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Por incrível que possa parecer, articulação política não é crime
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Por Luan Sperandio, publicado pelo Instituto Liberal

Quando Jair Bolsonaro disse, há alguns dias, que o governo já fez sua parte ao entregar o projeto da reforma da Previdência para o Congresso e que “a bola agora está com eles”, o presidente apenas confirmou todos os prognósticos acerca de sua incompetência em articulação política.

Independentemente dos motivos que contribuíram para a eleição de Bolsonaro — como o esfacelamento do PSDB, a estratégia eleitoral equivocada do PT e a tentativa de assassinato sofrida —, sua vitória foi uma façanha. Mesmo desprezando os recursos tradicionais de campanha (tempo de televisão, dinheiro, vastas coligações partidárias), ele foi bem sucedido. Dentro do governo, porém, ele é refém do próprio discurso equivocado que entoou por anos ao equiparar articulação política à corrupção.

Na medida em que essa narrativa serve de instrumento para defender a postura de um governo que se recusa a dialogar até com a própria base, prejudicando o andamento de reformas propostas por ele próprio, cabe explicar o que a articulação realmente significa.

Sabe-se que o processo legislativo é, formalmente, função do Congresso Nacional. Mas, na prática, ele se desenvolve por meio de uma dinâmica entre os poderes Legislativo e Executivo, especialmente quando um projeto é enviado pelo último.

Essa dinâmica não é simples e pode resultar em paralisia política caso o Executivo seja vencido sistematicamente em suas proposições. Isso porque sempre há i) a proposta do governo, ii) a posição do legislador mediano e iii) o status quo.

Quando o legislador mediano está mais próximo ao status quo do que à pretensão do Executivo, há um impasse e a aprovação tende a ser mais complexa. É o a que na Ciência Política dá-se o nome de “deadlock interval”.

Trata-se de um conflito cuja única forma de resolução são as negociações, o chamado “logrolling”. Ele pode se dar por acordos individuais, incluindo a troca de votos entre parlamentares de nichos distintos a fim de se apoiarem reciprocamente em diferentes propostas — e nada disso é ilícito.

A criminalização de toda articulação per se feita pela narrativa bolsonarista foi bem sucedida em função de diversos escândalos de corrupção ocorridos nos últimos anos, levados a público, mais notadamente, pela Lava Jato. O Escândalo do Mensalão, que consistia em desvio de dinheiro público para pagamento de propina a parlamentares em troca de apoio político e responsável por contribuir para a aprovação de diversos projetos do Executivo na Era Lula é o principal exemplo. No entanto, esse tipo de operação configura crime no ordenamento jurídico brasileiro, diferentemente de negociar em relação ao conteúdo de projetos.

Negociações existem porque é altamente improvável que todos os atores políticos estejam interessados por todos os projetos de lei da mesma forma: um deputado professor terá mais interesse em questões referentes ao ensino, enquanto um parlamentar ambientalista dará prioridade a pautas de preservação do meio ambiente, algo certamente natural em uma sociedade plural.

É exatamente por essa razão que o Executivo costuma enviar propostas com “gordura”: para negociar possíveis alterações às emendas que serão apresentadas. A reforma da Previdência, por exemplo, conta com proposições que parecem colocadas para haver concessões, como as mudanças no BPC e na contribuição dos trabalhadores rurais — questões com impacto orçamentário baixo e, por se tratarem de grupos mais vulneráveis socialmente, aprovações difíceis.

Todavia, isso somente faz sentido se houver lideranças dispostas a dialogar sobre o projeto a fim de conquistar maior apoio para a aprovação — e, até aqui, o governo Bolsonaro tem falhado com a reforma da Previdência.

Inicialmente, porque é necessário que Jair a defenda de forma mais enfática, como faz o Ministro da Economia Paulo Guedes. Seus 67 discursos contrários a reformar a Previdência enquanto deputado federal não ajudam, mas ele pode usá-los em seu favor ao explicar à população e a parlamentares ainda não convencidos o porquê dela ser essencial e sobre como mudou de ideia. O que ocorre, na verdade, é o contrário: o presidente constantemente dá declarações dúbias e vacilantes, admite não querer verdadeiramente a reforma e refere-se a “nós” quando fala de militares — explicitando seu apego à corporação e má vontade quanto ao combate a seus privilégios —, além de fazer alegações que destoam da equipe econômica e abrem as portas para desidratação da proposta, como dizer em entrevista que pode rever a medida de instituir uma idade mínima.

O Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode ajudar nesse processo, mas tem outras atribuições, como gerenciamento do governo. Já o Ministro da Secretaria de Governo Santos Cruz deveria assumir seu papel, mas parece não ter traquejo político algum: entre janeiro e fevereiro, o general registrou audiências com 32 parlamentares. Onyx, por outro lado, conversou com mais de 150.

A maioria dos parlamentares afirmam nem sequer conhecer Santos Cruz, exceto  por fotos. Nem o líder do PSDB na Câmara (Carlos Sampaio), nem o do MDB (Balela Rossi) o conhecem ainda, e não por falta de tempo: já passaram-se três meses desde o início do mandato.

A falta de articulação política ficou evidente quando as lideranças do PSL no Senado (Major Olímpio) e na Câmara dos Deputados (Delegado Waldir) criticaram duramente, na mesma semana, a reforma da Previdência. Isso denota que o governo Bolsonaro, até o momento, não foi capaz nem de convencer os líderes de seu próprio partido quanto ao ajuste, mas há quem feche os olhos para sua inaptidão com a falsa muleta do “articulação = corrupção”.

Conforme listou Thiago Aragão, colunista da Gazeta do Povo e sócio da consultoria Arko Advice, há diferentes métodos e ferramentas que o governo pode utilizar na negociação com o Congresso e que não têm relação alguma com ilegalidades. Assim, podem ser desejos de parlamentares:

  • a retirada de pautas que prejudiquem seus eleitores e/ou estado;
  • a inclusão de pautas que fortaleçam ou protejam seus eleitores e/ou estado;
  • o papel de articulação interna em seu partido;
  • ser porta-voz do tema em seu partido ou estado;
  • ter um canal direto de comunicação com o Executivo;
  • ter um projeto priorizado pelo governo e/ou um projeto de um oponente abandonado pelo governo;
  • assumir um papel de negociação frente ao partido;
  • encontrar apoio para algum projeto que compense o que ele perderá de apoio da base eleitoral ao apoiar o projeto governista.

Articulação, portanto, significa conhecer as particularidades de cada segmentação representada no Congresso, tais como as de um determinado grupo social, e buscar as melhores maneiras de atender suas demandas. Dessa forma, para obter maior coesão sobre o tema, o governo deve ampliar o diálogo com parlamentares, focando em defender enfaticamente as reformas necessárias, e não desviar o debate público para frivolidades.

O governo Bolsonaro precisa entender que seu sucesso (e a melhoria do Brasil) está nas mãos de aprovar rapidamente a reforma da Previdência. Após ser postergada por tanto tempo em virtude da atuação de grupos de interesses, é preciso quebrar o ciclo, ou sequer haverá meios de financiamento para a administração do país. E não é inteiramente verdade que o Executivo não esteja articulando: a eleição de Davi Alcolumbre para a presidência do Senado foi fruto de intensas negociações e envolvimento de integrantes do governo — sobretudo Onyx Lorenzoni. Já Paulo Guedes assumiu esta semana as articulações para a reforma da previdência.

Outra questão é que a força de Bolsonaro nas mídias sociais deve ser vista como um agente complementar, e não como substituta de articulações políticas. Além de serem coisas diferentes, trata-se de uma ferramenta com enorme matriz de risco, pois funciona somente em pautas com amplo apego popular e enquanto o governo é bem avaliado entre o eleitorado. É também mais efetiva em eventos específicos — como a eleição para presidente do Senado ou a votação para cassação do mandato de Eduardo Cunha.

Já a reforma da Previdência não é um jogo de mata-mata, mas sim um campeonato de pontos corridos: cada dia, cada tramitação, é relevante para que, ao final, a proposta não seja excessivamente desidratada, garantindo um resultado melhor.

Desconforto com articulação política é, muitas vezes, o sintoma de quem vê conflito entre seu idealismo individual e o realismo da política. E grande parte disso é desconhecimento sobre como de fato funciona o processo legislativo. Em outros países, como os Estados Unidos, as negociações são mais transparentes, divulgadas pela mídia e conhecidas pela opinião pública. No Brasil, em que houve apenas recentemente um despertar da população para a análise, compreensão e formação de opiniões sobre a política no dia a dia, faz parte do processo de aprendizagem. Ainda assim, criminalizar a articulação política é, para mais de um erro, cair no conto utópico de que é possível governar sem ela.

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