, parece que desistimos de mudá-lo. Vivemos ou em sociedades consumistas, ou burocráticas, ou fundamentalistas. Fingimos que a felicidade pode ser encontrada comprando mercadorias, obedecendo regras, ou acreditando em um improvável mundo pós-morte.

Jogamos no lixo milhares de anos de avanço civilizatório e nos transformamos em meros consumidores de softwares. Estamos perdendo a habilidade de ler textos complexos, nos conformamos com a pobreza da linguagem das redes sociais.

Em nome da interatividade sentimo-nos qualificados a ser banais. Sem leituras sérias abdicamos do patrimônio cultural da humanidade, arduamente construído ao longo de milênios.

Não precisamos sequer de um Grande Irmão para ordenar a queima de livros: queimamos nossas estantes, por inúteis. E nem as substituímos por livros digitais, já que vamos deixar o saber apenas para os criadores de software.

Ora, como alguém que “devora” ao menos cinco livros por mês, inclusive de literatura, não posso discordar do lamento pela falta de maior cultura geral apontada pelo autor. Mas pergunto: e quando foi diferente? Por acaso as “massas” antes se interessavam por literatura? Pinsky sabe que não, mas acredita que tudo apontava nessa direção, até que “algo” atrapalhou, talvez o capitalismo e seu filho bastardo, o consumismo. Será mesmo?

Arrisco dizer que, mesmo na era das redes sociais, nunca se leu tanta literatura como hoje. O problema é acreditar, como Trotsky, que todos poderiam ser ou seriam um Goethe da vida. Camponês pela manhã, filósofo de noite. Não funciona assim. Por mais que eu pense que o mundo poderia ser melhor se mais gente lesse bons livros em vez de ver novela e futebol (há controvérsias, pois o que conheço de “intelectuais” que leem muito, mas não passam de idiotas políticos ou aberrações morais não está no gibi), não posso ter a pretensão de encaixar a realidade em minha visão de mundo, o que seria elitista e até arrogante.

Eu posso muito bem compreender que as minhas prioridades não são as mesmas de alguém que mal consegue pagar as contas no fim do mês, que morre de medo de levar uma bala a cada dia que sai de casa, que enfrenta duas horas de transporte coletivo caótico, sofre na fila do SUS, precisa colocar o filho numa escola pública que vive em greve quando os “professores” não estão doutrinando ideologicamente os alunos, e ainda tem que engolir uma inflação de 10% com risco crescente de desemprego. Esse indivíduo dificilmente terá o novo livro de Vargas Llosa como uma prioridade na vida.

Por falar no escritor peruano, ele é o autor de uma frase que gosto muito, tanto que coloquei na epígrafe de Liberal com Orgulho, e que vem bem a calhar aqui: “Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos”. Exatamente. Uma postura humilde de quem reconhece que a sua visão ideal de mundo não necessariamente é a mesma do vizinho, e que rejeita o autoritarismo dos que desejam impor aos demais a sua utopia.

Para fechar, cito outro artigo publicado hoje, do autor de teatro Aderbal Freire-Filho. Ele defende a “fuga para o Uruguai”, não para Miami, como a maioria dos brasileiros prefere. Com isso, pretende ridicularizar justamente uma demanda do povo, da classe média, de todos que buscam oportunidades melhores de trabalho, segurança e um governo que funcione, em troca de uma visão que procura resgatar o esquerdismo dos fracassos bolivarianos. Como se o Uruguai fosse a esquerda que deu certo! O autor descreve sua “utopia”:

Quero morar no Centro, perto do bar Hispano, onde conversei muitas vezes sobre o maracanazo com o grande ator D. Alberto Candeau, que se fosse vivo, estaria com 105 anos. (“Morre você também, babaca.” Miltinho da Zezé.) E perto da Radio Centenária, para me lembrar de meu irmão Rubén Castillo, a voz que convocou para a grande manifestação pelo fim da ditadura, “a las cinco en punto de la tarde”. Quero ir andando até a Cidade Velha, com o cachecol que herdei de outro amigo centenário, o comunista Atahualpa del Cioppo.

Alguém como o Greg poderia acrescentar que fazer tudo isso fumando um baseado de maconha seria a perfeição. Mas para quem? Será que podemos mesmo comparar o Uruguai, que nem é tão de esquerda como nossos esquerdistas bolivarianos pensam ou gostariam, com Miami? Será que a vida média no pequeno Uruguai é parecida com a vida média na Flórida?

Claro que não. Mas não é isso que interessa aos esquerdistas utópicos da elite. Eles falam em nome do povo, mas não poderiam ter metas e objetivos mais distintos. Se há bons livros, vinhos e talvez marijuana para alguns, e a mulher pode tranquilamente abortar sua gravidez pois se arrependeu depois, então isso é visto como quase um paraíso para essa gente. Mas desde quando é esse o desejo do povo?

Os vendedores de utopias só ignoram esse detalhe: a demanda dos consumidores. Por isso costumam apreciar o autoritarismo: pois podem enfiar goela abaixo desses “alienados ignorantes” o que eles não sabem que precisam.

PS: Meu próximo livro, o primeiro de ficção, é justamente um alerta contra as utopias, e por isso se chama “Panaceia”. Aqueles que esperam encontrar “A Cura” para todos os males da vida em sociedade e colocam ideias à frente de pessoas causam um enorme estrago a essas pessoas de carne e osso.

Rodrigo Constantino

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