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Poder paralelo das milícias: um desafio aos libertários
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O GLOBO tem feito uma série de reportagens sobre o avanço do poder paralelo das milícias em várias comunidades cariocas. Hoje, o jornal mostra como os milicianos já controlam do transporte ao gás em diversas favelas do Rio:

As atividades ilegais praticadas por milícias que atuam em 368 localidades do estado não interferem apenas na rotina de moradores e pequenos comerciantes. Na segunda reportagem da série “O poder paralelo avança”, O GLOBO mostra hoje como os grupos paramilitares afetam concessionários de serviços públicos, em setores como transporte e abastecimento de gás. A primeira reportagem, publicada domingo, revelou que as quadrilhas já exercem seu poder em 36 dos 92 municípios fluminenses. Só na capital, são 51 bairros onde esses grupos atuam.

Na Zona Oeste, empresários do Consórcio Santa Cruz ameaçam desistir de operar 31 linhas de ônibus que atendem bairros da região. Elas se tornaram deficitárias devido à concorrência ilegal de Kombis e vans piratas, cujos donos são obrigados a pagar a milicianos taxas semanais de até R$ 200 para poder circular.

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O valor das taxas cobradas dos que operam o transporte alternativo ilegal é estipulado de acordo com a quantidade de viagens e passageiros.

Outro mercado disputado com violência é o comércio de botijões de gás. Nas comunidades controladas pelos milicianos, moradores são obrigados a comprar esses produtos apenas nos depósitos das quadrilhas. Prejuízo para os usuários e lucro para os criminosos, que vendem o bujão de 13 litros por até R$ 58, contra R$ 47 no mercado legal.

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Milicianos também exploram a venda de galões de água e a oferta de sinal clandestino de TV (gatonet). Eles monopolizam ainda o comércio de cestas básicas. Na Zona Oeste, por exemplo, duas empresas de fachada eram usadas por paramilitares para revenderem, por R$ 220, cestas que no mercado não passam de R$ 70 — o que garante uma margem de lucro de 214,2%.

Tudo isso suscita algumas questões interessantes. Em primeiro lugar, fortalece a velha máxima de que não existe vácuo de poder; ele logo é preenchido. Foi assim quando a União Soviética se desmontou, com máfias ocupando o espaço novo existente. Vários pensadores chegaram a defender a tese de que o próprio nascimento do estado teve na violência e na conquista sua origem.

Eis a tese que Franz Oppenheimer defende em seu livro The State. Essa tese encontra eco em diferentes autores, incluindo Nietzsche, que acreditava que o estado se origina na forma mais cruel de conquista. David Hume notou que muitos se submetem ao governo que se encontra já estabelecido no país onde vivem, sem pesquisar com muita curiosidade as origens de seu estabelecimento inicial.

Verdadeira ou não, a tese mostra como certas conquistas modernas são importantes para nossa liberdade, tais quais o estado democrático de direito e o império das leis. São mecanismos de pesos e contrapesos que tentam mitigar o poder arbitrário dos governantes. Onde não há estado de direito, resta o poder paralelo. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Um segundo ponto interessante nisso é a bandeira da legalização das drogas. Como liberal que já flertou com o libertarianismo, sou até simpático ao pleito, com várias ressalvas. Mas quando vemos milícias controlando o comércio de produtos legais, como gás, transporte e água, fica claro que o buraco é bem mais embaixo. Legalização não é panaceia – e pode até ser um tiro pela culatra.

Legalizar as drogas não resolveria nada nesse aspecto. Afinal, esses criminosos usam a coerção para controlar atividades que não são vetadas pela lei. Eles continuariam exercendo seu poder paralelo nesses locais, mesmo se a maconha, o crack e a cocaína fossem permitidos. São os “donos do pedaço”, representam justamente o papel do estado ali, criando as “leis”.

É verdade que os clientes não precisariam entrar nesses locais perigosos para comprar e consumir tais drogas, mas isso não faria com que as milícias perdessem seu poder nas comunidades. Esse poder vem do vácuo estatal, não da proibição das drogas.

No mais, resta questionar se gostaríamos de viver em uma sociedade na qual o crack fosse vendido como banana por aí. O argumento da liberdade individual é bonito, mas como Theodore Dalrymple mostra em seus livros, há claros limites para ele. Existe uma região cinzenta onde há conflito de valores e o pragmatismo deve prevalecer.

Falar simplesmente que a “guerra contra as drogas” fracassou é complicado, pois a “guerra contra os crimes” fracassou também, pela mesma ótica. E nem por isso vamos defender a retirada da polícia e do estado no combate aos assaltos, assassinatos e milícias.

As drogas são proibidas na grande maioria dos países desenvolvidos, e nem por isso eles vivem com o tipo de criminalidade e de poder paralelo que temos aqui no Brasil em geral, e no Rio em particular. Ou seja, existem outras prioridades antes de pensar nessas questões que os próprios países ricos não resolveram.

É preciso preencher o vácuo de poder com o estado de direito. É preciso ocupar as brechas que permitem o surgimento das milícias. Como liberal, desconfio do estado, tenho receio de seu poder, e luto bastante por seu limite de escopo. Mas não caio no romantismo utópico de que a solução é acabar com ele, pois sei que isso faria apenas surgir em seu lugar um monstro pior, com poder mais arbitrário ainda, sem freios.

O estado deve ter escopo de atuação bastante limitado, mas deve ser forte em suas funções precípuas. A dificuldade, claro, é conseguir isso na prática…

Rodrigo Constantino

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