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Tirania do mercado e do trabalho?
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Quando não é um messias salvador da Pátria, “macho” e viril, os latino-americanos buscam uma espécie de “índio” remodelado, um “bom selvagem” rousseauniano descolado, livre das tentações capitalistas, “puro”. Ou seja, quem não tem Fidel caça com Evo Morales ou Mujica.

Até dá para compreender a empolgação toda com a aparente simplicidade de Mujica, quando pensamos na esquerda caviar, nos gastos milionários de Lula e Dilma, esta que, agora mesmo, torrou milhares de dólares só para passar uma noite em Portugal a caminho de Cuba, para enaltecer o socialismo.

Mas convenhamos: essa simplicidade toda não convence pessoas mais atentas. No mais, há nela uma imagem bem construída para atrair justamente os velhos anticapitalistas, que adoram odiar o luxo – muitas vezes da boca para fora.

Divago. Nem era disso que queria falar aqui. Lendo o artigo de Daniel Aarão Reis no GLOBO hoje, tais pensamentos me vieram à mente, mas porque parte da esquerda gosta de falar em uma suposta “tirania do mercado”, em contraste à tirania bem concreta de estados autoritários. Diz o autor:

Pepe Mujica tenta levar à prática suas ideias. Largou de mão o palácio presidencial para viver numa chácara com a mulher, senadora da República. Doa quase todo o salário para programas populares, anda num fusquinha antiquado e faz o próprio vinho, que saboreia com gosto. Com sapatos grossos e empoeirados, calça e suéter surrados, boina na cabeça, acompanhado de Manuela, a cachorrinha manca, inspira a confiança de um avô sábio que qualquer um gostaria de ter.

Na última Assembleia Geral da ONU, realizada em setembro passado, ao compartilhar suas propostas com os líderes mundiais, apresentou-se apenas como um “homem do Sul”. Com palavras simples e persuasivas, defendeu a hipótese de uma outra vida neste mundo. Parecia estar pensando na construção de uma passagem, um outro túnel, universal, não para levar os presos de Punta Carretas para a casa de Serrana Auliso, mas para fazer as gentes escaparem da tirania do Estado, do mercado e do trabalho, e encontrarem a sonhada e necessária liberdade.

Coço meus olhos, tiro os óculos, leio novamente. É isso mesmo! Após enaltecer a “simplicidade” do presidente uruguaio, o autor nos apresenta seu estilo de vida como uma alternativa às diferentes formas de tirania, quais sejam, as do Estado, do mercado e do trabalho. Somente assim encontraremos a sonhada e necessária “liberdade”.

Faz sentido falar em “tirania do mercado” ou “tirania do trabalho”, ainda mais as comparando com a “tirania do Estado”? Em meu livro Esquerda Caviar, disse que é uma conhecida estratégia da esquerda apelar para tal estratagema. Escrevi:

Mas a esquerda caviar adora rótulos sem sentido. Enquanto posa de moderada, costuma atacar seus oponentes como “extremistas”. O primeiro passo daqueles que pretendem confundir os indivíduos com seus vagos termos é jogar tudo no mesmo saco, chamando o conjunto todo de “extremismo” e pregando um “caminho do meio”. A técnica é conhecida.

Se alguém escutar uma pessoa afirmando ser igualmente contrária à peste bubônica, ao estupro e aos sermões de sua sogra, não restará dúvida de que o objeto do seu verdadeiro ódio seja a sogra, e eliminá-la parecerá o real objetivo de sua colocação. Afinal, não seria razoável considerar como males iguais as três coisas, por mais chato que fosse o sermão da sogra.

Da mesma maneira, quando alguém repete que condena igualmente o comunismo, o nazismo e o capitalismo, não resta dúvida de que o alvo verdadeiro seja o capitalismo. O comunismo carrega nas costas algo como 100 milhões de defuntos, enquanto o nazismo tantos outros milhões. Ambos são totalitários, depositam no estado todo o poder, partem para fins coletivistas, transformando os indivíduos em meios sacrificáveis, e incitam o ódio do preconceito, seja de classe ou de raça. 

Voltemos ao artigo de Aarão Reis: tirania de Estado nós conhecemos muito bem. Cuba, por exemplo. União Soviética. Todos os países comunistas, para simplificar. Não há liberdade para nada, todos são escravos dos governantes. O regime é opressor, prende inocentes apenas por discordar, mata inocentes, impõe aceitação sob a mira de uma arma, com o uso de coerção física. Tirania, enfim.

Agora, o que seria uma “tirania do mercado”? Tentemos imaginar: o sujeito entra num shopping center, e lá encontra mil marcas diferentes de blusa. Que horror! Um escravo! Um alienado que sofreu lobotomia dos terríveis capitalistas! É “obrigado” a escolher entre tantas marcas diferentes. Que angústia!

E a “tirania do trabalho”? Quero casa, comida, saúde e educação, tudo isso coisas que não brotam do chão nem dão em árvores, muito menos caem do céu. São bens e serviços prestados por outros seres humanos. Mas que diabo! Preciso trabalhar para comprar isso tudo! Maldição dos infernos! Um absurdo! Uma tirania cruel, eu ser “obrigado” (por quem?) a trabalhar para ter o que desejo!

Como fica claro, não passa de retórica vazia o uso das expressões “tirania de mercado” e “tirania do trabalho”, principalmente quando o contexto é usá-las junto do conceito de “tirania do Estado”, a única tirania verdadeira, aquela que utiliza violência ou ameaça de violência para impor um comportamento.

O mercado é apenas a liberdade de escolha de cada um. Dentro do livre mercado, você pode escolher até mesmo se vestir como o Mujica, abdicar de todos os produtos capitalistas, ignorar até a internet e o smartfone. Ninguém te “obriga” a fazer diferente. Basta você ter coragem de assumir as consequências de suas escolhas. Aí é que a porca torce o rabo, e que toda a hipocrisia daqueles que falam em “tirania do mercado” vem à tona…

PS: Daniel Aarão Reis acha o máximo Mujica fazer o próprio vinho. Até quando a esquerda vai enaltecer a autossuficiência em vez de reconhecer a imensa superioridade do livre comércio e da divisão de trabalho? Imagina se cada um tivesse que produzir aquilo tudo que consome? Seria o caos, a miséria total, a rejeição a todo o progresso de séculos, calcado justamente na globalização e nas vantagens comparativas.

PS2: Mujica não é o avô que eu gostaria de ter, portanto, não é “um avô sábio que qualquer um gostaria de ter”. Fale por si só, Daniel, e preserve a liberdade de escolha dos demais. Eu preferiria, por exemplo, ter um Ronald Reagan como avô, ou uma Margaret Thatcher como avó.

Rodrigo Constantino

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