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Um Natal de Charlie Brown
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O desenho icônico da televisão com o personagem Charlie Brown no dia de Natal continua famoso e lembrado nesta data, apesar de ter ido ao ar em 1965 (em tempos menos politicamente corretos em que o “Feliz Natal” que Trump tenta resgatar não tinha sido substituído pelo genérico “Boas Festas” de hoje). Ele é particularmente famoso pelo momento em que Linus recita um trecho da Bíblia, Lucas 2:8-14:

Ora, havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, e guardavam, durante as vigílias da noite, o seu rebanho.
E eis que o anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor.
E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo:
Pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura.
E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e dizendo:
Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa vontade para com os homens.

Em 2015, uma escola decidiu cortar a recitação de Linus numa versão de palco do desenho, sendo que os próprios pais na audiência resolveram assumir o papel na hora e mencionar o trecho. São os tempos em que um bobinho Greg escreve em sua coluna na Folha, no dia de Natal, um texto bocó que parece saído da pena de um adolescente de 13 anos, rebelde sem causa, tentando fazer humor forçado com puro desrespeito e ignorância.

Mas voltando ao desenho de Charles M. Schulz, é possível perceber que quando Linus recita o trecho bíblico, ele finalmente solta o seu cobertor da segurança, que o acompanha sempre. Dá para perceber que ele solta o objeto no momento em que diz “E o anjo lhes disse: Não temais”, abrindo mão de seu talismã. Sua irmã Lucy tentava em vão fazê-lo soltar a peça de tecido.

O pastor Jason Soroski, que notou há alguns anos o detalhe, comentou: “Olhando agora, fica bem claro o que Charles Schulz estava dizendo por meio disso, e é tão simples que é brilhante. O nascimento de Jesus nos separa de nossos medos. O nascimento de Jesus nos liberta de hábitos que somos incapazes de (ou que não desejamos) quebrar por conta própria. O nascimento de Jesus nos permite simplesmente abandonar a falsa segurança que vínhamos agarrando com tanta força, e aprender a confiar e apegar-se a Ele em seu lugar”.

Os americanos falam muito em “construir memórias” para seus filhos, e é disso que o Natal também se trata: de momentos em família que levamos para sempre. Em sua coluna de hoje no GLOBO, Carlos Andreazza mergulhou numa seara mais pessoal que não é seu estilo, para revelar ao leitor suas angústias pelo fato de ter perdido o pai muito cedo. Se ele luta com as recordações daquele fatídico dia, que mudou completamente seu destino, eu posso acrescentar que foi um dia que também ficou marcado em minha memória.

Afinal, seu pai morreu num acidente de carro na estrada em que eu estava. Eu vi o carro destroçado. Não sabia de quem era. Ao chegar no condomínio – e não era na época dos iPhones – havia uma mulher desesperada querendo saber se alguém tinha visto um carro tal envolvido em algum acidente. Era o do pai de Andreazza. Como fazer o luto de uma perda tão prematura daquele que é nossa referência, nossa segurança, nosso herói? O próprio Andreazza tenta explicar:

Como não ser cínico? Se a opção era o ressentimento, como não ser cínico? Como não blefar com a hipocrisia de que melhor seria não lembrar?

Ocorre que também as sentenças se transformam — porque a humanidade se impõe, desafia a desfaçatez, e porque a natureza, sobretudo a natureza, dá novas chances. Falo de amor — o único lugar de fala, a única revolução. E então me reencontro, reinvento-me: meu pai não morreu duas vezes. Ou talvez tenha morrido, a última sendo mesmo aquela em que enterrei o moleque que devo ter sido. É que — tento explicar a confusão — o moleque renasceu, ressuscitou, reinventou-se. O moleque — por que não? — nasceu duas vezes; a última, há pouco mais de dois anos, no exato instante em que minha Carol deu à luz. É ele, o menino, quem escreve este texto. O menino que é pai; que é menino porque pai. É que nos veio a Manuela, a graça que descongelou — reanimou — o Natal em mim; que me recosturou à tradição familiar; que me devolveu a infância naquela que embalo; que me fez atentar novamente para o canto da cigarra; que me deu a fortuna de uma nova manhã do dia 25.

Sei que cada um é suas circunstâncias, mas creio no efeito de valor universal — creio que minha palavra encontrará as circunstâncias de cada um — para desejar a todos que reencontrem o Natal.

Na paternidade, Andreazza reencontrou a chama natalina, do amor que nos enche de esperança. O aconchego familiar, que nos preserva memórias. E quando nada disso bastar, quando estivermos agarrado a algum talismã, é possível lembrar que sempre existe Ele, o conceito de Deus, de Pai, de amor incondicional, que dá sentido às nossas vidas.

Tentar transformar isso em piadinha ideológica, e no dia do Natal, é digno de pena, não de raiva, pois diz mais sobre a fuga desesperada de quem se agarra a esse “cobertor curto” do que dos crentes que encontram em Jesus algum conforto digno. Posso não ter a capacidade de fé de muito crente, mas sou capaz de reconhecer a beleza e a importância do fenômeno. E por isso, de desejar um Feliz Natal a todos, crentes ou não.

Afinal, como dizia Chesterton, estamos todos no mesmo barco, e mareados!

Rodrigo Constantino

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