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Por que o doping nos incomoda tanto?
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Anderson Silva resgatou sua honra e dignidade com a vitória na última luta, pela qual embolsou US$ 200 mil além de outros US$ 600 mil só por lutar. Mas a euforia durou pouco. O lutador foi pego no teste de doping, e o uso que fez de esteroides produziu um misto de tristeza e indignação em seus pares e no público em geral. Por que o doping nos incomoda tanto?

Em Contra a perfeição, o professor de filosofia de Harvard, Michael Sandel, arrisca uma resposta. Para ele, o uso de anabolizantes, assim como modificações genéticas, “corrompem a competição esportiva enquanto atividade humana que honra o cultivo e a exibição de talentos naturais”. Ele desenvolve melhor seu ponto de vista:

O argumento mais comum contra drogas como esteroides é que elas prejudicam a saúde dos atletas. A segurança, porém, não é a única razão para se restringirem as drogas e técnicas voltadas para o aumento de desempenho. Mesmo melhoramentos que são seguros e acessíveis para todos podem ameaçar a integridade do esporte.

[…]

Honrar a integridade de um esporte significa mais do que jogar conforme as regras ou fazer com que elas sejam cumpridas. Significa fazer as regras de um modo que honrem as excelências cruciais para aquele esporte e recompensem as habilidades dos melhores jogadores.

Ou seja, apreciamos um esporte “limpo” pois assim podemos valorizar mais o mérito individual, o esforço empreendido para superar obstáculos naturais e vencer os oponentes, inclusive aqueles que largam com vantagens naturais. O doping anula esse “fair play”, e por isso incomoda tanto.

A analogia com o livre mercado é automática. Ou deveria ser. Defendemos o livre mercado, a livre concorrência, justamente porque ela irá premiar os melhores, os mais eficientes no atendimento da demanda dos consumidores. O doping estraga isso. E o doping, aqui, significa privilégios estatais, não diferenças naturais.

Escrevi um artigo para o GLOBO sobre o assunto, quando o atleta da vez envolvido em um grande escândalo de doping era Lance Armstrong. Segue:

Capitalismo sem doping

Lance Armstrong foi banido do esporte pela União Ciclística Internacional por causa de doping. Ele perdeu seus sete títulos da Volta da França, assim como oito patrocínios nos últimos meses. Antes um exemplo para muitos, o atleta agora caiu em desonra. O público não tolera uma competição desleal nos esportes.

Infelizmente, o mesmo não ocorre quando se trata de economia. Muita gente acha natural que o governo crie privilégios e incentivos, beneficiando certos empresários. O governo Dilma parece ter adotado com gosto o manual nacional-desenvolvimentista de seleção dos campeões nacionais, como na era Geisel.

Algumas empresas agraciadas por critérios arbitrários recebem incentivos que destroem a essência do capitalismo, que é a livre concorrência. Barreiras protecionistas, cotas nacionais, empréstimos do BNDES com taxas de juros subsidiadas, ligações espúrias com as estatais, enfim, há diversas formas de se manipular o mercado, análogas ao uso de doping nos esportes. Mas poucos reclamam.

O bilionário Eike Batista fala abertamente deste “capitalismo de compadres” como se fosse algo positivo. Em entrevista recente, o empresário disse que o governo deveria investir mais em suas empresas. Seu grupo EBX já recebeu mais de R$ 8 bilhões do BNDES em quatro anos. São taxas camaradas, que toda a torcida do Flamengo gostaria de ter acesso.

Em uma espécie de surto megalomaníaco ao estilo Lula, Eike Batista chegou a afirmar: “Alguém vai ter que fazer uma estátua para mim em algum lugar”. Não quero ser injusto aqui: Eike tem lá seus méritos. É corajoso em suas empreitadas, não tem vergonha de sua riqueza, algo importante em um país que considera o sucesso uma “ofensa pessoal”. Mas sua simbiose com o governo não permite que ele seja visto como um ícone do capitalismo. Ao menos não do modelo liberal.

Eike Batista representa o capitalismo de estado, assim como seu colega da lista de bilionários da Forbes, Carlos Slim. São casos de inegável sucesso, mas com forte turbinada estatal. Típico da América Latina, cuja presença do estado na economia ainda é muito grande, criando incentivos perversos onde o lobby vale mais do que o mérito e o investimento em competitividade.

Outro caso escandaloso é o da JBS, que já recebeu mais de R$ 10 bilhões do BNDES, agora sócio da empresa. Em 2005, ela faturava menos de R$ 4 bilhões por ano. Em 2010, o faturamento já passava dos R$ 55 bilhões. A “Boibras” se tornou um gigante graças ao empurrão do governo. Em contrapartida, ela foi um dos maiores doadores corporativos para a campanha de reeleição de Lula em 2006.

Esses grandes empresários latino-americanos não podem ser comparados a gente como Steve Jobs (Apple), Michael Dell (Dell), Larry Ellison (Oracle), Jeff Bezos (Amazon), Bill Gates (Microsoft), Larry Page (Google) e Mark Zuckerberg (Facebook). Estes empreendedores não contaram com o doping estatal. Não por acaso, são todos do setor de tecnologia, onde há menos intervencionismo. Seu sucesso foi decorrente apenas de trocas voluntárias com seus clientes.

Claro que o sistema faz toda diferença do mundo. Em um país como o Brasil, onde uma canetada da presidente pode selar o destino de um setor inteiro, qualquer empresário grande precisa manter boas relações com o governo. Além disso, se existe o BNDES, claro que todos vão fazer de tudo para entrar na lista de beneficiados. Faz parte do jogo. O que está errado são as regras do jogo por aqui.

Por isso acho injusto culpar somente os empresários que mamam nas tetas estatais. A culpa maior é do nosso modelo, com poder demais concentrado no estado. Se, por um lado, é preocupante ver Eike Batista transformado em ícone do capitalismo, também é exagerado demonizá-lo (ainda que ele mereça duras críticas). Não é fácil ser um grande empreendedor no Brasil sem as muletas estatais. Eles existem, e são verdadeiros heróis. Mas trata-se de algo raro.

O que precisamos, portanto, é alterar as regras do jogo. Precisamos de bem menos governo, e bem mais mercado livre. Acima de tudo, como defende Luigi Zingales em seu excelente livro “A Capitalism for the People”, nós precisamos criar um ambiente de pressão social contra privilégios estatais. É preciso recuperar os valores éticos que rejeitam a ideia de que o importante é vencer, custe o que custar.

Um atleta pego com doping cai em desgraça. Um empresário que depende das vantagens do estado deve ser visto como um concorrente desleal, não um exemplo a ser seguido. Precisamos de regras iguais para todos. Precisamos de um capitalismo sem doping.

Rodrigo Constantino

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